Por LUIZ CÉSAR SILVA*
No contexto contemporâneo, a humanidade enfrenta um de seus paradoxos mais evidentes: apesar da produção sem precedentes de riqueza, do notável avanço tecnológico e da expansão do capital e da capacidade produtiva, persistem profundas desigualdades e contradições estruturais. Contudo, essa “prosperidade”, longe de se converter em bem-estar coletivo, tem se concentrado, de forma inédita, nas mãos de uma parcela ínfima da população mundial. O economista francês Piketty, em sua célebre obra “O Capital no Século XXI”, demonstra que as tendências naturais do capitalismo não regulado conduzem inevitavelmente ao aumento das desigualdades, à concentração de renda e de patrimônio e, em consequência, à erosão dos pilares da democracia e da coesão social.
Essa constatação, longe de ser apenas uma crítica moral, tem fundamento empírico robusto. Segundo dados do Credit Suisse e do relatório da Oxfam, cerca de 1% da população mundial detém mais de 50% de toda a riqueza global, enquanto a metade inferior da pirâmide social concentra menos de 5%. Essa desigualdade não é um subproduto acidental, mas uma consequência estrutural do funcionamento do capitalismo contemporâneo, que tende a privilegiar a acumulação do capital sobre o trabalho. O retorno sobre o capital (r) cresce de maneira mais rápida que a taxa de crescimento da economia (g), o que significa que os que já possuem capital o veem crescer em ritmo mais acelerado do que aqueles que dependem de sua força de trabalho.
No Brasil, esse quadro revela-se ainda mais dramático, uma vez que o país figura entre os líderes mundiais em desigualdade de renda e de patrimônio. Essa desigualdade não se explica apenas por diferenças de produtividade ou mérito individual, mas sobretudo por um sistema tributário regressivo e injusto, que onera pesadamente o consumo e os salários — isto é, os mais pobres e a classe média —, enquanto alivia a carga sobre as rendas do capital, as heranças e as grandes fortunas. Em outras palavras, o Estado brasileiro tributa mais quem tem menos, invertendo o princípio constitucional da capacidade contributiva.
Essa distorção se expressa em números claros. Estima-se que quase metade da arrecadação tributária brasileira decorra de impostos sobre o consumo, como o ICMS, o IPI e o PIS/COFINS. Esses tributos incidem de forma uniforme sobre produtos e serviços, sem levar em conta a renda do consumidor, o que significa que um trabalhador que ganha um salário mínimo paga proporcionalmente impostos bem mais elevados ao comprar alimentos ou produtos básicos do que a elite. Em contrapartida, os impostos sobre heranças, lucros e dividendos são baixos ou inexistentes, o que perpetua o ciclo de concentração de riqueza entre as elites rentistas.
A reforma tributária brasileira precisa resgatar sua função social do papel distributivo dos tributos. O encargo do sistema fiscal não é apenas arrecadar para financiar o Estado, mas também corrigir as desigualdades estruturais históricas e garantir que todos os cidadãos tenham acesso aos direitos fundamentais básicos, como saúde, educação, moradia e segurança. A tributação, quando progressiva e justa, atua como instrumento de justiça social e como mecanismo de estabilização econômica, pois fortalece a demanda interna e o poder de compra das classes populares, sustentando o crescimento económico de longo prazo.
Nesse sentido, algumas medidas concretas poderiam conduzir o país a uma tributação mais equitativa.
- A tributação progressiva de todos os rendimentos das pessoas físicas, de forma que quanto maior a renda, maior seja a alíquota efetiva;
- A ampliação das faixas e alíquotas do imposto de renda, elevando a tributação sobre os mais ricos e aliviando os trabalhadores assalariados;
- A instituição de um imposto sobre grandes fortunas, previsto na Constituição Federal de 1988, mas jamais regulamentado;
- O aumento das alíquotas sobre heranças e doações, que no Brasil são irrisórias quando comparadas às de países desenvolvidos;
- A redução da carga tributária sobre o consumo, compensada pela elevação da arrecadação sobre patrimônio e rendimentos de capital.
Essas medidas, embora economicamente racionais e socialmente justas, esbarram em obstáculos políticos. O sistema político brasileiro é, em grande parte, dominado pelos interesses dos estratos mais ricos da sociedade, que financiam campanhas eleitorais e influenciam a fórmula. O sistema político brasileiro é, em grande parte, dominado pelos interesses dos estratos mais ricos da sociedade, que financiam campanhas eleitorais e influenciam a formulação de políticas públicas; por isso, a resistência a qualquer proposta de redistribuição é imensa. As elites econômicas tendem a reagir com veemência a iniciativas que ameacem seus privilégios, invocando o falso argumento da fuga de capitais, do desestímulo ao investimento ou da “punição ao sucesso”.No entanto, a manutenção dessa lógica é insustentável. A desigualdade extrema não é apenas uma injustiça moral; ela é uma ameaça concreta à estabilidade política e social do país.
A concentração de riqueza produz um fenômeno perigoso: a desagregação do tecido social. Quando amplas parcelas da população são excluídas dos direitos básicos, o sentimento de pertencimento à comunidade nacional se dissolve. Crescem a criminalidade, a violência, o descrédito nas instituições e o autoritarismo. Em última instância, a democracia torna-se frágil, pois as massas desiludidas deixam de acreditar que o sistema político possa lhes oferecer algo.
Em meio a esse contexto, é preciso reconhecer que a reforma tributária não é apenas uma questão técnica, mas essencialmente política e ética. Trata-se de decidir que tipo de sociedade o Brasil deseja ser: uma nação em que poucos desfrutam de privilégios e muitos sobrevivem à margem, ou um país que reconhece a dignidade humana como valor central e busca promover a justiça social por meio de instrumentos concretos.
A desigualdade é simplesmente um resultado de escolhas políticas das elites do poder. Nos países europeus, especialmente após as grandes guerras do século XX, a implementação de sistemas tributários progressivos, aliada a políticas públicas robustas de bem-estar social, reduziu significativamente as disparidades e garantiu décadas de crescimento equilibrado.
Outro aspecto é a transparência internacional. Em um mundo globalizado, os capitais fluem facilmente entre fronteiras, buscando jurisdições de baixa tributação e sigilo bancário. Essa “concorrência fiscal” entre países enfraquece a capacidade dos Estados de tributar grandes patrimônios e favorece a evasão fiscal. Uma solução seria a criação de um imposto global sobre o capital, acompanhado de mecanismos de cooperação e troca de informações financeiras entre nações. Embora essa proposta ainda pareça utópica, ela aponta para um caminho de governança global capaz de conter a espiral de concentração e exclusão.
No caso brasileiro, a transparência e o combate à sonegação também são condições indispensáveis para qualquer reforma. Grande parte da perda da arrecadação do governo está associada a setores mais ricos, que se beneficiam de brechas legais, regimes especiais e planejamentos tributários. Enquanto isso, o pequeno comerciante, o assalariado e o consumidor arcam com o peso da arrecadação. Corrigir essas distorções é um passo decisivo para a construção de um sistema mais equitativo.
É importante ponderar que uma sociedade mais igualitária não é apenas mais justa, mas também mais eficiente. A concentração excessiva de renda reduz o consumo das massas, limita o dinamismo do mercado interno e, a longo prazo, freia o próprio crescimento econômico. A redistribuição, portanto, deve ser vista como condição para a sustentabilidade do crescimento e desenvolvimento económico. Economias com menor desigualdade tendem a apresentar maior estabilidade política, menores índices de violência e maior coesão social.
Os setores empresariais adotem uma postura menos reativa e compreendam que a justiça tributária não representa uma ameaça, mas uma oportunidade para fortalecer o próprio sistema capitalista e evitar sua implosão social. O “oásis” de privilégios em que parte das elites brasileiras vive não poderá se sustentar indefinidamente se o entorno for de miséria e desespero. O Estado, nesse contexto, deve atuar como mediador entre os interesses individuais e o bem coletivo, assegurando que a riqueza gerada socialmente beneficie também quem contribui para produzi-la.
O título “A humanidade nunca conheceu tanta riqueza, mas a repartição dessa exclui a maioria da população dos direitos básicos à vida digna” resume a contradição central atual. Temos os meios materiais, tecnológicos e científicos para erradicar a pobreza, universalizar o acesso à educação e garantir condições de vida dignas para todos. O que falta é a decisão política e moral de reorganizar o modo como a riqueza é distribuída. A reforma tributária justa, progressiva e transparente é um dos caminhos mais eficazes para iniciar essa transformação.
Em última análise, discutir a tributação é discutir o contrato social que sustenta uma nação. É decidir quem paga a conta, quem se beneficia e como os recursos públicos são utilizados. Reformar esse sistema é, portanto, não apenas uma necessidade econômica, mas uma exigência ética para restaurar o equilíbrio entre riqueza e dignidade humana.
*luiz césar silva é pós-doutorando em Economia pela Universidade do Porto; Doutor em Administração Pública pela Universidade do Minho (Portugal), Mestre em Administração Pública pela Fundação João Pinheiro – Escola de Governo – FJP, Especialista em Controladoria e Finanças pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG e Economista pela Universidade Católica de Petrópolis – UCP. É Professor de Administração e Gestão Pública no Instituto Politécnico de Bragança, Escola de Administração Pública, Comunicação e Turismo de Mirandela (EsACT-IPB). Lecionou no Departamento de Relações Internacionais e Administração Pública da Universidade do Minho. Atualmente, é membro do Comitê Científico da revista “Public Administration Research: Canadian Centre for Science and Education”.
Foto de capa: Pinterest




