MAGA e os retrocessos da desglobalização e da reindustrialização

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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

A lógica do MAGA tenta inverter o status quo anterior: os EUA consomem importações baratas e o resto do mundo financia seu endividamento bélico imperialista com compra de Treasuries (títulos de dívida pública americana) para suas reservas cambiais. Não é ilusão ilógica os EUA assumirem uma inflação interna em bens de consumo e fazerem um corte de suas despesas públicas, inclusive bélicas, por causa dos resgates dos títulos de sua dívida?

A arrecadação de tarifas conseguirá substituir essa emissão de títulos de dívida pública? Os Estados Unidos estão dando um tiro no pé e entrarão em decadência imperial irreversível com emergência do Sul Global liderado pela China ou BRICS?

Para ir direto ao ponto macroeconômico com pitadas de sátira acadêmica: inverter o status quo é macroeconomicamente custoso. O arranjo “exorbitant privilege” funciona assim: o resto do mundo exporta bens baratos aos EUA, este acumula dólares, o resto do mundo compra Treasuries, os EUA financiam seus déficits gêmeos (fiscal e externo) a juros relativamente baixos.

O MAGA-nomics quer reverter parte disso (menos importações, mais produção doméstica), mas o mecanismo de ajuste é duro: tarifas = preços internos mais altos + realocação lenta de cadeias. É possível? Sim. É barato politicamente? Não.

A inflação de bens comerciáveis voltará e ficará mais renitente. Também a produtividade sofrerá no curto/médio prazo com a falta de insumos estrangeiros.

“Assumir inflação e cortar gasto por causa de resgates” é um falso dilema. Os EUA rolam dívida na própria moeda, com mercado de Treasuries profundo e um Banco Central (Federal Reserve) com capacidade de atuar como “dealer of last resort”.

Resgate de títulos não impõe, mecanicamente, um corte de despesa; impõe custo de carregamento maior (juros) se a taxa subir. O tradeoff real é fiscal: juros federais em alta comprimem espaço para outras despesas ou exigem mais receita. Pode haver aperto, mas não é uma “escassez de caixa” ao estilo país periférico em moeda estrangeira.

Tarifas não substituem emissão de dívida nem de perto. A arrecadação tarifária é pequena diante do orçamento e dos juros. Tarifas resultam em uma receita volátil e pró‑inflacionária: proteção encarece importados – consumo migra para domésticos mais caros – parte do imposto é repassada ao consumidor.

Dívida é um instrumento de financiamento intertemporal e lastro para o próprio sistema financeiro global. Em ordem de grandeza, direitos aduaneiros ou alfandegários [customs duties] representam frações de ponto do PIB, enquanto os juros federais são múltiplos disso. Conclusão: tarifa é política industrial – na verdade,  geopolítica ou geo econômica – e Treasuries são infraestrutura do dólar. Essas funções não são substituíveis entre si.

Haverá “tiro no pé” se o protecionismo vier como pacote fechado: tarifas generalizadas + retaliação + incerteza regulatória + hostilidade à imigração sustentáculo substituto da queda do crescimento demográfico + cortes míopes em ciência, universidades ou P&D (Pesquisa e Desenvolvimento). Isso piorará a produtividade e elevará os custos, acelerando a busca por alternativas ao dólar.

Mas já dizer “a decadência do Império americano é irreversível” talvez seja forte demais. Isto por três razões estruturais.

Primeira, a inércia de rede do dólar. Há “profundidade” de mercado cambial, liquidez 24/7 (online em tempo real ou 24 horas em 7 dias), arcabouço jurídico. Substituir isso levará anos ou até décadas – e não curtos ciclos eleitorais.

Segunda, a detenção de capacidades de fronteira em tecnologia, universidades, venture capital, energia (xisto), ainda darão colchão de competitividade aos Estados Unidos por anos.

Terceira, as plasticidades institucionais: quando confrontados, os EUA historicamente se ajustam. É possível mudarem o mix de políticas e reconstruírem novas coalizões com a volta do Partido Democrata ao poder.

Quanto ao Sul Global/China/BRICS, há, sim, tendência à parcial “bifurcação”. mais liquidações em moedas locais, arranjos de compensação, finanças de desenvolvimento (NDB, ou Novo Banco de Desenvolvimento, é um banco multilateral, criado pelos países do BRICS, e AIIB, ou Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura), uso tático do RMB (Renminbi ou “moeda do povo” é a moeda oficial da República Popular da China), “parallel rails” (trilhos paralelos) em pagamentos, dados, normas.

Isso reduzirá a dependência marginal do dólar, mas dificilmente o substituirá no curto/médio prazo. Emergirá uma multipolaridade funcional: menos hegemonia incontestada, mais ilhas de coordenação.

O logicamente consistente no MAGA seria o reshoring e o nearshoring. São estratégias de negócios para a realocação de operações ou serviços, mas com diferentes focos.

O reshoring refere-se ao retorno de atividades de produção ou serviços para o país de origem da empresa, enquanto o nearshoring envolve a transferência dessas atividades para países geograficamente próximos ou com fusos horários semelhantes.  Podem ser incentivados de maneira seletiva, por exemplo, em chips, baterias e defesa, por meio de compras governamentais, acordos “friendshoring”  – também conhecido como “allyshoring“, refere-se à prática de realinhar cadeias de suprimentos para países considerados aliados políticos e econômicos –, tarifaços discriminatórios como alavancas de barganha, política industrial verde ou bélico-militar.

O logicamente inconsistente no MAGA-nomics seria prometer autossuficiência generalizada sem aceitar preços mais altos, sem elevar produtividade e sem uma coalizão fiscal (mais impostos ou menos benefícios) para bancar o novo custo do capital e da segurança de suprimentos.

Estrategicamente, é importante pensarmos nas implicações para o Brasil em uma abordagem sistêmica. O risco é ser mero peão, em guerra tarifária em aço, agro, petróleo etc., e ver cadeias reconfiguradas longe do país.

A “janela de oportunidade” é usar a disputa para adensar conteúdo local, diversificar financiadores (BRICS/UE/Oriente Médio), ampliar acordos em moeda local sem hostilizar o dólar. O governo social-desenvolvimentista brasileiro ancora sua política industrial em projetos com escala suficiente para a transição energética, em saúde, na defesa, no agrotech avançado etc.

Uma regra de ouro é evitar a armadilha de alinhar-se a um bloco como “quintal ideológico”. O Brasil deve praticar não‑alinhamento ativo com métricas de produtividade, tecnologia e saldo externo.

Enfim, o MAGA-nomics elevou absurdamente as tarifas e agora terá de aceitar mais inflação de bens. Isso não “pagará” o Tesouro, nem substituirá Treasuries.

Acelerará a multipolaridade? Possivelmente. Gerará decadência automática dos EUA? Não é tão provável — dependerá do mix de políticas posteriores e da reação do resto do mundo.

Para os bons brasileiros, o jogo não é torcer pela implosão do império americano, e sim capitalizar a fricção para construir autonomia relativa brasileira na geopolítica e na geo economia. Para os maus brasileiros, o transitado em julgado os colocará na Papuda e seus adeptos deverão se recolher à sua mediocridade, vivida desde a redemocratização até “saírem do armário” com camisas da CBF.


*Fernando Nogueira da Costa é Professor Titular do IE-UNICAMP. Baixe seus livros digitais em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com

Foto de capa:  reprodução

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