Memórias de uma tragédia silenciada

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Por CELSO JAPIASSU*

O genocídio praticado por Israel em Gaza, a guerra na Ucrania e o caos político do mundo têm ocupado o interesse da mídia e o interminável drama dos refugiados foi esquecido. Mas a tragédia continua no palco do Mar Mediterrâneo, um cemitério onde desapareceram mais de 2.200 pessoas só em 2024 até janeiro de 2025. É um número que impressiona, mas que não tem impressionado a opinião pública nem sempre solidária da Europa. Eram pessoas que foram forçadas a deixar seus países para tentar sobreviver em algum país europeu onde são cada vez mais rejeitados.

Esses números representam estimativas. O balanço real pode ser ainda maior, pois muitos dos naufrágios das frágeis embarcações que tentam a travessia não são registrados. A rota do Mediterrâneo Central, que parte da Tunísia, Argélia e Líbia em direção à Itália e Malta, continua sendo uma das mais perigosas do mundo.

A rota da África Ocidental em direção às Canárias registrou um aumento de mais de 500% nas chegadas entre janeiro e fevereiro de 2024 em comparação com o mesmo período de 2023. Essa rota é a mais movimentada e a Mauritânia tem sido o principal porto, com grupos criminosos explorando o aumento da procura.

Muitos migrantes viajam em barcos superlotados, frágeis e sem equipamentos de segurança ou instrumentos meteorológicos, o que aumenta o risco da travessia. Os traficantes de pessoas costumam colocar dezenas ou centenas de refugiados em embarcações que não suportam o peso, visando lucro rápido, o que torna a viagem extremamente perigosa.

O Mediterrâneo é um mar de tempestades, ventos fortes e águas agitadas especialmente no outono e inverno. Tem um litoral acidentado com rochedos e ilhas que dificultam a navegação e aumentam o risco de colisões e naufrágios. O aumento do número de migrantes que por necessidade se aventuram no perigo, aliado à redução das operações de busca e resgate por ONGs e autoridades europeias, contribui para que mais pessoas encontrem a morte no mar. A diminuição ou ausência de socorro, especialmente após o fim da operação Mare Nostrum em 2014, elevou as taxas de mortalidade. Essa operação, lançada pelo governo italiano em 2013, resgatou pelo menos 150 mil pessoas. Foi substituída pela Frontex, que inverteu o propósito e tem foco na vigilância das fronteiras.

Guerras civis (como foi na Síria), crises econômicas e perseguições políticas forçam um número crescente de pessoas a se arriscar, aumentando o fluxo e a pressão sobre as rotas migratórias.


Além dos riscos no mar, os migrantes enfrentam violência extrema, extorsão e condições desumanas antes e durante a viagem, especialmente em países de origem e trânsito, como a Líbia, o que agrava ainda mais sua vulnerabilidade.

Esses fatores combinados explicam por que o Mediterrâneo é a rota migratória mais mortal do mundo, com milhares de mortes registradas anualmente.

O papel da extrema direita

A migração e a chegada de imigrantes tem sido um argumento central na ascensão de partidos populistas de extrema-direita em muitos países da Europa Ocidental. Eles utilizam a questão migratória em suas plataformas, defendendo políticas mais restritivas de imigração e asilo. Os resultados das eleições para o Parlamento Europeu em 2024 mostraram a ascensão desses partidos em vários países, gerando preocupação entre as comunidades de imigrantes.

A chegada de refugiados tem gerado tensões sociais e políticas, com discussões sobre integração, segurança, identidade cultural e a distribuição de recursos.  Isso leva a manifestações xenófobas e ao crescimento da discriminação.

A União Europeia tem enfrentado dificuldades em criar uma política migratória comum, devido às diferentes abordagens dos Estados-Membros. O Pacto para as Migrações e Asilo, embora aprovado, ainda gera divisões e dificuldades para sua implementação.

Os imigrantes, incluindo os do Leste Europeu, África e Oriente Médio, preenchem vagas em setores onde há escassez de mão de obra, como agricultura, construção, serviços domésticos e cuidados de saúde. Eles assumem trabalhos que os cidadãos nativos tendem a rejeitar.

Há estudos indicando que a migração tem efeito positivo na economia dos países de destino. Migrantes contribuem para o Produto Interno Bruto (PIB) e, à medida que se tornam residentes permanentes, pagam impostos e taxas, impulsionando a economia. A integração de refugiados traz retornos econômicos para um continente envelhecido.

Envelhecimento

A maioria dos países da Europa Ocidental enfrenta o envelhecimento da população e baixas taxas de natalidade. A chegada de migrantes, frequentemente mais jovens, ajuda a compensar o saldo natural negativo e a reforçar as camadas jovens e férteis da população, atenuando o envelhecimento demográfico.

 As remessas enviadas pelos migrantes para seus países de origem (na África e Oriente Médio) são uma fonte vital de renda e contribuem para o desenvolvimento econômico dessas regiões.

A chegada em massa de migrantes pode gerar pressão sobre os serviços públicos, como saúde, educação e habitação, especialmente em áreas com infraestrutura limitada. Mas os estudos também sugerem que o aumento dos gastos públicos com requerentes de asilo torna-se positivo à medida que os migrantes se integram.

A invasão russa da Ucrânia em 2022 gerou um dos maiores fluxos de refugiados da história recente da Europa. Milhões de ucranianos buscaram refúgio em países da Europa Ocidental, recebendo proteção temporária. A integração desses refugiados é considerada um desafio, mas também uma oportunidade para economias envelhecidas.


*Celso Japiassu é autor de Poente (Editora Glaciar, Lisboa, 2022), Dezessete Poemas Noturnos (Alhambra, 1992), O Último Número (Alhambra, 1986), O Itinerário dos Emigrantes (Massao Ohno, 1980), A Região dos Mitos (Folhetim, 1975), A Legião dos Suicidas (Artenova, 1972), Processo Penal (Artenova, 1969) e Texto e a Palha (Edições MP, 1965).

Foto de capa: Barco de imigrantes cruzando o Mar Mediterrâneo em direção a Europa
(Guarda Costeira Italiana/Massimo Sestini)

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Respostas de 3

  1. A Europa está numa encruzilhada e não se dá conta disso. Velhas práticas que em nada contribuem para o seu desenvolvimento estão em voga graças a Extrma Direita. Povos antes explorados, agora pedem ajuda humanitária a seus algozes. É terrível, é real; é o mundo em que vivemos..

  2. Ótimo texto. Resumiu muito bem esse tema, que atualmente é um dos mais importantes da humanidade. Há a face ruim, mas também a face positiva, que muitos esquecem, principalmente a extrema direita com o seu discurso xenófobo, unilateral e oportunista. O mundo de hoje, globalizado e desigual, é fruto do que a própria Europa plantou.

  3. Texto de uma lucidez extrema! Como é difícil cultuar o bom senso em meio a tantas guerras, conflitos e ataques num mundo coalhado de indefinições. Mas Celso Japiassu consegue! Excelente texto!

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