Por SOLON SALDANHA*
Uma mulher de 38 anos de idade, casada e mãe de dois filhos, residente em Paulínia, no interior de São Paulo, viaja de ônibus sem ter pago pela passagem e se dirige até Brasília, distante 896,7 quilômetros. Se ausenta de casa e da família que certamente precisaria dela e, uma vez na capital federal, fica em acampamento na frente do Quartel-General do Exército, aguardando por instruções. Depois de recebê-las, ela se une à turba de anencéfalos doutrinados que de fato acreditava que salvaria o país, caso invadisse e destruísse tudo o que pudesse nos prédios da Praça dos Três Poderes. Então, acaba filmada escrevendo na conhecida como Estátua da Justiça (*) a frase “Perdeu, Mané”, provavelmente dirigida ou a um dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) ou ao presidente da República recém eleito. E se vangloria disso, fazendo pose e rindo do seu ato “corajoso e revolucionário”.
Identificada, presa e processada, Débora Rodrigues dos Santos está sendo julgada junto com algumas centenas de outros invasores. São vários os crimes cometidos por ela e seu grupo. Em seu caso específico consta associação criminosa armada, deterioração de patrimônio tombado, dano qualificado e outros mais. Entretanto, a extrema-direita está divulgando mensagens enganosas de que “apenas por ter usado seu batom” ela deve pegar 14 anos de prisão. Dois ministros já votaram pela condenação, faltando outros três. A condenação, caso venha a ser confirmada, é pelo conjunto da obra. Inacreditável é que ela disse, no depoimento prestado aos ministros do STF, que achava os prédios todos muito bonitos e que por isso estava lá, tirando fotos. E que nunca tinha se afastado dos seus filhos. Ou seja, jura que fez a viagem por motivos turísticos, tendo tudo pago por estranhos, abrindo mão da companhia deles e do marido. Só faltou afirmar que a bandeira do Brasil que usava no pescoço ela encontrou por acaso, jogada no chão, e que considerou que ficaria bonita com ela como echarpe.
Jogada à própria sorte pelos verdadeiros interessados na concretização do golpe de estado, como boi de piranha daqueles magros e doentes, ela parece começar a se dar conta da imensa bobagem feita, da fria na qual se metera. Mesmo assim, prossegue sendo usada, agora como exemplo de uma pobre vítima, “levada por fortes emoções e no afã do momento” a cometer um ato tresloucado. Eis que um vídeo dela, chorosa e pedindo perdão, viraliza agora na Internet. Na falta de imagens de velhinhas com Bíblias na mão e de crianças – uma vez que não estavam no local, dia 8 de janeiro de 2023 –, agora se tornou importante mostrar mulher que foi subitamente alçada à condição de mãe e esposa exemplar. Sim, ela cita os filhos, uma vez que depois da prisão sua memória e sua afetividade parecem ter subido de patamar.
Na realidade seus parceiros golpistas estão pouco se lixando para a sua condição atual ou futura – exceto pelo “detalhe” do PL já estar cogitando lançar a candidatura da dita para deputada. Apesar da repercussão ter permitido que ela fosse para casa aguardar o término dos votos, usando tornozeleira eletrônica, o que interessa a eles neste primeiro momento é que esta é uma peça a mais no tabuleiro que busca a anistia para todos os golpistas. O que, em grau máximo, se fosse alcançado, significaria trazer de volta a possibilidade de Jair Bolsonaro concorrer à presidência em 2026. Isso, além de afastar o risco de vários militares conhecerem mais de perto prisões que, mesmo assim, nem de perto lembrariam aquelas onde eles enjaulavam sem julgamento os opositores do seu regime autoritário e violento.
Jacinta Velloso Passos, escritora e poetisa, nasceu em 30 de novembro de 1914, na cidade de Cruz das Almas, na Bahia. Foi casada com James Amado, irmão do escritor Jorge Amado. Seu primeiro livro foi lançado em 1942, em coautoria com seu irmão mais novo, Manoel Caetano Filho, e se chamava “Nossos Poemas”. O segundo, “Canção da Partida”, é de 1945 e foi ilustrado com desenhos de Lasar Segall. No total foram quatro obras, que receberam elogios de críticos do porte de Mário de Andrade, Antônio Candido, Roger Bastide e Aníbal Machado. Em setembro de 1951, após participar do IV Congresso de Escritores Brasileiros, em Porto Alegre, retornou ao Rio de Janeiro, onde teve uma forte crise nervosa, seguida de delírios. Era o início de uma série de transtornos mentais que passou a enfrentar.
Em 1965, quando morava em Sergipe, foi presa por escrever, no muro da sua própria casa, a frase “Liberdade à Pátria”. Terminou espancada e torturada a mando dos militares, que não levaram em consideração as suas condições, de fragilidade física e emocional. Agora, fardados que tiveram uma formação idêntica àqueles do golpe de 1º de abril de 1964, considerados ídolos por eles, estão às voltas com outra mulher e outra pichação, com a qual buscam se beneficiar. Só que não se pode de modo algum tentar equiparar a intensidade, o local e a circunstâncias dos dois atos – até porque só o recente é crime. Assim como, atualmente, o que foi feito como reação foi a aplicação da lei e não uma ação arbitrária e desumana, como a anterior.
*Solon Saldanha é jornalista e blogueiro.
Texto publicado originalmente no Blog Virtualidades.
Foto de capa: Gabriela Biló
Respostas de 2
Perfeito!Não tem comparação!
Parabéns pelo valoroso texto aqui publicado, o qual, deve ser ser ressaltados e divulgados por todos os meios possíveis, para à reflexão daqueles que clamam por ditaduras e reforçar os pedidos de todos que gritam: SEM ANISTIA! SEM ANISTIA!