Malafaia e Ester: os evangélicos em Apocalipse nos Trópicos

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Por EMERSON GIUMBELLI*

Apocalipse nos Trópicos, documentário de Petra Costa recentemente lançado, tem imagens e narrativas impressionantes. Elas buscam mostrar a participação de lideranças, fieis e estéticas evangélicas em eventos que ameaçam a democracia no Brasil nos últimos anos.

O filme merece ser assistido e tem gerado muitos debates. Este comentário foca em dois pontos, que têm a ver com a forma pela qual os evangélicos são retratados no documentário.

Há uma estrela no filme e ela se chama Silas Malafaia. Malafaia é o herdeiro de uma igreja pentecostal sediada no Rio de Janeiro, a Assembleia de Deus Vitória em Cristo. Por meio da publicação de livros e da atuação televisiva, ele expandiu a presença de sua igreja e se projetou como uma liderança no universo evangélico desde a virada do século.

Malafaia nunca exerceu mandatos políticos, mas se tornou um ator relevante nessa esfera. Em 2002 e 2006, apoiou Lula nas suas campanhas vitoriosas para a presidência. Em 2010 e 2014, aliou-se aos candidatos do PSDB, José Serra e Aécio Neves. Já em 2018, esteve ao lado de Jair Bolsonaro, a quem se mantém vinculado. Nos últimos anos, prolongou esse apoio ao patrocinar manifestações de rua a favor do ex-presidente.

No filme, Malafaia aparece como uma figura com muita ascendência sobre Bolsonaro. Desempenha o papel de um conselheiro político, com visões e poderes que tornam o ex-presidente quase um coadjuvante em aparições e declarações públicas.

Ao destacar a atuação de Malafaia, o filme mostra a participação de uma importante liderança evangélica em articulações que sustentam bandeiras assumidas pelo conservadorismo político. Ao mesmo tempo, parece ser seduzido pela narrativa do pastor pentecostal, quando ele invoca o “mundo evangélico”.

Malafaia pretende representar o “mundo evangélico”, que corresponderia, nas palavras dele, a “mais de 30%” da população brasileira. Esse número acabou de ser desmentido pelos dados do Censo mais recente do IBGE, que aferiu 26,9%. Não deixa de ser um número expressivo. Mas a questão é que, na narrativa de Malafaia, essas pessoas pensam e agem como um bloco homogêneo, que uma liderança como ele é capaz de mobilizar politicamente.

Petra Costa faz pouco para desafiar essa pretensão. Em cenas breves, mostra outro pastor em articulações e rituais em favor de Lula. Em contraste com o enfoque sobre Malafaia, o filme não permite entender como atuam os movimentos de resistência à aliança entre evangélicos e bolsonarismo. Nesse sentido, a produção do Brasil de Fato, “Fé em Disputa”, é um contraponto mais do que pertinente.

No entanto, em Apocalipse nos Trópicos há uma passagem que merece uma atenção maior do que o filme lhe dedica – este é o segundo ponto do meu comentário. É quando aparece Ester, uma mulher negra, descrita como supervisora de limpeza, que conversa com a equipe do filme ao lado de sua filha adolescente.

Ester declara ter votado em Bolsonaro, mas reconhece pontos positivos em Lula. Ela apresenta como razão para ter desistido do segundo o fato (equivocado) de sua adesão ao candomblé. Em seguida, sua filha, depois de afirmar preferência por Bolsonaro, chega a dizer que “era Lula”, mas confessa suas hesitações por conta do “banheiro unissex”.

As oscilações nas declarações de Ester e sua filha são indicações de que os alinhamentos políticos estão sujeitos a negociações e ponderações – mesmo no caso de uma mulher que, como apontou Petra Costa em uma entrevista, é irmã de um pastor.

Façamos um experimento de imaginação e cogitemos uma mudança no rumo da conversa com essas pessoas. Por exemplo: que tal perguntar a elas se preferem um governo que congela o salário mínimo a outro que lhe aporta ganhos reais? E assim poderia surgir um vínculo positivo entre a providência divina que faz parte do discurso pentecostal e políticas promovidas por governos populares.

Ou então: que tal perguntar sobre o respeito que mulheres e pessoas negras merecem nas suas relações? Como mostram pesquisas de cientistas sociais, ações de enfrentamento à violência contra mulheres e ao racismo são temas que contam com a simpatia ou o apoio de fieis evangélicos – cabendo lembrar que esses fieis, em sua maioria, como apontam os dados mais recentes do IBGE, são compostos de mulheres e pessoas negras, ainda pouco representadas em postos de liderança eclesiástica.

No geral, Apocalipse nos Trópicos parece reforçar narrativas de que os evangélicos (“mais de 30% da população”) cultivam uma afinidade ideológica com pautas antidemocráticas ou de que são uma massa de manobra disponível para lideranças religiosas que apoiam tais pautas.

Para concluir, é hora de falar de outros 30%. Antes dos créditos finais do filme, lemos que “Em 2022, cerca de 70% da população evangélica votou em Bolsonaro”. Portanto, o restante não fez essa escolha. Se surgirem os caminhos – e eles não são fáceis – para que se mude o rumo da conversa com os evangélicos, é bem possível que o percentual desses divergentes cresça. Um cenário assim virá diminuir a influência que pode ter um líder como Malafaia.

Não há dúvidas de que os evangélicos são um componente importante dos atuais desafios à democracia no Brasil – e nisso está a força de Apocalipse nos Trópicos. Mas é bem provável que uma parte significativa dos evangélicos seja um componente conjuntural dessa configuração. No jogo da democracia, as peças que eles representam podem se arranjar de outra maneira. E outras histórias poderão ser contadas.


*Emerson Giumbelli é professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Foto de capa: Cartaz do filme Apocalipse nos Trópicos, da diretora Petra Costal, que estreou em 14 de julho na Netflix, | Foto: Reprodução.

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Uma resposta

  1. Eu já assisti o filme Apocalipse nos trópicos! Verdadeiro, muito bem colocado. Documentário que impressiona pois foi relatado, sem exageros, tudo que assistimos, na epoca, duvidando até se realmente era mesmo aquilo. Uma manipulação chocante, da ignorância, dos sonhos e da fé em algo “milagroso” dessas pessoas! Que triste!

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