RED: Dr. José Orlando Schäfer, seu artigo “Uma Concepção Essencialista de Dignidade Humana” foi recentemente publicado na Revista da Escola Judicial do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, um periódico de grande prestígio acadêmico. Para começar: qual foi a motivação central que o levou a escrever sobre a Dignidade Humana?
José Orlando Schäfer: Antes de tudo, é importante dizer que estudo a Dignidade Humana há mais de uma década. Meu Mestrado teve como foco esse tema e, desde então, sigo aprofundando o assunto, especialmente a partir da filosofia — que é o fundamento de todas essas reflexões. Publiquei dois livros sobre essa matéria: O Princípio da Dignidade Humana para uma Nova Compreensão do Direito do Trabalho (2018) e O Direito ao Avesso (2025). A motivação para este artigo nasceu da percepção de que, embora a Dignidade Humana esteja presente em documentos internacionais e constituições modernas — inclusive a nossa, de 1988 — ainda existe muita confusão sobre o seu significado real. Muitos a tratam como um valor abstrato, moralista ou religioso. Meu objetivo foi reconstruir esse conceito a partir de um fundamento racional e essencialista, capaz de lhe conferir solidez jurídica. Sei, muito bem, das dificuldades presentes nessa minha empreitada. Acho que é um projeto para toda a vida.
“Dessacralizar” a Dignidade
RED: No artigo, o senhor diz que busca “dessacralizar” a Dignidade. O que significa isso?
Schäfer: Significa retirar dela o caráter místico que historicamente lhe foi atribuído. Durante séculos, a Dignidade esteve vinculada à religião, à metafísica e a valores transcendentes. Essa herança tem relevância, mas não basta ao Direito contemporâneo que é um sistema basicamente fundado na razão. Ao falar em dessacralizar, proponho situar a Dignidade no campo da razão. Minha tese é que ela decorre da essência humana — formada por pensamento, corpo, desejo e pelo esforço de perseverar na existência — e não de fundamentos metafísicos.
RED: Por que o filósofo Baruch de Espinosa ocupa papel tão central nessa reconstrução?
Schäfer: Porque Espinosa explicou como poucos a essência humana sem recorrer à transcendência. Sua filosofia da imanência mostra que tudo tem causa e racionalidade. A noção de conatus — o esforço de perseverar no ser — e a compreensão do desejo como potência de agir são fundamentais para uma leitura racional da Dignidade Humana. Para Espinosa, liberdade não é livre-arbítrio, mas agir de acordo com a razão. Assim, a Dignidade deixa de ser um valor abstrato e se torna expressão da própria estrutura do humano.
RED: O senhor distingue, no artigo, Dignidade Ontológica e Dignidade Jurídica. Como elas se relacionam?
Schäfer: A Dignidade Ontológica antecede qualquer ordem jurídica — ela existe pelo simples fato de sermos humanos. Já a Dignidade Jurídica é a sua tradução normativa: o Direito reconhece, protege e promove aquilo que independe dele. A Constituição de 1988 fez exatamente isso ao eleger a Dignidade como fundamento da República. O Estado não cria a Dignidade; apenas a reconhece. Reconhece para proteger, para fazer dela o início, o meio e o fim da organização social.
RED: O senhor afirma que a Dignidade impõe deveres positivos e negativos ao Estado e à sociedade. Como isso funciona?
Schäfer: De modo muito claro. A Dignidade possui uma dimensão negativa: ninguém pode violar a essência humana — seja por violência, miséria, discriminação ou humilhação. E possui uma dimensão positiva: Estado e sociedade têm o dever de criar condições concretas para que cada pessoa desenvolva suas potências. Isso envolve políticas públicas, acesso a direitos sociais, respeito nas relações privadas e garantia de autonomia. A Dignidade é, ao mesmo tempo, limite e projeto.
RED: Espinosa afirma que “nada é mais útil ao homem que o próprio homem”. Como essa ideia aparece no seu texto?
Schäfer: Essa frase é central. Primeiro, porque significa que podemos — e devemos — confiar na generosidade dos outros seres humanos, todos portadores da mesma dignidade. É verdade que existe, entre nós, a crença hobbesiana de que “o homem é o lobo do homem”, mas Espinosa mostra outra possibilidade. Em segundo lugar, a frase indica que o ser humano só realiza plenamente sua essência na vida em comum. A sociabilidade não é uma escolha: é uma condição da existência. Assim, a Dignidade não é apenas um direito individual, mas também o princípio que orienta a organização da vida coletiva. As relações sociais devem ampliar — e não restringir — a potência de agir das pessoas. Isso é decisivo no Direito do Trabalho, no Direito Civil e em todas as áreas que enfrentam desigualdades. Todo ser humano, por sua dignidade, tem o direito de realizar-se plenamente nas suas relações com o outro.
RED: O Judiciário brasileiro interpreta corretamente o princípio da Dignidade?
Schäfer: Temos avanços importantes. Mas ainda vemos decisões que tratam a Dignidade de maneira moralista, circunstancial, como se fosse mero enfeite. Falta, muitas vezes, uma compreensão racional de sua essência para sustentá-la como valor jurídico — isto é, como norma cogente. A Dignidade cria direitos e deveres tanto para o Estado quanto para as relações privadas. Quando ela é usada como justificativa para qualquer decisão, perde densidade. Minha proposta é oferecer uma base firme para seu uso jurídico: a proteção da essência humana e da potência de existir.
RED: E quanto às relações sociais? A Dignidade é respeitada?
Schäfer: Temos normas importantes — Lei Maria da Penha, Estatuto da Criança e do Adolescente, Estatuto do Idoso, Lei da Inclusão, Direito do Trabalho e outras. Mas a prática mostra enormes dificuldades. A violência contra a mulher ainda é alarmante; o mesmo ocorre com crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência. O ambiente de trabalho, em muitos casos, ainda adoece, humilha e desumaniza. Isso é violação direta à Dignidade Humana — e, portanto, à norma jurídica. Nas redes sociais, as agressões verbais são inaceitáveis. Democracia exige liberdade de opinião, mas sempre dentro de limites que preservem a dignidade presente em todos os seres humanos. A Dignidade, uma vez reconhecida, exige diálogo e tolerância. Ainda temos muito a avançar. E, como desenvolvo com profundidade no meu livro O Direito ao Avesso (2025), a Teoria Crítica indica três passos fundamentais para qualquer transformação: a) visualizar a violência social; b) desestabilizar as relações injustas; c) indicar caminhos. Um caminho poderoso – que podemos e devemos seguir – caminho esse que, aliás, já está delineado em grande parte na Constituição Federal e na legislação existente. Falta colocá-las em prática.
RED: Para concluir: qual é a principal contribuição do seu artigo?
Schäfer: Procuro apenas contribuir com o debate que a sociedade brasileira precisa fazer. Mas, de forma mais específica, o artigo mostra que a Dignidade Humana é um princípio normativo — não um adorno retórico, mas fundamento da organização social. Demonstro que ela é racional, essencial e universal, e que só pode ser plenamente compreendida quando entendemos o que constitui a essência humana. A partir disso, o Direito se torna instrumento de proteção, promoção e organização da vida digna em sociedade. E acrescento: não devemos esperar que alguém realize a Dignidade Humana por nós. Ela precisa ser praticada diariamente, por todos, em cada gesto — por menor que pareça.
*José Orlando Schäfer, 61 anos, é advogado, escritor e professor universitário. Formado em Direito pela Faculdade de Direito de Santo Ângelo, integra a Academia de Letras do Noroeste do Rio Grande do Sul. Atua há 36 anos como advogado de movimentos sociais e sindicais. Até o final de 2024, presidiu a OAB – Subseção de Três Passos (RS).
Mestre em Direito e pós-graduado em Direito Público pela UNIJUÍ, possui formação em Teoria Crítica do Direito pela Universidade Pablo de Olavide (Sevilha, Espanha). Dedica-se ao estudo da dignidade humana, do Direito e das interfaces entre literatura, filosofia e vida prática. Autor de diversos artigos e dos livros: – Direito do Trabalho e Flexibilização (2016); – Na Primavera da Vida (2018); – O Princípio da Dignidade Humana Para Uma Nova Compreensão do Direito do Trabalho(2022); – Conhecer Transforma (2024); – Muitas Faces (2024); – O Direito ao Avesso (2025); – Memórias de um conflito (2026 – no prelo). Contato: (55) 99962-5737 | schafer.jo@gmail.com
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