Manifesto antievangelistão

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Por ADRIANO VIARO*

A Olimpíada de Paris tem mostrado, sobretudo no que se refere aos atletas brasileiros, um avanço desenfreado do Evangelistão. Vimos, hoje, a skatista Rayssa lançando mão de linguagem de sinais para louvar a Jesus Cristo. Vimos a judoca “pimentinha”, em emissora do Grupo Globo, dar “toda honra e toda glória” a Deus por seu desempenho nos jogos. Estamos falando de duas medalhistas. Não, isso não será um texto sobre Olimpíadas. O Evangelistão não é mais um perigo, é realidade. O perigo é a intensidade que se expande e pode transformar o Estado em um tecido social fundamentalista. Precisamos acordar.

A todos os juristas – pelos quais tenho o profundo respeito -, bem como professores universitários que discordam quando critico o “perigo” presente no preâmbulo de nossa constituição, afirmo peremptoriamente que lhes falta conhecimento de causa quando o assunto é fundamentalismo. Pouco importa o fato de que o preâmbulo não possui poder de lei. O simples fato de termos entre as duas capas da publicação da Carta Magna a afirmação de que os constituintes promulgaram a nossa constituição “sob a proteção de Deus”, faz com que – e aqui remeto a algo que vi com meus próprios olhos diversas vezes – pastores usem a publicação em púlpito para inflar fiéis com a “afirmação” de que Deus está nas linhas de nossa Carta.

Uso do mesmo expediente para afirmar que não há mais espaço para crucifixos em paredes de prédios públicos, frases cristãs em cédulas de dinheiro, tampouco hábitos e praxes de juramentos com mão sobre Bíblia. Diversas, dezenas, centenas de casas legislativas espalhadas pela esfera municipal de nosso país lançam mão deste absurdo. Os evangélicos, independentemente de serem tradicionais ou neocristãos, estão nas tropas policiais.

A “UFP” (Universal nas Forças Policiais) usa, de forma graciosa e gratuita, os quarteis das Polícias Militares – sem falar nos momentos em que o movimento é inverso: quarteis vão aos templos para receberem orientação e assessoria espiritual. Outro movimento, “PMs de Cristo”, quebra a Carta Magna ao usar brasões oficiais em capas de Bíblia, além de comercializarem símbolos e signos de tal “coletivo”. Como se não bastasse, turmas de policiais são batizados por estes grupos de “policiais de cristo”. Nada é feito. As armas da República – Exército, Marinha e Aeronáutica – são recebidas em templos neocristãos no afã de serem acolhidos, ouvidos e batizados. E vão devidamente fardados com a presença de superiores e a manutenção da hierarquia. E nada, repito, nada é feito.

Os carros de aplicativo já possuem playlists do universo gospel para colocação durante corridas, sem perguntarem se o passageiro quer ouvir. Quando recebem o descontentamento do passageiro, não raro se incomodam ou demonstram incômodo. O Congresso Nacional tem sido palco de minicultos que antecedem o trabalho dos parlamentares. Escolas, inclusive públicas, recebem palestras homofóbicas pautadas em discursos à lá cura gay. Professores denunciam, mas isso torna-se “caso isolado”, como podemos verificar em diversas matérias publicadas por portais de notícias. Ainda no universo escolar, livros são retirados de bibliotecas por não preservarem os valores e princípios definidos pelos líderes do evangelistão. A cultura se tornará um emaranhado de louvores e adorações.

Líderes neocristãos utilizam púlpitos, parques, trios elétricos – e até a Marquês de Sapucaí – para destilar ódio às instituições da República. Roubos são feitos em nome de Deus. Traficantes evangélicos protagonizam o ódio e o ataque aos templos afro-brasileiros, e agora determinam o fechamento até mesmo de igrejas católicas. Supermercados colocam trilha sonora gospel, ou fiéis fazem louvores nos corredores dos mercados – tudo caso “isolado”. A laicidade do país não existe. Mas ela precisa existir. Se não fizermos nada, ou melhor, se não fizermos tudo, o Evangelistão – que não está mais em curso, mas sim implantado com “configuração mínima” – tomará todos os espaços. Perderemos o direito de agir e manifestar. Perderemos o direito à religiosidade múltipla, sobretudo não cristã, em especial ao ateísmo. Não só a laicidade, como a liberdade política está em risco. Hoje, para governar o país, é preciso de uma fórmula “para dialogar com os neocristãos”. Sem ela, não há governo. Não há democracia. Não há Estado.

Não estou, e nem poderia, pregando o fim de uma religião. Estou cobrando do Estado Democrático de Direito que os espaços sejam laicos, ou seja, que toda manifestação religiosa seja possível, mas que os espaços laicos não tenham manifestação religiosa. E não, não é um texto sobre Olimpíada. Ela, enquanto evento mundial, serve de alerta. O alerta para um país que caminha para o caos.

*Adriano Viaro é Adriano Viaro é graduado e mestre em História (UPF) e também especialista em Sociologia com ênfase em exclusão social.

Ilustração: Êxtase, mulher – Imagem de Daniel R por Pixabay

Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaositered@gmail.com . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia.

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