O adeus de Herberts Cukurs

translate

0102-nazista-layout_site

Por DANIEL AFONSO DA SILVA*

Aangústia e o pavor podem matar. Herberts Cukurs sabia disso. Pior: sentia. E, mesmo assim, decidiu arriscar.

O ano era 1965. Ele vivia em São Paulo e sobrevivia de pequenas ocupações. Ora barqueiro, ora aviador. Amealhando parcos recursos. Suficientes só para amparar mulher e filhos. Nada mais.

Diferente outrora. No Rio de Janeiro, de 1946 a 1956, onde ele fora próspero homem de negócios. Fundador do sistema de bicicletas aquáticas na lagoa Rodrigo de Freitas. Que lhe legou o título de “rei dos pedalinhos”. Além de muito dinheiro.

Não tanto quanto antes. No Velho Mundo. Quando seus dias moviam muito mais verniz. Notadamente na Letônia, onde nascera em 1900.

Ainda menino, por lá, tornou-se amante do ar. Ao crescer, virou aeronauta, engenheiro de aviões e inventor. Fez-se, também, jornalista e escritor. Construiu pelo menos três aviões. Escreveu sobre eles. Divulgou-os. Realizou o primeiro voo, ida-e-volta, bem-sucedido, Letônia-Gâmbia e Letônia-Japão. Virando celebridade. Recebendo várias comendas. Adicionadas a reputação. Nacional e europeia. Que contribuíram para a sua ascensão nas Forças Aéreas de seu país. E, per se, para o crescimento de suas reservas financeiras.

Que não diminuíram com a guerra. Antes, aumentaram. Sobretudo, em 1941, na ocupação nazista da Letônia. Quando Cuckurs integrou o Comando Arajs. Espécie de extensão da Luftwaffe no país. A serviço do Reich. No que Herberts fora implacável. A ponto de notabilizar-se hors concours no extermínio de judeus letões e ingressar na história da grande guerra como “carniceiro de Riga”.

Pois esse homem – Herberts Cukurs – veio parar no Brasil. No fim da guerra. Quando ele seguiu os trilhos nazistas da Europa à América do Sul e daí ao Brasil, fixando-se no Rio. Onde obteve sucessos imediatos. Seguidos da notoriedade dos pedalinhos.

Mas a comunidade judaica não demorou a descobrir seus feitos em Riga. Dutra nem Getúlio tomaram partido. Ninguém, assim, permitiu-se extraditá-lo.

Mas sob Juscelino ele foi obrigado a deixar o Rio. Indo para São Paulo. Para uma vida em discrição, low profile. Sangrando recursos, reduzindo receitas e, progressivamente, economicamente, vulnerável. Até que um certo Anton Kunzle apareceu em setembro-outubro de 1964 como espécie de anjo.

Dizendo-se alemão, nostálgico do Führer, antigo servidor do Reich, transformado, agora, após-guerra, em empresário do ramo de turismo, interessado em ampliar negócios na América do Sul e procurando sócios locais potenciais entre os nazistas em diáspora, Kunzle localizou Herberts e prometeu-lhe mundos e fundos.

Foi um encontro amistoso. Herberts queria dinheiro. Kunzle, o negócio. Então tudo fluiu.

Kunzle detalhou a proposta. Herberts aceitou. Tudo assim: bem rápido. Entre outubro e dezembro.

Quando Kunzle retornou à Europa, sob o pretexto das festividades natalinas, deixando a promessa de retornar notícias no início do ano. O que fez. Pelo telegrama. Logo em janeiro. Determinando que o próximo encontro deles dois deveria ser no Uruguai. Em Montevidéu. Melhor local para a instalação da empresa.

Herberts recebeu a informação estupefato. Sair do Brasil era uma novidade. Ele jamais saíra depois de chegar em 1946. Menos ainda em direção ao sul da América do Sul. Onde a lembrança do sequestro de Eichmann ainda era viva. E, mais, onde sabia-se que Simon Wiesenthal, desde Viena, tinha olhos. Juntamente com a gente do Mossad.

Ir ou não ir ao Uruguai, eis a questão.

Era muito dinheiro envolvido. Kunzle havia apensado um cheque bem gordo ao telegrama. Que deixou Herberts, simplesmente, fora de si. Agoniado. Consumido pela indecisão.

Mas decidiu ir.

Organizou a documentação. Agendou um bilhete na Varig. Foi a Congonhas e partiu para Montevidéu.

Kunzle aguardava-o. Como previsto.

Hospedaram-se no Palace Hotel. Conversaram. Descansaram. Em seguida, partiram ganhar a cidade. Herberts aí já não sentia qualquer medo.

Kunzle, então, imbicou para Canelones, região balneária. Nem perto nem longe do centro. Adentrou a calle Columbia, sem asfalto nem pavimentação. Chão batido, chão de terra. Chegou à Casa Cubertini, sem adorno nem distinção. Invadiu seu quintal. Estacionou. Desligou o carro. Desembarcou e seguiu rápido rumo à porta. Herberts hesitou. Ficando longos segundos dentro do carro antes de sair. Mas saiu. Levantou e foi. Quase na sombra de Kunzle. Que já tinha a mão na tramela, movendo-a para dentro e deixando a porta para trás.

Herberts veio logo em seguida. Determinado, inebriado.

Quando deu por si, estava cercado. Quatro judeus – mais Kunzle – rodeavam-no. Houve luta corporal. Eram os enviados do Mossad. Era uma armadilha. Ninguém cedia. Kunzle observava. Dois golpes de martelo foram desferidos na cabeça de Herberts. Mas ele seguia lutando para sobreviver. Até que dois tiros secos vazaram sua têmpora. Dando fim a mais um facínora. Que foi depositado num baú com um bilhete informando: Condenado à morte por aqueles que nunca esquecem. Montevidéu, 23 de fevereiro de 1965.


Publicado originalmente em Jornal da USP.

*Daniel Afonso da Silva é Pesquisador no Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da Universidade de São Paulo e professor na Universidade Federal da Grande Dourados.

Foto da capa: Reprodução

Receba as novidades no seu email

* indica obrigatório

Intuit Mailchimp

Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia..

Gostou do texto? Tem críticas, correções ou complementações a fazer? Quer elogiar?

Deixe aqui o seu comentário.

Os comentários não representam a opinião da RED. A responsabilidade é do comentador.

Uma resposta

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

plugins premium WordPress

Gostou do Conteúdo?

Considere apoiar o trabalho da RED para que possamos continuar produzindo

Toda ajuda é bem vinda! Faça uma contribuição única ou doe um valor mensalmente

Informação, Análise e Diálogo no Campo Democrático

Faça Parte do Nosso Grupo de Whatsapp

Fique por dentro das notícias e do debate democrático