Por MARIA LUIZA FALCÃO SILVA*
Um escândalo que afronta a soberania brasileira
Há gestos que ultrapassam o limite da insensatez e atingem o coração da soberania nacional. A sugestão de Flávio Bolsonaro para que o governo dos Estados Unidos ataque embarcações na Baía de Guanabara, feita em inglês e dirigida diretamente ao secretário de Defesa de Donald Trump, é um desses gestos. Não se trata de uma piada, nem de um “comentário mal interpretado”: trata-se de um ato político explícito, um convite à intervenção estrangeira no território brasileiro e, portanto, uma traição aos princípios mais elementares da soberania.
O El País relatou com espanto o episódio: o “filho 01” do ex-presidente escreveu que havia “barcos como aqueles que os EUA atacaram no Pacífico” navegando no Rio de Janeiro, “inundando o Brasil com drogas”, e perguntou se “não gostariam de passar uns meses aqui nos ajudando a combater essas organizações terroristas”. Uma frase de aparência informal, mas carregada de simbolismo: um senador da República solicitando o uso da força militar norte-americana dentro de águas brasileiras. É impossível imaginar algo mais humilhante para a dignidade nacional.
Da submissão à nostalgia do império
A Baía de Guanabara, que acolheu a chegada da família real portuguesa em março de 1808 — após a primeira parada na Bahia —, transformou-se desde então no grande símbolo da presença do Estado brasileiro. Foi ali que o Rio de Janeiro se tornou capital do Império, depois capital da República e palco de alguns dos mais importantes episódios da nossa história política e militar.
É essa mesma baía, carregada de memória e de significado, que o “filho 01” agora evoca para convidar tropas estrangeiras. Um gesto de subserviência travestido de bravata, que revive o pior das nostalgias coloniais.
O bolsonarismo nasceu e vive da dependência — econômica, ideológica e simbólica. E Flávio expressa essa dependência com naturalidade, como se fosse um gesto de patriotismo pedir aos Estados Unidos para bombardearem o litoral brasileiro. Essa submissão voluntária é o retrato mais fiel de um projeto de país que renega a si mesmo: um Brasil que troca soberania por servidão, autonomia por vassalagem e dignidade por curtidas internacionais.
O papel vergonhoso do “filho 03”
Eduardo Bolsonaro, o “filho 03”, cumpre papel igualmente tóxico. Instalado nos Estados Unidos, transformou-se num agitador de ultradireita, orbitando o trumpismo e alimentando desinformação sobre o Brasil. Vive de insuflar Trump e seus assessores contra o governo Lula, como se o destino do país dependesse da boa vontade de Washington.
Há uma linha direta entre as provocações de Eduardo e a recente postagem de Flávio. São dois lados da mesma moeda: o bolsonarismo internacionalizado, que busca apoio estrangeiro para atacar o próprio país. Enquanto um age de fora, o outro, de dentro, convida tropas estrangeiras para agir em solo nacional. É o velho complexo de vira-lata elevado à condição de programa político.
O perigo da banalização da traição
A imprensa estrangeira, de modo geral, tratou o episódio com perplexidade. O El País, Le Monde e até o Guardian destacaram a gravidade de um senador brasileiro apelando a outro governo para intervir militarmente. No Brasil, porém, parte da direita tratou o caso como “brincadeira” ou “ironia mal-entendida”. Esse é o caminho mais perigoso: a banalização da traição.
O que Flávio fez não é humor, é ofensa. Não é descuido, é cálculo. Cada palavra foi escrita em inglês, dirigida ao coração do trumpismo, para sinalizar alinhamento ideológico e obediência. O gesto é tanto simbólico quanto prático: legitima a ideia de que o Brasil pode ser policiado de fora, que nossa defesa é insuficiente e que nossas forças armadas devem ser substituídas por drones americanos.
O Brasil não precisa de tutores
A história brasileira é repleta de momentos em que elites entreguistas se ajoelharam diante do estrangeiro. Do golpe de 1964 à submissão às receitas do Fundo Monetário Internacional (FMI), nossa tragédia é cíclica. Mas há uma resistência e ela precisa falar alto com esse traidor. Nenhuma marinha estrangeira tem o direito de cruzar nossas águas sem autorização. Nenhum país, por mais poderoso que seja, tem o direito de intervir sob pretexto de “ajuda”.
O Brasil não precisa de tutores, precisa de estadistas. Precisa de líderes que compreendam que soberania não se terceiriza. E precisa, sobretudo, de memória: lembrar que toda intervenção estrangeira começa com um convite e que esse convite, hoje, partiu de dentro do Senado da República.
Um país que não se ajoelha
O episódio da Baía de Guanabara revela mais do que a leviandade de um político: revela o quanto ainda precisamos reconstruir nossa autoestima nacional. O bolsonarismo nos legou um país em que parte da elite se sente à vontade para pedir ajuda militar a Washington.
O Brasil não precisa de salvadores estrangeiros, muito menos de senadores que falem inglês para pedir bombardeio em casa. Se Flávio Bolsonaro quer ver a Baía de Guanabara sob fogo americano, talvez devesse ele próprio embarcar — de colete, bandeirinha na mão — e aguardar o primeiro míssil. O Brasil, felizmente, já aprendeu a rir desse tipo de patriota de aluguel.
Nota: A declaração de Flávio Bolsonaro foi feita em 23 de outubro de 2025, em inglês, no X (ex-Twitter), e repercutida internacionalmente. Ver: El País, “Un hijo de Bolsonaro sugiere a Estados Unidos que ataque barcos con drogas en la bahía de Río de Janeiro”, 23/10/2025. Disponível em: https://elpais.com/america/2025-10-23/un-hijo-de-bolsonaro-sugiere-a-estados-unidos-que-ataque-barcos-con-drogas-en-la-bahia-de-rio-de-janeiro.html
*Maria Luiza Falcão Silva é PhD pela Heriot-Watt University, Escócia, Professora Aposentada da Universidade de Brasília e integra o Grupo Brasil-China de Economia das Mudanças do Clima (GBCMC) do Neasia/UnB. É membro da Associação Brasileira de Economistas pela Democracia (ABED). Entre outros, é autora de Modern Exchange Rate Regimes, Stabilisation Programmes and Co-ordination of Macroeconomic Policies, Ashgate, England/USA.
Foto de capa: Youtube / Reprodução





Uma resposta
Não sei o por quê de, ainda, darem atenção, às palavras ignóbias davfamília Bolsonaro.