Memórias de 13 de Novembro de 2015 em Paris

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Por DANIEL AFONSO DA SILVA

Era pra ser um dia agradável. E foi.

Caiu numa sexta-feira.

Um dia de outono.

Calhou ser 13. Sexta-feira, 13.

13 de novembro de 2015.

Tudo ia limpo em Paris. O céu não tinha nuvens. Tudo era límpido. O sol era imponente, mas escondia o seu calor. Parecia pintura. Sem queimar, incomodar nem maltratar.

Havia algum vento. Nada de brisa

Anunciavam-se dias frios. Quem sabe, invernia.

Edgar Morin havia ofertado uma série de conferências na Sorbonne e a sua manifestação final – “quem não procura o inencontrável não encontrará jamais” –, retirada de alguns antigo, ainda intrigava o meu ser. Christian Lesquesne, na Sciences Po, ao meu encalço, havia disparado mensagens ao embaixador Alain Rouquié, ao ministro Hubert Védrine e ao memorável Régis Debray e eu, apreensivo, aguardava retornos. Era certo que viriam. Era seguro que iríamos nos ver. Um dia. Não naquele.

Aquele dia transcorreu incrivelmente ordinário. Como ordinários eram os meus dias naquelas ruas que outros dias testemunharam transitar Voltaire, Balzac, Diderot, Marat, Victor Hugo, De Gaulle.

O meu reduto era a rue Jacob, no sexto arrondissement. Eu não vivia longe. E – também por isso – ia sempre a pé.

Do coração do Marais, eu partia para a rue de Rivoli.  Chegando, assim, rápido à passagem Richelieu, que dava acesso ao pátio do Louvre, imponente palácio real, anterior a Versalhes. Quase sem perceber, eu alcançava a alça François Mitterrand e atravessava a ponte Carrossel. Após o Sena, tornando à esquerda, encontrava a rue de Saints-Pères. Seguia nela não muitas quadras e acessava o faustoso edifício do 56, rue Jacob, na Sciences Po, o CERI.

Era quase sempre assim. Nada às carreiras. Tudo em compasso. Flanando sopro a sopro. Soterrado em detalhes. Absorto em lembranças. Golpeado por deslumbres. Arpejado em frissons. Como num encontro da primeira vez. Imantado ao frescor do desejo. Corroído pelo tremor do contato. Intimidado pela satisfação da harmonia. Enterrado na inspiração da presença, do belo e do contraste.

Dia após dia era assim. Mesmo quando a rotina insistia em imperar.

Aquele início do dia 13 de novembro de 2015 foi assim.

Sem novidades novas. Apenas um traçado a seguir. Sem trepidações nem mudanças bruscas.

Anunciava-se um dia fugaz. Que passaria rápido. Mesmo que, naquele contexto, o rápido parecesse sem fim.

Acomodado no terceiro andar daquele edifício, a minha atenção seguia retida em tempos distantes, desabados, quase imemoriais. Eu vivia mentalmente nos longínquos dias de janeiro e fevereiro de 1985 que enlaçavam da eleição do presidente Tancredo de Almeida Neves no Brasil ao seu encontro do novo mandatário brasileiro com o presidente François Mitterrand na França.

O meu esforço recaía sobre a reconstituição dessa cena. Uma cena, antes de tudo, bonita. Que aduzia um dos momentos mais altaneiros da redemocratização brasileira. Quando o mundo inteiro começava a reconhecer a Nova República após anos e anos de regime militar. Quando o Doutor Tancredo, após ver a Sua Santidade, o Papa João Paulo II, foi avistar o presidente francês. Imortalizando, desse modo, o momentum Tancredo-Mitterrand.[1]

Naquele 13 de novembro de 2015, eu seguia retido nesses mundos, nesses símbolos, nesses dias.

Passei, assim, aquele dia inteiro reunindo informações. Indo e voltando, em imaginação, de Brasília a Paris e de Paris a Brasília. Resvalando, vez por outra, no Rio de Janeiro, em São Paulo, Belo Horizonte, São João Del Rey, Washington, Bonn, Berlim, Cidade do México, Buenos Aires, Lisboa, Moscou, Roma, Madrid, Biarritz, Saint-Tropez, até a latche dos Mitterrand no Landes.

Eu havia acessado os arquivos da presidência François Mitterrand sobre aqueles tempos com notícias daquele encontro. O meu encanto era, porquanto, integral. Quase juvenil. Tudo me impressionava.

Quando dei por mim, a noite já ia escura. Foi quando tomei o celular e revisei mensagens.

Havia um convite para jantar entre amigos. Brasileiros e não brasileiros. Mas todos carentes de Brasil.

Ainda não se sabia onde seria. Hesitava-se entre o Marais e Arts et Métiers.

Decidiu-se pelas cercanias da République. Entre a estação Voltaire e a estação Saint Ambroise.

Saí e cheguei bem rápido.

De entrada, um bordeaux.

Como menu: feijão, pimenta, carne e fartura.

Era um restaurante das Ilhas Maurício. Onde tudo era marcante. Com muitos tons, sons, idiomas e culturas.

Tudo muito bom. Com alguma empolgação. Mas terminou cedo.

Despedimo-nos todos pelas 21 horas.

Poderia voltar a pé para casa, mas tomei o metrô. Da segunda para a terceira estação, o trem parou. Não era comum, mas era rotina. O vagão escureceu. Mas ninguém esbravejou. Era sexta-feira, tarde da noite, a circulação reduzida.

Num par de minutos, a luz voltou e a viagem continuou.

Cheguei rápido em casa e subitamente adormeci.

Algum tempo depois, fui desperto por uma zoada sem fim. Vinda de todas as partes e de todo lugar. Sirenes, freadas, luzes, aceleradas, derrapadas, helicópteros. Abri os olhos, avistei o relógio e vi que era ainda sexta-feira. Os ponteiros marcavam 23 horas pouco completas.

Não sei bem para onde olhei, mas notei o vibrar insistente do celular. Meio ensonado, fui ver. Era um número diferente. Não era da Europa, da França nem de Paris. Tinha as iniciais do Brasil.

Sem nada pensar, atendi e, como resposta, recebi: “graças a Deus”; “você está vivo”.

Estupefato, nada entendi.

Veio a ordem: “ligue a televisão”.

Foi quando vi: terroristas haviam terrorizado Paris; não muito longe dali.

Referências

[1] Como resultado, deu-se o artigo “O momentum Tancredo-Mitterrand”, publicado na revista Estudos Avançados, vol. 32, n. 92, pp. 89-104, 2018.


Publicado originalmente em Jornal GGN.

*Daniel Afonso da Silva é Pesquisador no Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais da Universidade de São Paulo e professor na Universidade Federal da Grande Dourados.

Foto da capa: Reprodução

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