Nova lei da CNH e as mudanças em estudo: entre o acesso e a segurança, o Brasil rediscute o direito de dirigir

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Trânsito intenso - Imagem gerada por IA ChatGPT

Por REDAÇÃO

O governo federal iniciou uma das maiores transformações no processo de habilitação de condutores das últimas décadas. De um lado, já está em vigor a Lei nº 15.153/2025, a chamada CNH Social, que permite o uso de recursos das multas de trânsito para custear gratuitamente a habilitação de pessoas de baixa renda. De outro, está em consulta pública um pacote de alterações mais profundas: fim da obrigatoriedade de autoescola, curso teórico on-line gratuito, instrutor autônomo credenciado e provas sem carga horária mínima, com foco em competência prática.

O objetivo é democratizar o acesso, reduzir custos e simplificar o processo. Mas o debate também revela as tensões entre inclusão social e segurança viária — e expõe a desigualdade estrutural de gênero e renda que ainda marca o trânsito brasileiro.

A CNH Social já é lei

Aprovada em junho e em vigor desde agosto de 2025, a nova legislação altera o Código de Trânsito Brasileiro (CTB) e permite que recursos arrecadados com multas sejam aplicados para financiar a 1ª habilitação de cidadãos inscritos no CadÚnico. O programa cobre todas as etapas: exames médico e psicológico, aulas, provas e emissão da carteira.

Além disso, moderniza procedimentos: a transferência de veículos agora pode ser digital, com assinatura eletrônica, e a vistoria pode ser feita de forma on-line, conforme regulamentação dos Detrans estaduais.

Alguns trechos foram vetados — entre eles, a exigência de exame toxicológico universal e a autorização para clínicas comuns realizarem esse exame.

O que vem por aí: um novo modelo em estudo

As mudanças mais amplas ainda estão em fase de consulta pública. O Ministério dos Transportes e o Contran estudam extinguir a obrigatoriedade de frequentar CFCs para as categorias A e B. O candidato poderá optar por um curso teórico público gratuito, contratar instrutor autônomo ou preparar-se por conta própria — mas continuará obrigado a passar nos exames oficiais.

Entre as principais inovações:

  • Sem carga horária mínima obrigatória; o foco será o desempenho.
  • Exame teórico on-line ou presencial, conforme infraestrutura do Detran.
  • Instrutores autônomos credenciados e fiscalizados digitalmente.
  • Uso de veículo próprio permitido nos exames.

O governo calcula que o custo da habilitação poderá cair até 80%, mantendo padrões de avaliação e fiscalização.

Por que a CNH ainda é inacessível para milhões

  • Custo elevado: entre R$ 2 mil e R$ 5 mil, com extremos de R$ 1.950 na Paraíba e R$ 4.951 no Rio Grande do Sul.
  • Burocracia: agendamentos fragmentados, prazos longos e etapas presenciais obrigatórias.
  • Reprovações: taxas próximas de 50% em estados como Mato Grosso do Sul.
  • Desigualdade territorial: regiões rurais e periféricas têm menos acesso a CFCs.
  • Golpes: fraudes prometendo “CNH sem prova” continuam em alta nas redes.

Desigualdade de gênero: as mulheres ainda são as mais prejudicadas

As mulheres enfrentam obstáculos específicos:

  • Renda média 20,9% menor, o que torna a CNH mais cara proporcionalmente.
  • Dupla jornada doméstica, que restringe o tempo disponível para aulas e provas.
  • Assédio em CFCs, que provoca desistência e novos gastos.
  • Dependência do transporte público, reduzindo autonomia e oportunidades de trabalho.

O governo reconhece o viés e promete priorizar mulheres chefes de família na CNH Social.

“A CNH é também uma ferramenta de emancipação econômica”, afirmou a ministra Cida Gonçalves. “Para muitas mulheres, dirigir é mais que mobilidade: é liberdade.”

Quem é priorizado nas famílias de baixa renda

Nas famílias pobres, a prioridade costuma ser o homem adulto ou o filho mais velho, geralmente para a categoria A (moto). A razão é econômica: a carteira pode gerar renda imediata em aplicativos, mototáxis e entregas.
As mulheres, com menos inserção nesses segmentos, ficam para depois — o que perpetua desigualdades de renda e mobilidade.

Segurança no trânsito: o ponto decisivo

A principal polêmica é se as mudanças podem aumentar o risco de acidentes.
Pesquisas internacionais indicam que não é a quantidade de aulas que garante segurança, mas a qualidade da avaliação e da supervisão inicial.

  • OCDE e OMS apontam que “educação tradicional isolada não reduz sinistros”; o que funciona é licenciamento graduado (GDL), provas exigentes e monitoramento nos primeiros meses.
  • Países que aplicam GDL, como EUA, Canadá e Nova Zelândia, reduziram de 10% a 30% as colisões entre jovens.
  • O Reino Unido, com o teste de percepção de riscos (Hazard Perception Test), obteve queda de 11% nos acidentes entre novatos.
  • Já programas de “treinamento rápido” sem supervisão aumentaram sinistros no Canadá e na Nova Zelândia.

Se o Brasil quiser democratizar sem perder segurança, terá de substituir a obrigatoriedade de autoescola por um exame mais robusto, criar um GDL nacional e monitorar os indicadores de sinistros de novatos.

O que é GDL (Licenciamento Graduado)

Definição: sistema em que o novo motorista conquista o direito de dirigir em etapas progressivas, com restrições temporárias que diminuem conforme acumula experiência sem infrações.

Objetivo: reduzir sinistros entre jovens e novatos, limitando exposição a situações de alto risco até que ganhem prática real.

Etapas:
1 Permissão de aprendizagem supervisionada — horas de prática obrigatória com instrutor ou motorista habilitado.
2 – Licença intermediária — dirigir sozinho, mas com restrições noturnas, de passageiros e álcool zero.
3 – Licença plena — liberação total após bom histórico.

Resultados: países que adotaram o GDL registraram redução de 10% a 30% em colisões e fatalidades entre novos condutores.

Adaptação sugerida para o Brasil:

  • Aplicar o modelo a novatos até 24 anos;
  • Exigir registro digital de horas via Carteira Digital de Trânsito;
  • Impor restrições noturnas e de passageiros por 12 meses;
  • Retirar as restrições apenas após um ano sem infrações.

Sugestões ao CONTRAN (Segurança com acesso)

1. “Trocar horas por competência”

  • Incluir teste de percepção de risco em vídeo.
  • Atualizar a prova prática com foco em atenção, antecipação e convivência.
  • Reprovação automática em manobras de alto risco.

2. Implementar um GDL nacional

  • Permissão supervisionada, restrições temporárias e progressão por mérito.
  • Publicar indicadores de sinistros de novatos.

3. Instrutor autônomo qualificado e auditável

  • Credenciamento rigoroso e recertificação bianual.
  • Identificação digital e veículos com QR Code.

4. Provas on-line seguras

  • Monitoramento antifraude e centros públicos digitais.

5. Transparência e metas de segurança

  • Dados abertos e meta de redução de 20% nos sinistros em três anos.

6. Igualdade de gênero

  • Cotas para mulheres na CNH Social e políticas antiassédio obrigatórias.

7. Comunicação educativa

  • Campanhas nacionais sobre riscos e convivência segura.

Trânsito mais acessível e mais seguro

A modernização da CNH pode tornar o trânsito brasileiro mais acessível e mais seguro, mas o sucesso dependerá de como as novas regras forem implementadas.
Com avaliações rigorosas, licenciamento graduado e políticas inclusivas, o país pode repetir a experiência positiva de nações que ampliaram o acesso sem piorar a segurança.

Mas, sem controle e transparência, o risco é alto: mais habilitados, mais acidentes e mais desigualdade.
O desafio é equilibrar inclusão e segurança — e garantir que dirigir no Brasil deixe de ser um privilégio para se tornar, enfim, um direito responsável.

Ilustração da capa: Trânsito intenso – Imagem gerada por IA ChatGPT


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