Por EMERSON GIUMBELLI*
Quem seguiu os noticiários nas últimas semanas teve muitas chances de ter sabido sobre a inauguração do Cristo Protetor no município gaúcho de Encantado. O evento ocorreu no dia 6 de abril e foi amplamente divulgado em mídias locais, regionais e nacionais.
Desde 2021 já é possível visitar o ponto onde foi construída a estátua de quase 40 metros. A renda garantida pelos ingressos e por outros investimentos permitiu que as obras tivessem continuidade. Ainda não estão completas. A inauguração desse cristo, inspirado no Redentor carioca, vem sendo saudada como uma demonstração de “resiliência” em uma região duramente atingida por enchentes em 2023 e 2024. Espera-se mesmo que o empreendimento ajude a “salvar” a economia da cidade.
O evento de inauguração enseja muitos comentários por conta de sua programação. Houve uma “ópera show” especialmente preparada para a ocasião. A imigração italiana foi celebrada. Não faltou espaço para o tradicionalismo gaúcho. Muito se falou também sobre questões ambientais. Fixo-me, em meio a isso tudo, na relação entre aspectos religiosos, políticos e econômicos. Essa relação é sintetizada na expressão “turismo religioso”, que serve como chamativo principal para apresentar o empreendimento.
A quantidade de autoridades civis e figuras políticas presente na inauguração do Cristo Protetor foi notável. Havia não apenas representantes locais. Um deputado federal discursou. Um senador prestigiou a cerimônia. O governo estadual destacou-se, por meio de patrocínios ao evento e da presença, entre outras, do governador em pessoa.
Segundo seus promotores, o monumento não entrou nos orçamentos públicos. Para arrecadar e gerir os recursos da obra foi constituída em 2019 uma entidade privada, com o nome de Associação Amigos de Cristo. Mas dinheiro público foi aplicado em obras no acesso ao local. Para além das questões financeiras, escutando os discursos das autoridades civis, percebe-se que o apoio político foi fundamental para o sucesso do empreendimento.
O que fundamenta esse apoio político é a relevância econômica do Cristo Protetor, que seria capaz de produzir milhares de visitantes, dinamizando os negócios da região. Segundo o prefeito de Encantado, o monumento passaria a ser o grande atrativo, tornando-se a referência para outros empreendimentos na cidade.
Outra coisa notável no dia da inauguração foi a presença de autoridades religiosas, todas católicas. O evento começou com uma missa completa. O celebrante principal foi o cardeal Jaime Spengler, arcebispo de Porto Alegre e atual presidente da CNBB. Havia até enviados de Roma. Muitos dos religiosos no evento pertencem à Congregação dos Missionários de São Carlos, mais conhecidos como Scalabrinianos.
A essa congregação foi atribuída a administração da capela construída na área do monumento, que está rodeado de outros espaços de conotação religiosa. Tal ato sela a participação da Igreja Católica no empreendimento. Embora referências católicas estivessem presentes desde os planos iniciais, o Cristo Protetor não foi construído como uma obra eclesiástica. Ao ser inaugurado, a situação já se modificou, o que incentiva que as autoridades católicas o apresentem como um instrumento de evangelização.
Na verdade, os discursos se cruzam. Pois as autoridades civis reconhecem o aspecto religioso do empreendimento, apostando que essa seria a principal motivação para visitá-lo. E as autoridades religiosas sabem que esse cristo não vai ser cultuado como em um templo, mas enquanto parte de um empreendimento econômico. O “turismo religioso” serve a uns e a outros.
Há, portanto, uma sintonia entre o econômico e o religioso, chancelada pelos atuais representantes do Estado e da Igreja Católica. O caso de Encantado merece ser acompanhado para sabermos qual será o alcance dessa sintonia.
Pois vale notar que o Cristo Protetor pode ser visto como mais um exemplo de monumento baseado em referências católicas a ser erguido em uma cidade brasileira. Sua inspiração direta vem de um município próximo, o Cristo Redentor de Guaporé, com seus 20 metros (contando com o pedestal), que existe desde 1967. Encantado, por sua vez, deve inspirar façanhas semelhantes em termos de grandiosidade.
Markus Moura, o responsável pelo desenho do Cristo Protetor, já está envolvido na construção de outra imagem de Cristo, dessa vez na cidade alagoana de Pilar e com recursos públicos. Com certa de 70 metros, está projetado para ser “o maior Cristo do mundo”. Assim como os arranha-céus, os monumentos religiosos podem entrar em competições de tamanho…
Aos mortais de pouca estatura, restará avaliar as consequências dessas construções de grande escala para temas como a laicidade do Estado, o respeito ao pluralismo religioso, as configurações do catolicismo e os reais impactos tanto nas economias locais quanto nos simbolismos das identidades regionais.
*Emerson Giumbelli é professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Foto de capa: Gustavo Ghisleni/ Konce Agência
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Atualização: segundo reportagem do Estadão, a obra em Alagoas está parada, mas a intenção de construí-la está mantida.
Seu artigo é muito interessante. Muito boa a sua análise!