Nada demais, só um exame de rotina

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Pot JORGE BARCELLOS*

O capitalismo nos envolve como a água que envolve os peixes sem eles se darem conta, assim como nós não nos damos conta da presença do capital em nosso dia a dia.

Vou a uma famosa clínica de exames laboratoriais de Porto Alegre, na Avenida Nilo Peçanha. É sexta-feira, 9h da manhã. Acordo com a certeza de que hoje vou usar a empresa que se apresenta como líder de mercado em assistência à saúde. “É só um exame de rotina” – disse meu cardiologista. Mas as coisas não são tão simples assim na sociedade ultracapitalista. Cada ação que fazemos retrata a história desse mundo. Só de chegar para o exame já passo trabalho. Para você ter uma ideia, a clínica possui dois estacionamentos. Prova de que vivemos, na cidade, em primeiro lugar, as mazelas da sociedade do automóvel, o seu primeiro problema. Passo pelos dois estacionamentos que já estão lotados. Num deles, a motorista à minha frente já pede para retornar, afirmando que está tudo lotado. Começo a dar voltas pelos quarteirões e surpreende-me a existência de tantos carros já estacionados ao longo de ruas que, no passado, eram vazias. Talvez clientes da própria clínica. Fico a cerca de três quarteirões e devo dizer que tive sorte de achar uma vaga.

Chego à clínica para começar mais um exame de rotina. Quando dizemos “de rotina”, subentendo, como afirma Agnes Heller, que é algo que faz parte da vida cotidiana. Ir a um laboratório desse tipo faz parte do mundo da vida social, no qual se introduz nele de forma dialética. Em seu O Cotidiano e a História, Heller afirma que, abstraída de seus determinantes sociais, toda vida cotidiana é heterogênea e hierárquica, e na clínica, tem seu conteúdo atribuído à função de realizar nossos exames; é espontânea no sentido de que, nela, as ações se dão automática e irrefletidamente, exatamente como quando chegamos ao laboratório e seguimos seu itinerário; é econômica, uma vez que pago um plano que, por sua vez, arcará por seus serviços. “Portanto, as ideias necessárias à cotidianidade jamais se elevam ao nível da teoria, assim como a ação cotidiana não é práxis, [mas] baseia-se em juízos provisórios, é probabilística e recorre à ultrageneralização e à imitação”. É nesse marco que ela teoriza sobre o pensamento e o trabalho, a ciência e a arte, os contatos interpessoais e a personalidade (Heller, 1972, apud Patto, disponível aqui). Por isso, elevar uma experiência comum à demonstração das forças do capital é o objetivo aqui.

Totens por todo o lugar

Depois do martírio da busca da vaga, começa outro, o do atendimento. Eu estranho o lugar porque você não entra mais e se dirige a um atendente, como no passado. Você se dirige a um totem. Vivemos num mundo tomado por senhas e tentar compreender estes mundos é colocar-se na posição de um viajante imaginário que se depara com estas situações como quem se depara com as formas do capitalismo estabelecido no cotidiano. Meu esforço é justamente o de reconstituir a sociedade a partir dele e a senha que tiro é o ponto de partida, ela simboliza a imagem que resume este mundo. Para o filósofo Jean Baudrillard em Senhas (Difel, 2001), “a palavra me parece designar com precisão um modo quase iniciático de penetrar no interior das coisas, sem ter que ordená-las em um catálogo. Pois as palavras são portadoras, geradoras de ideias, mais ainda, talvez, que o inverso. Operadoras de encanto, operadoras mágicas, não só porque transmitem essas ideias e aquelas coisas, mas porque elas próprias se metaforizam, se metabolizam umas nas outras, segundo uma espécie de evolução em espiral” (p. 7). É assim que o autor inicia o livro que irá resumir os principais conceitos de seu pensamento e que serviu de roteiro para um filme concebido por Leslie F. Grunberg e realizado por Pierre Boureois. É assim também em minha experiência rotineira de exame de sangue, que descreve o mundo dos laboratórios como canteiro de obras do capitalismo em que vivemos. Aqui, tirar a senha inicial de atendimento é também iniciar o roteiro de um caminho das formas que assume o capital na vida cotidiana e que vale a pena a reflexão.

Nem sempre foi assim. Leio na revista Pharmacia Brasileira (nº 90, Maio 2018/Dezembro 2019) que a gênese das análises clínicas data de mais de 4 mil anos antes de Cristo, quando foram localizadas placas de argila desse período que trazem documentada a avaliação de urina por médicos sumérios e babilônios. “Ali, teria acontecido o que seria o primeiro exame de diagnóstico laboratorial. Povos da cultura hindu já sabiam que a urina de alguns pacientes era adocicada e atraía formigas, sinalizando para o diagnóstico de uma doença (o diabetes, que não era conhecido, então). À época, a medicina era centrada exclusivamente no exame físico e na observação do paciente. Nesse sentido, os médicos sumérios e babilônios estudavam os sintomas, analisando as substâncias eliminadas naturalmente pelo corpo. “Após, sucederam-se registros em papiros egípcios que fazem referência a doenças na urina, no chamado papiro Ebers, descoberto em 1872 pelo egiptólogo e monge alemão Georg Moritz Ebers, ‘um dos tratados médicos mais antigos e importantes que se conhece’.” A enfermidade recebeu o nome de diabetes no século II d.C.na Grécia Antiga. Acho curioso: sou historiador e tenho pré-diabetes. Faço parte da história.

Aliás, minha pré-diabetes tem preocupado os laboratoristas. Em 1900, foram introduzidos métodos enzimáticos para glicose em papel filtro. “Eles foram utilizados para teste de urina e sangue. Quarenta e um anos depois, outro avanço: o lançamento do primeiro teste de glicose na urina. A empresa Miles colocou no mercado diagnóstico in vitro, o revolucionário Clinitest. Tinha o formato de tabletes efervescentes e visava a testar a presença de açúcar na urina. Foi a empresa que desenvolveu as tiras reagentes de urina parecidas com as de hoje. Elas são utilizadas para testar analitos contidos na urina, como pH, densidade, glicose, proteína, bilirrubina, presença de sangue, leucócitos.”  Os avanços vão além e envolvem até coleta em casa com análise digital. Por favor! Nem tanto. Deixem-me sair de casa, tomar um ar, ver o verde, conversar com pessoas e permitam-me o suspense do resultado. A indústria laboratorial mata o cliente por seus métodos. Mata a sedução presente no segredo dos exames por fazer.

O capitalismo onipresente

Dizemos que o capitalismo nos envolve como a água que envolve os peixes sem eles se darem conta, assim como nós não nos damos conta da presença do capital em nosso dia a dia.   Nele, vivemos num mundo em que se acumulam estratégias para organizar nossos movimentos que pensamos naturais, mas que não são. Começa num gesto simples.  Você já passou por isso no balcão de empresas, bancos e filas em geral: ali as senhas estão para estabelecer uma ordem de chegada. É a democracia pelo acesso pelo tempo de chegada: quem chega antes é atendido antes, quem chega depois, mais tarde. No mantra que diz “todos consumimos”, ao menos o capitalismo impõe sua forma de fazer justiça. A senha é o seu instrumento, é uma das mais antigas formas de organizar o acesso, mas aqui, do modo como nos é apresentada, por um totem eletrônico, sinaliza a adoção da forma de administrar hegemônica no capitalismo atual: a administração por excelência, o modelo de gestão estendido a empresas, multinacionais e grandes consultorias do mundo interior com o objetivo de torná-las mais “modernas”. Não é um pedacinho de papel de um mecanismo simples da minha infância, é um sofisticado computador a serviço da numeração de pacientes. Só eu que vejo exagero nisso? Esse modo de registro nos diz que a clínica quer ser eficiente em sua prestação de serviços. Você está na fila de espera e dá uma olhada no site da clínica: essa ideologia está tudo ali. Você lê na página de oportunidades de trabalho expressões como “paixões que viram carreiras” e está nas fotos de pessoas sorridentes que prometem a capacitação profissional que “vivem a paixão em cada passo”. Eu desconfio de pessoas sorridentes sob o jugo do capital.

O grau de aderência a esta ideologia é variável. Há aqueles que acreditam plenamente nela e aqueles que já perderam o encanto. Vejo uma jovem atendente sorridente que atende junto aos totens. Ela circula entre os atendentes, vai de um lado para o outro. Ela parece realmente feliz ali. Ela tem parte das características que Meenakshi Gigi Durham enumerou em “O efeito Lolita” (Laurosse, 2009): a da menininha, provavelmente uma estagiária, encantadora e pronta para seduzir com seu sorriso o cliente. Ela contrasta com a atendente que me recebe depois que o painel me chama pelo número: ainda que ela aja corretamente em seus procedimentos, não tem o mesmo sorriso e entusiasmo no olhar, provavelmente pelo já cansaço do início do dia de trabalho. Nessa forma como é organizado o atendimento, não há tempo para conversar, sorrir ou dialogar. É preciso preencher formulários um após o outro, dar ciência ao paciente dos exames que serão feitos, o que significa desresponsabilizar o laboratório pela ciência de que não fizemos nada que possa estragar os exames, etc. É sua dupla função, proteger a nós e à empresa de nós mesmos.

Não é possível que tanta gente para atender não cause estresse nesses trabalhadores. Eu olho a fila de atendentes e poucos sorriem. Poucos conversam. Tratam de preencher formulários. Metas precisam ser preenchidas. O tempo precisa ser vivido rápido e intensamente. Sabemos dos problemas causados pela cultura da excelência nas empresas desde que Nicole Aubert & Vicent de Gaulejac em “El coste de la excelencia” (Sapere Audi, 2017) nos alertaram que esta política tem um preço: o estresse permanente, o burn out, os desequilíbrios físicos e psicológicos, a depressão e até os suicídios no trabalho, sintomas que constituem o lado oculto desta organização de prestação de serviços de saúde que busca pelo sucesso. Minha atendente tem o olhar cansado e somente posso pensar que se deve a essas condições. É um lugar que vende alegria e contentamento, mas entrega apenas mal-estar e angústia para todos, inclusive seus trabalhadores. Também sou contra empresas que treinam seus funcionários para “parecerem” felizes, que transformam atitudes dos trabalhadores em seus ativos. Obrigar a sorrir devia ser um crime inafiançável. Na minha clínica, passando pelo vigia aos atendentes, foram poucos os sorrisos que imitavam as imagens de felicidade do site. Mas eles existem, ainda que em menor número, ao menos no sorriso da atendente da recepção. Espero não estar errado.

O difícil é chegar

Como disse, depois de circular procurando uma vaga e sofrer o estresse que isso produz, chego na clínica que promete que não terei estresse em seu atendimento, mas o que vejo é que esta é uma verdade parcial, pois é somente verdade da porta para dentro, porque da porta para fora, o mundo é seu e você que se vire. Não é somente culpa da clínica, é claro. Paris Marx, em Estrada para lugar nenhum (Ubu 2024), mostra que Porto Alegre, assim como diversas cidades, é vítima da carrocracia, projeto histórico de exclusão e aliança de classe entre setores de transporte, combustíveis e atores políticos que produz concentrações urbanas que estabeleceram o transporte individual como escolha lucrativa para o mercado. Sim, há carros demais na cidade. Sim, os estacionamentos não são mais suficientes para dar conta de tamanha frota. Quem já disputou a unha uma vaga em estacionamento de shopping center, onde podem ocorrer situações de violência por elas, sabe do que estou falando.

A região onde hoje está o Shopping Iguatemi e onde localiza-se minha clínica é produto de um modelo de expansão da capital que privilegiou não apenas a zona norte, mas também o incentivo para que as pessoas dirigissem carros. Quando chegamos à clínica e ela imediatamente permite seu acesso através de serviços digitais e aplicativos, seja dela própria ou da minha prestadora de serviços médicos, onde constam a lista dos exames que necessito fazer, tudo também é parte desse impulso de expansão capitalista. Eu havia ido no dia anterior à própria sede prestadora, perto da minha casa, que também faz esses serviços para fazer os mesmos exames, mas desisti ao saber que não havia nenhuma comunicação entre os sistemas. “O exame aqui entrará no meu histórico?”, perguntei à atendente. “Não, cada sistema é um sistema”, ela respondeu. A minha clínica exerce poder sobre mim porque tem em seus arquivos a minha evolução médica, o que é importante na hora de comparar a evolução de meus exames. É o meu sangue e urina no tempo. Estou tão entregue ao poder que exercem os sistemas informáticos como ao que produziu o atual sistema de transporte, já que desisti de economizar, de fazer uma vida saudável, a caminhada e voltei para o uso do transporte aberrante do carro, para não mudar de clínica. “Em última instância, a construção de cidades aprimoradas e a melhora da vida das pessoas exigem a contestação das estruturas do capitalismo em si mesmas – estruturas que são projetadas para servir ao lucro em detrimento das pessoas”, diz o autor (Marx, p. 314). As clínicas poderiam se inspirar nas farmácias e as teríamos por todo o lugar – penso – e aí teríamos um mundo mais descentralizado.

A senha inspira

Com minha senha em mãos, vou para a sala de espera. É uma sala com onze atendentes para cinquenta pessoas em espera. Há quatro totens de recepção e três telas de TV que apontam para o número da senha. Leio na parede a expressão “A saúde inspira”. Inspira o quê, cara pálida? Ela quer inspirar aos pacientes a qualidade dos serviços, a adoção, pela empresa, da ideologia da excelência, a que se colocava a exigência de resultados “cada vez melhores”, “cada vez mais perfeitos”, em que servidores e empresa compartilham de ideais de desenvolvimento e são “felizes! A saúde inspira a qualidade dos serviços que querem oferecer, subentende-se.  Ela me inspira, entretanto, uma leitura crítica dessa ideologia que mistura aspiração de desenvolvimento pessoal e da empresa.   A ética da excelência aprofunda a ética protestante de que fala Max Weber, pois propõe o trabalho sem trégua e o êxito como prova e meio da salvação pessoal, para as empresas. Não é bem assim.

É que a tal ética da excelência destas clínicas é a mesma daquelas empresas que substituíram a salvação no outro mundo pela salvação neste. “Assim, da mesma forma que o empreendedor protestante investia em seu trabalho para ver seu êxito nos signos de sua eleição e de sua salvação, o homem managerial cujo perfil trazemos nesta obra, inverte na empresa para escapar ao vazio social, à falta de referência, à falta de sentido, e assegurar assim, mediante triunfo de sua profissão, a consagração de sua existência terrestre (Gaulejac, p. 18, na minha tradução). Ela surgiu na década de oitenta, diz o autor, como “fundamentação moral de um tipo de sistema que pretende abarcar a totalidade do indivíduo e defende uma mobilização psíquica intensa, uma captação dos desejos individuais – de êxito, de amor, de carreira profissional – um ‘reclamo de paixão’ – a empresa busca gente disposta a entregar-se totalmente a seu trabalho – e a um controle permanente de adesão de cada um” (p. 18). Não vejo nada disso por aqui, apesar da intenção evidente de seus proprietários.

Aqui temos novas identidades, não há cidadãos: de um lado, há atendentes, e de outro, marcados pelo contexto de sua mundialização, os pacientes. Aqui o corpo é superior à cidadania. O público que aguarda é, na sua maioria, de idosos. Recebo a senha preferencial 183, ainda que haja cerca de dez na frente. Há outras senhas em andamento, sinônimo de outras categorias em que são divididos os visitantes: tem aqueles que querem pegar um exame cópia física, há aqueles que querem marcar exame, há os do atendimento normal e assim sucessivamente. Para a empresa, o exame que antes vinha num envelope lacrado impresso em papel e só aberto na presença do médico é uma raridade substituída pelos resultados distribuídos via internet no próprio site da empresa, acessível apenas por uma… senha! Fim do suspense, fim do mistério, substituído pela tentativa de auto-interpretação dos resultados. Você é médico de si mesmo? Claro que não, mas você… aspira. Ficou pior com a internet, com os sites de orientação médica. O universo digital está por todo o lado.

O celular como babá

É o mesmo com as pessoas que aguardam sua vez com sua senha.  A maioria está fixa em seus celulares. Eu estou, mas faço uso diferente, estou anotando o que vejo. Ele substitui meu bloco de anotações do antropólogo em campo.  Vejo ao longe que uma vizinha mora no prédio ao lado do meu. Ela, de mais idade, como eu, compartilhando um lugar. Eu imagino que minhas visitas a este lugar ficarão mais constantes com o passar dos anos, como as dela. A enfermeira chama Maria Eduarda e chama outra pessoa que entra. Os enfermeiros seguem-se em sua chamada.   Aguardo. De um lado, atendentes fazem o registro, de outro, enfermeiros fazem a chamada: estamos na linha de montagem moderna. Como se sabe, a linha de montagem surgiu com Henry Ford no início do século XX, nos Estados Unidos. Seu objetivo era acelerar a produção de automóveis, reduzir o custo e o tempo de fabricação. Sou exatamente como aquele Ford Modelo T, de 1913, estou neste novo modelo de eficiência, não industrial, mas laboratorial, mais uma etapa das análises clínicas. A linha de montagem se espalhou para a indústria farmacêutica e laboratorial. Várias formas de gestão foram engendradas para a melhoria de seus processos, como o 5S.  No capitalismo, nada se cria, tudo se copia.

Assim, a imensa sala onde estou não é uma recepção, mas uma linha de montagem da análise clínica. Ela funciona como um mapa, dizendo a todos o seu lugar, é onde se faz o caminho para a coleta dos exames, como a linha de montagem dizia como era instalado o motor e demais partes de um carro. Depois, quando fui atendido pela enfermeira, vi seus atos cronometrados e, como das demais vezes que fiz exames ali, as perguntas como “em que braço prefere”, referindo-se à coleta, primeira fala que se estabelece no lugar; logo a seguir, a segunda “confira seus dados”, onde ela mostra as etiquetas que identificam seu nome e as da mostra. Tudo isso, é claro, tem o objetivo de tornar claro, didático, objetivo e transparente os processos, a tal “qualidade”, de que me fala a frase do salão, e proteger a empresa de processos. Mas sou de um tempo em que nem sempre isso foi assim.

Não se fazem mais consultórios como antigamente

Eu me lembro que, quando minha mãe ia ao dentista e eu ainda era jovem, ela ia a um consultório antigo na frente do HPS. Era ali atendida também por um dentista já idoso, mas o que me chamava a atenção no lugar eram duas coisas: a primeira, seu instrumental antigo, as antigas seringas de vidro e outras peças que só vemos no Museu da Faculdade de Medicina. A segunda era o hábito da conversa. Antes de começar o procedimento, aquilo não era um atendimento, era um encontro. Parava-se para conversar. Mesmo que o dente tivesse dor, ainda assim, dava tempo para falar da vida. E isso por uma razão simples: ambos precisavam disso, dessa socialização por meio do trabalho, que só a atividade de serviço proporciona. Isso dava uma imensa tranquilidade ao lugar. Não havia nenhum sistema de qualidade por detrás, não havia a pressão por atingir metas, e por isso, as pessoas se sentiam tranquilas. Hoje, com toda a filosofia da qualidade que se apresenta, o ambiente é nervoso. A produtividade está ali nas metas de atendimento, nos processos que visam atender à massa de clientes. Isso tudo produz estresse para os trabalhadores e não cria um ambiente acolhedor.  O modo como funciona o capitalismo também adoece, diz Gaulejac.

Enquanto aguardo, vejo diante de mim um jovem, provavelmente um sobrinho, que tenta ver seu celular, mas a tia, ao lado, insiste por atenção mostrando as coisas que vê em seu celular. É isso, a questão nunca foi a doença em si, mas em como obter atenção nesse mundo. Por isso, a necessidade da conversa num lugar como esses, algo que um capitalista jamais será capaz de compreender. Seu objetivo é o lucro, atingir metas, o pessoal não importa. Isso só piora com a massificação dos serviços de saúde. Não é como o dentista em frente ao HPS, o senhor idoso experiente que aguarda seus pacientes para também uma conversa, mas uma linha de montagem que se quer impessoal. Bem-vindo ao meu laboratório, que possui também, ao fundo, uma grande imagem de paisagem. É uma bela cena de um parque, com árvores, um rio onde há uma ponte, mas mesmo na imagem que quer trazer tranquilidade, afinal, você está fazendo exames e alguns podem ser decisivos, sinal de que pode ter um problema, mesmo ali a imagem tem ao fundo prédios escondidos que estão lá para garantir que você saiba, ainda que inconscientemente, que vive os problemas na sua cidade. Há ali também uma chamada para uma seção infantil, pois também é preciso conquistar e tranquilizar essa faixa de idade.

Quer-se um ambiente de clínica estimulante, como se quer que escolas tenham ambientes favoráveis ao aprendizado e que a forma de organização do hospital auxilie na cura dos pacientes. Arquitetos e psicólogos vêm se dedicando ao conceito de ambiência, produto do avanço das neurociências, que “buscam pensar não apenas em ambientes funcionais e adequados às nossas necessidades práticas e cotidianas, mas em espaços que eliciam emoções agradáveis.” Parece ser um esforço de humanização, mas não é.  A neuroarquitetura, a área que se debruça sobre esta relação, quer ver como o meio modifica nossa química cerebral para a promoção da saúde. O motivo é nobre, mas de boas intenções, o inferno está cheio. Muitos as defendem, eu não. Essas empresas privadas querem criar ambientes agradáveis como distinção de mercado, já que, como se sabe, a arquitetura pública é feia e sem graça. Usam do clima ambiental para dissimular seu objetivo de lucro. Querem apenas nos seduzir.

A aspiração à beleza

Se quisessem melhorar realmente seus espaços, gostaria que voltassem apenas ao velho e clássico conceito de beleza, sem o atravessamento de novas disciplinas e atores. Tornar os seus espaços belos não é adquirir móveis funcionais. Não é necessário encontrar fundamento biossociais para saber que ficamos melhor em ambientes belos. A história humana é suficiente para defender o argumento desde Platão, para quem a beleza era um objeto de conhecimento e forma de acesso ao transcendente, ou é um dom de Deus e um atributo do ser desde Tomás de Aquino. Como bem destacou Roger Scruton em Beleza (É Edições, 2013), ela é fundamental para uma vida bem vivida. Sim, meu caro leitor, é a primeira vez que cito aqui nas páginas de Sler um autor reconhecido como de direita. Mas só posso dizer que, em sua defesa, este não é um texto político, mas estético; que ele se sai melhor como síntese clássica do que muitos manuais de arte e, finalmente, que nós, mesmo de esquerda, devemos saber o que dizem sobre temas de nosso interesse os autores de direita.

Estar no meu laboratório de análises é como estar no parque da Disney do atendimento médico. Como o centro de lazer, o laboratório quer nos proporcionar sensações alegres, mesmo num espaço tenso; quer organizar os fluxos nos detalhes impressos no projeto do lugar. Ao contrário da Disney, no entanto, não é um espaço aberto onde entra a luz do dia, mas um espaço fechado e branco como os corredores hospitalares. Cada “cela”, analogia que faço com os quartos dos antigos internatos da capital, tem o objetivo de ser um espaço privado para o enfermeiro e o paciente. Mas a imagem de um parque natural que o plotter do saguão central mostra é bem diferente de passear por espaços verdes, estes sim, uma contradição notável com a fórmula de expansão das cidades. A proposta só pode ser preservada na aparência, na imagem. Penso que os laboratórios, se quisessem realmente cumprir com o campo de signos que produzem para si, deveriam ter espaços livres, pequenos jardins para as pessoas. Diz Clara Parente B. Ok, que “Um estudo do Centro Europeu de Meio Ambiente e Saúde Humana da Universidade de Exeter descobriu que pessoas que passavam pelo menos duas horas por semana em espaços verdes (como parques naturais) eram sensivelmente mais propensas a relatar boa saúde e bem-estar psicológico do que pessoas que não o fazem. Os pesquisadores britânicos ainda sugerem que o simples fato de viver em área urbana com espaços verdes tem um impacto positivo a longo prazo no bem-estar dos moradores da cidade” (disponível aqui). Se querem evocar nossas emoções, façam da maneira certa! Se não, é justamente o contrário que pode acontecer: espaços podem ser mal projetados e, mais, podem flagrantemente ser vistos como produtores de ilusão. Que sentido tem um lugar que vende uma imagem positiva em suas paredes, mas submete seus clientes a uma organização fordista aplicada às clínicas?  Mostra-se uma imagem de paz que as praças promovem para, em seguida, viver-se no estresse da próxima chamada.

Isso acontece porque estamos diante da arquitetura capitalista sob o viés da ideologia. Ela continua a ser funcional, prática, visando o menor custo possível, mas ainda quer aparecer como uma arquitetura “moderna”, “para frente”, “empreendedora”. Em realidade, seus projetistas não fazem mais do que repensar a arquitetura das prisões para o campo médico. Se as condições não são fisicamente desumanas, como aquelas, são, com certeza, psicologicamente desumanas: é só olhar a face de seus trabalhadores ao final de um dia de trabalho.  Evocar sentimentos de acolhimento em hospitais pode ser tão violento quanto provocar sentimentos de medo na arquitetura das prisões, porque o que está ali não é a beleza que um espaço poderia conter, mas, ao contrário, o fim e objetivo último é manipular o paciente para um objetivo de capitalizar em cima de seu desejo. Temo por uma parceria de neuroarquitetura do empreendimento capitalista.

Organizando multidão de exames

Neste espaço organizado, quem chega pega senha. Quem já a tem, aguarda. É a forma do racionalismo administrativo que organiza multidões. Chamam a senha 5265. Não sei como estas listas são organizadas. Será a numeração da semana? Do dia, é impossível, pois estamos no início dos dias.  Cada numeração tende a ter públicos diferentes. É como a fileira dos peões do jogo de xadrez. As pessoas são chamadas e ficam na imensa fila dos atendentes, como a primeira fila de peões do jogo. As enfermeiras chamam para uma dúzia de salas de exames. Estou com fome. Há bolachas numa mesa como se fossem a tentativa de adiamento de minha consulta. Elas estão ali para me tentar. Se eu ceder a este desejo, teria de vir outro dia, aliviando a fila. Sempre que venho aqui, está cheio. Talvez pelo hábito já socializado. Dormi às 8h e vim direto para os exames. Quem passaria o dia com fome para fazer seu exame no fim do dia? Está próxima a minha chamada.

Chamaram a tia. O jovem já pode descansar com o olhar para seu celular sem interrupção. Nem o casal que veio junto fazer exames e poderia aproveitar para conversar, conversa, pois estão entretidos com suas telas. O celular é essa imensa baba que distrai de nossas preocupações, mas ele não pode nos distrair da preocupação com a morte. A atendente recolhe potinhos de uma cliente. Estão em um saco plástico, pois mesmo aqui, é vergonhoso andar de um lado para outro com nossos excrementos. Ah, é claro, o exército de maquininhas de cartão em cada atendente, que funciona como defesa. Se não tiver convênio, você paga. Nesses lugares, ainda há um traço da solidariedade familiar.

Netos que trazem seus avós, filhos que acompanham seus pais. Se casais não conversam, desconhecidos sem celular puxam assunto. Elas, como eu, observam o mundo ao redor. Como eram no passado as clínicas de exame, as rotinas para fazê-los. O próprio instrumental era diferente, serei o próximo a ser chamado. Euforia. Vou até a cabine de atendimento. Descubro que meu médico também pediu exame de urina, e não me preparei. É isso que acontece quando as relações médico-paciente são rápidas demais, sem a conversa, sem o olhar. Se ele me disse, não fez com suficiente ênfase. Ele passa a maior parte do tempo colado no notebook enquanto me atende, ainda que faça os exames de praxe. Ele insiste: sou pré-diabético e, sucessivamente, os exames comprovam isso. Ainda não passei a linha tênue, o limite. E se essa for apenas a minha condição permanente, estar sempre no limite? Por que não, já que todos estamos sob o limite: no trabalho, no dia a dia, na família, os trabalhadores do laboratório em que estou agora. Os exames são apenas “marcadores”, expressão que aprendi que indica referências. O capitalismo nos impulsiona para o limite da exploração, o corpo nos impulsiona para o limite das doenças.

O meu exame

Enfim chegou minha hora. Todos sabemos destes exames. Ela pede para escolher um braço. Esse é um momento delicado. Se eu escolho e erro, é uma veia difícil, a dor será maior. Sou interesseiro, digo que isso é prerrogativa da enfermagem, “a que achar melhor”. Enfia agulha, separa frascos, um a um, ali vai meu sangue para o purgatório dos exames, aguardando sua definição. Terei em três dias o resultado. E mais uma coluna abrir-se-á em meu histórico, permitindo comparações. Piorei? Melhorei? Ali ainda começa tudo muito programático, até que então, procuro puxar a conversa, como se isso fosse um pecado capital do lugar, pois rouba tempo dos atendentes para atender novos pacientes e atingir metas. Ela conversa, o que me surpreende. Falamos que nossos pares têm medo de fazer exames, ao contrário de nós, que gostamos; falamos da dificuldade de baixar a glicose pelo amor aos doces e por aí. Vai. O tempo passa. Os movimentos são mais lentos, tudo tem tempo. Nesse instante, fico alegre por ter rompido as estruturas da vida cotidiana da empresa, de que fala Agnes Heller.

Aquela menina sorridente que vi no salão que se distinguia no laboratório ainda estava ali na saída. Eu pensava que ela talvez fosse a última esperança da empresa em reservar um lugar para a alegria em seu interior, mas acho que me enganei. Logo a imagem que ficou na minha memória se desvanece: eu a vejo com olhar perdido, aguardando o próximo cliente a entrar pela porta. Triste. Esse olhar perdido é o dos demais trabalhadores também, das mais diversas empresas e serviços, sempre a guardar. A espera nos coloca em relação ao tempo nestes lugares. Tive tempo de observá-lo, mas a vida passa por ele veloz.


\publicado originalmente Sler.

*Jorge Barcellos é graduado em História (IFCH/UFRGS) com Mestrado e Doutorado em Educação (PPGEDU/UFRGS). Entre 1997 e 2022 desenvolveu o projeto Educação para Cidadania da Câmara Municipal. É autor de 21 livros disponibilizados gratuitamente em seu site jorgebarcellos.pro.br. Servidor público aposentado, presta serviços de consultoria editorial e ação educativa para escolas e instituições. É casado com a socióloga Denise Barcellos e tem um filho, o advogado Eduardo Machado. http://lattes.cnpq.br/5729306431041524

Foto de capa: Reprodução

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