O Ministério Público Federal (MPF) entrou em cena para exigir o desmonte imediato do “Memorial Presidente Ernesto Geisel”, inaugurado há poucos dias na biblioteca do campus Bento Gonçalves da Universidade de Caxias do Sul (UCS), no Rio Grande do Sul. A medida, formalizada por meio da Recomendação PRDC/RS nº 140/2025, versa sobre “a desativação imediata” do espaço e veda qualquer nova homenagem, reinauguração ou denominação institucional que enalteça agentes reconhecidos por graves violações de direitos humanos.
O pedido do MPF não é mero gesto simbólico — trata-se de uma exigência pautada no arcabouço jurídico contemporâneo de reparação histórica: a permanência do memorial “revitimiza sobreviventes e familiares” das vítimas da repressão e contraria os compromissos do Estado brasileiro com a dignidade humana, a memória e a verdade. Para os procuradores responsáveis, elogiar um ex-presidente ligado diretamente a torturas, desaparecimentos, assassinatos políticos e outras violações reconhecidas oficialmente representa “impunidade simbólica”.
Contexto histórico — por que a homenagem causou rejeição
O general Ernesto Geisel presidiu o Brasil entre 1974 e 1979, no auge da ditadura militar. Segundo o documento do MPF, nesse período o Estado manteve e intensificou a repressão contra opositores: o ano de 1974 registrou 54 desaparecimentos políticos — o maior número de todo o regime.
Entre os casos emblemáticos mencionados na recomendação estão os assassinatos de Vladimir Herzog (1975) e Manuel Fiel Filho (1976), ambos torturados em dependências do aparato repressionista do Estado. Também consta o episódio conhecido como “Sequestro dos Uruguaios”, de 1978 — em que um casal de refugiados políticos uruguaios foi raptado em Porto Alegre por policiais gaúchos e agentes da repressão, e levado clandestinamente ao Uruguai com os filhos menores. A Recomendação do MPF recorda essas e outras atrocidades como fundamento para classificar a homenagem como “incompatível com o Estado democrático de direito e de memória digna às vítimas”.
História local vs. memória nacional
A decisão de erguer o memorial havia sido justificada pela UCS como uma homenagem à figura local de Geisel — natural de Bento Gonçalves — e à relevância de seu governo para determinados programas de Estado, como iniciativas agrícolas, programas de energia e o chamado “Plano Nuclear”.
Mas, para o MPF, a relevância “técnica” das ações durante o governo não pode legitimar a glorificação de quem supervisionou um regime de repressão política. A instituição de ensino, adverte a recomendação, deve “abster-se de instituir ou manter quaisquer outros memoriais, homenagens ou denominações” a agentes da ditadura já reconhecidos como responsáveis por graves violações — em respeito à memória das vítimas e aos compromissos jurídicos do Brasil.
A controvérsia vai além da manutenção de um espaço físico. Está em jogo o tipo de memória que as instituições acadêmicas oferecem às novas gerações. O embate simbólico revela tensões profundas: de um lado, segmentos que reivindicam a origem local de uma figura histórica, seus “feitos” de governo e um passado que — em sua visão — precisa ser celebrado. De outro, a sensibilização crescente da sociedade pela defesa dos direitos humanos, da memória das vítimas e pela necessidade de evitar a naturalização de regimes autoritários.
Nesse sentido, o pedido do MPF aponta para a urgência de que as universidades se posicionem como espaços de reflexão crítica e compromisso democrático — e não de revisionismo amnésico. A permanência do memorial, concluem os procuradores, “revela descompasso com os valores contemporâneos de justiça, memória e reparação”.
O que pode vir a seguir
A UCS agora deve informar ao MPF quais medidas adotará. Caso descumpra a recomendação, o órgão avalia que poderá haver responsabilização judicial ou extrajudicial, inclusive com a caracterização de “dano coletivo”.
Para o país — e especialmente para o Rio Grande do Sul —, o desfecho desse embate servirá como indicativo de como as instituições de ensino e memória pública irão lidar com o legado — doloroso e conturbado — da ditadura militar, se optando pela comemoração institucional ou pela lembrança crítica e respeitosa às vítimas.
Imagem destacada: Divulgação site da UCS




