Por SOLON SALDANHA*
Madrugada de um sábado qualquer em 1986, bairro boêmio da Cidade Baixa, em Porto Alegre. Aberto naquela hora apenas o Bar Um, na rua Joaquim Nabuco, nas proximidades da José do Patrocínio. Um piano muito bem tocado inunda o local e as redondezas com o mais autêntico som de jazz. O ambiente tem poucas pessoas e um garçom desatento se ocupa em lavar copos. Na penumbra quem toca e canta como se estivesse num palco famoso, como tantos nos quais se apresentou ao longo da carreira, está Ray Charles.
Ele improvisa música atrás e música, sem intervalo algum. Está ali sem cobrar nada e muito feliz. Algum tempo antes o funcionário de um hotel existente no centro da cidade havia ligado. Perguntava se havia mesmo um piano no bar, porque um hóspede insistia que precisava tocar. Como a resposta foi positiva, ele se dirige ao local acompanhado apenas por um motorista, pede uma água mineral e passa a esbanjar o seu talento. Os frequentadores, surpresos e encantados, ouvem o melhor jazz das suas vidas. E, para se somar às lendas urbanas que toda cidade tem, consta que ao final do show um homem, que já havia bebido muito além da conta, foi embora reclamando: “Este bar já foi melhor. Não é que hoje apareceu um cara de óculos escuros, não tocou nenhum samba e ficou cantando em inglês. Quem ele pensa que é? O Ray Charles?”
Ray Charles Robinson (1930-2004) foi um pianista extraordinário. Ele nasceu em Albany, na Geórgia, e faleceu em Beverly Hills, na Califórnia, tendo dedicado toda sua vida à música. É considerado um dos mais icônicos e influentes cantores da história, não raras vezes tendo sido referido por seus contemporâneos como “O Gênio”. Entretanto, entre seus amigos e colegas mais próximos preferia ser chamado de “Brother Ray”. Cego desde os seis anos de idade, provavelmente devido a um glaucoma – doença ocular que causa danos progressivos ao nervo óptico e provoca aumento da pressão intraocular –, estudou na Escola Para Cegos e Surdos de Santo Agostinho, na Flórida. Lá aprendeu também a compor e tocar instrumentos musicais. Neste período perdeu sua mãe e, dois anos depois, tornou-se também órfão de pai.
Iniciou sua carreira na adolescência, tocando piano e cantando gospel, no final dos anos 1940. Depois, influenciado por Nat King Cole, seguiu para baladas profanas e mais tarde foi para o R&B. Quando o rock estourou, com Elvis Presley e cantores negros como Chuck Berry e Little Richard, ele aproveitou a onda favorável e lançou várias canções que foram sucessos em sequência. Enveredou ainda para o soul como um pioneiro que o moldou combinando elementos do blues e do jazz, se notabilizando nesses estilos. Em 2004 o filme Ray, com Jamie Foxx no papel principal – a interpretação lhe rendeu um Oscar –, a vida do músico foi contada desde o momento em que deixa sua casa e ruma na direção de Seattle, para tentar carreira profissional.
Ray Charles estava em Porto Alegre para participar do Free Jazz Festival que teve, naquele ano, shows também em Porto Alegre. Esse evento foi destaque no Brasil por 16 anos, de 1985 até 2001. As edições ocorriam sempre em São Paulo e no Rio de Janeiro, sendo ocasional em outras capitais, como a gaúcha e Curitiba. O nome referia uma marca de cigarros produzida pela Souza Cruz. Ela deixou de patrocinar quando a publicidade deste tipo de produto terminou restringida por lei no Brasil. A alta do dólar também influenciou, pois os custos passaram a ser muito elevados. O artista esteve outras vezes no Brasil, sendo que em uma delas protagonizou apresentação histórica no Parque do Ibirapuera, para um público de 150 mil pessoas. Milhares de vezes maior do que naquela feita no bar porto-alegrense.
*Solon Saldanha é jornalista e blogueiro.
Texto publicado originalmente no Blog Virtualidades.
Foto de capa: Ray Charles em show na Califórnia, em 1996 | AP/John Hayes
Respostas de 2
Rapaz, que texto primoroso! Da orgulho saber que ainda existem jornalistas cultos…
Que Maravilha, tanto a presença de Ray Charles na cidade Baixa em POA, como o texto !!! Parabens Solon Saldanha !!!