Por CHRISTIAN VELLOSO KUHN*
Desde a reeleição de Donald Trump como presidente dos EUA, muitos analistas apresentam dificuldade de cobertura de suas ações políticas, como a elevação de tarifas, as deportações em massa de imigrantes, os embates com as instituições norte-americanas e suas “caças às bruxas” contra direitos humanos e o wokeísmo. Ao se restringirem a questões políticas, comerciais ou econômicas, tais analistas limitam suas avaliações, pois é como se aproximassem suas lentes com microscópios para enxergarem melhor um fenômeno que requer binóculos. Quando analisados separadamente, o que na aparência é um conjunto de atos desconexos e de roupante do presidente Trump, na essência, fazem parte de uma estratégia com fundamentação ideológica, materializada no slogan Make America Great Again (MAGA).
Com a ascensão da China, os EUA vêm perdendo seu poder hegemônico em diferentes dimensões. O dólar continua sendo a moeda com maior participação em transações comerciais e financeiras e em reservas cambiais em nível mundial, mas é ameaçado pelo crescimento do uso por outras moedas e a criação de uma moeda comum aos BRICS, o que já vem impactando na sua desvalorização (chegou a 3,2% em julho)[1]. A despeito de ainda possuir o maior PIB Nominal em dólares, os EUA foram ultrapassados pela China pelo critério da Paridade de Poder de Compra (PPC) em 2014, muito em virtude da dinâmica de crescimento em ritmo elevado e sustentado da China nas últimas três décadas. Também deixaram de ser os principais parceiros comerciais dos demais países em escala global, perdendo esse posto igualmente para os chineses, com a sua Rota da Seda. Até mesmo a supremacia tecnológica vem sendo ameaçada pelos asiáticos, com o avanço dos chineses na robótica, carros elétricos, semicondutores, dentre outros.
Portanto, é compreensível (embora não desejável) que o norte-americano branco, trabalhador ou pequeno capitalista, interiorano do meio rural, desconexo ou desinteressado pelas modernidades identitárias (onda “woke”) nos costumes das grandes metrópoles, sinta-se seduzido pelos discursos inflamados da extrema-direita, apontando bodes expiatórios como imigrantes latinos ou globalização sendo responsáveis pela queda estrutural do seu bem-estar econômico. O American Way of Life vai se tornando cada vez mais um sonho distante do típico norte-americano.
O que poucos analistas políticos abordam são as raízes ideológicas por trás do avanço da extrema-direita não apenas nos Estados Unidos, mas também em outras partes do mundo, como Alemanha, Canadá, Turquia, Hungria, Israel, Rússia e o Brasil, dentre tantos outros, desde 2016 com a primeira eleição de Trump nos EUA e o Brexit no Reino Unido. Existe uma corrente de pensamento ultraconservadora chamada Tradicionalismo, que segundo Teitelbaum (2023, p. 18)[2], é “uma escola espiritual e filosófica alternativa, com um grupo eclético, ainda que minúsculo, de seguidores, ao longo dos últimos cem anos”. O seu avanço recente tem sido combinado uma facção nacionalista anti-imigração, o que aponta para um “radicalismo ideológico raro e profundo”. É importante ressaltar que nem todos tradicionalistas são de direita, ou se associam a extremistas. Também essa escola apresenta diferenças em relação ao conservadorismo (Tabela 1).
Tabela 1 – Diferenças entre Conservadorismo e Tradicionalismo
| Conservadorismo | Tradicionalismo |
| Reformista, aceita mudanças graduais | Rejeita completamente a modernidade |
| Baseado na razão prática e instituições | Baseado em princípios esotéricos, metafísicos |
| Compatível com democracia liberal | Frequentemente incompatível com ela |
Os tradicionalistas, de acordo com o autor, são contrários à modernidade como método de organização social que se iniciou por volta de 1800 para cá. Nesse processo, reflete “o recuo da religião pública em favor da razão, o que corresponde a um enfraquecimento do simbólico em favor do literal e a um interesse decrescente em coisas que não são facilmente matematizadas e quantificadas – espírito, emoções, sobrenatural – em favor das chamadas coisas materiais” (idem, p. 20). Está associada ainda à organização da sociedade a favor da mobilização política em torno da produção industrial e do consumo de bens. Ainda, em acreditar que a inovação humana pode melhorar as condições de vida dessa mesma sociedade, ou seja, “uma fé no progresso” que se manifesta através de “apelos por maior liberdade e igualdade”.
Esses conservadores radicais são mais afeitos a “verdades e estilos de vida transcendentes e atemporais”, muito além da díade política moderna de direita e esquerda. São anti-imigração, populistas e nacionalistas, anticapitalistas e até anticristãos. Contrários à construção modernista de Estado-nação e identificam-se com certos aspectos do Islã e do Oriente em geral. Costumam recorrer a generalizações. Possuem uma visão cíclica em relação à história, em que o passado não apenas não deve ser superado, mas que ele também será o nosso futuro.
Adicionalmente, os tradicionalistas seguem uma crença hindu de que a história humana evolui dentro de um ciclo de quatro idades: ouro, prata, bronze e sombria, sendo a idade de ouro se referindo à virtude, e a sombria à depravação. Assim, ao longo desses ciclos, há uma piora nas condições de vida humana e no universo até retornar ao início do ciclo de ouro e novamente entrar em fases decadentes. Nesse sentido, em relação à história, o tradicionalismo é determinista (fatalista) e pessimista.
Figura 1 – As quatro idades segundo os Tradicionalistas

Figura 2 – Castas de cada Idade segundo o Tradicionalismo

Os principais autores do tradicionalismo, que abordam essa rejeição ao progresso desde o Iluminismo e a modernidade, são René Guénon (1886–1951) e Julius Evola (1898–1974). Nascido na França, Guénon é considerado o fundador da escola tradicionalista, migrando do catolicismo ao islamismo sufi. Defendia a restauração da ordem espiritual como forma de enfrentar a decadência moderna. Ele e seus seguidores acreditavam na existência de uma religião no passado, a Tradição, que foi perdida e restou somente algumas frações de seus valores e conceitos distribuídos em diferentes religiões. Já Evola, filósofo italiano, era mais radical. Foi influenciado pelo esoterismo e ocultismo, tendo também atuado como ideólogo do fascismo. Falava em “revolta contra o mundo moderno” e na superioridade espiritual de castas “aristocráticas”. Associando a evolução histórica às castas do Tradicionalismo,
Bem, mas o que isso tudo tem a ver com Trump ou com a extrema-direita? Teitelbaum decifra as relações entre o Tradicionalismo e a direita radical, como a espiritualidade, a Antiguidade, a raça branca ou ariana, a masculinidade, dentre outros aspectos. Ainda, segundo o autor, os tradicionalistas remetem a modernidade ao que seria a idade Sombria, em que tanto democracia quanto comunismo se mostram contra o passado e crentes quanto ao futuro, ao mesmo tempo em que há um escurecimento da população com a migração do Sul para o Norte, o avanço do feminismo, a luta contra o racismo e outros avanços humanísticos considerados como retrocessos aos seguidores dessa corrente ultraconservadora. Estes acabam sendo anticristãos, quando o passado é encarado como pecado e o futuro como salvação. São contra a separação da Igreja do Estado.
Porém, é quando avança em sua pesquisa, que Teitelbaum tem a oportunidade de encontrar e entrevistar Steve Bannon, conselheiro e estrategista de Trump. De acordo com o autor, Bannon reconhece conhecer e se identificar com o Tradicionalismo, embora cometa deslizes na associação de ideias e seus respectivos autores, como Guénon e Evola (do que qual é fã), quando os conheceu nos anos 1990. Bannon fala abertamente sobre o “Quarto Ciclo” ou “Quarta Virada” (inspirado na teoria de Strauss & Howe), paralela à ideia de Guénon de que o mundo vive um período terminal (Kali Yuga). Ele acredita que os EUA precisam de purificação por crise, preparando o terreno para uma nova ordem “baseada na espiritualidade e na nação”. Evola aparece citado em discursos internos e reuniões com simpatizantes (TEITELBAUM, 2023).
Na sua visão, há uma crise no Ocidente e no capitalismo, que se transmutou “em duas formas aterrorizantes: uma encarnação de compadres patrocinada pelo Estado, que enriquecera uns poucos com conexões políticas; e uma forma libertária de egoísmo, que não se importava com a comunidade” (TEITELBAUM, 2023, p. 42). Na opinião dele, o capitalismo deveria ser subordinado à espiritualidade, visando enfraquecer o tratamento de seres humanos como mercadorias. Bannon é contrário ao establishment ocidental e seu elitismo. Rejeita o globalismo e do multiculturalismo. Mostra-se a favor do nacionalismo econômico e cultural e da soberania individual de um país. Finalmente, defende o colapso do sistema liberal moderno e a emergência de um novo ciclo. Não é só Trump que é orientado por um estrategista que flerta com o Tradicionalismo. Aleksandr Dugin, filósofo, geopolítico e ideólogo russo, foi ex-conselheiro informal de Vladimir Putin. É criador da chamada Quarta Teoria Política[1] e foi fortemente influenciado por Guénon e, sobretudo, por Julius Evola. Dugin vê o liberalismo ocidental como anticristão e degenerado, equivalente ao caos moderno guenoniano. Propõe uma aliança euroasiática espiritual e imperial, centrada na Rússia, como polo oposto ao Ocidente materialista. Apregoa uma visão esotérica da política, onde a luta entre o Ocidente e a Rússia seria uma guerra entre o profano e o sagrado. Inclusive, justifica a invasão da Ucrânia como parte de uma missão espiritual civilizatória. Defende também a Ortodoxia como religião imperial. Ademais, faz críticas ferozes ao individualismo, à democracia liberal e ao ateísmo moderno[1].
No Brasil, Bolsonaro igualmente teve o seu guru, Olavo de Carvalho. Influenciado pelo esoterismo e pela filosofia perenialista, mas crítico de Guénon e Evola por motivos teológicos (chamava-os de “esotéricos desviantes”). Ainda assim, compartilha elementos fundamentais do Tradicionalismo, como o anticomunismo, o espiritualismo elitista, a rejeição da modernidade e a defesa de uma ordem hierárquica religiosa. Com o Tradicionalismo, igualmente, Olavo se alinhava à crítica radical da modernidade, que a chamava de uma “era satânica”. Defendia a supremacia da filosofia e religião sobre a política. Era ligado a movimentos conservadores cristãos que flertam com ideias tradicionalistas. Em seus cursos e discursos, rejeitava a ciência moderna, a imprensa e as universidades. Fazia defesa ostensiva da “guerra espiritual” contra o marxismo cultural.
Guénon e Evola não eram políticos, mas suas ideias estruturaram uma visão filosófica e espiritual de mundo que influencia até hoje ideólogos políticos contemporâneos. Dugin, Olavo e Bannon são tradutores práticos dessas ideias para a arena política — cada um à sua maneira: Dugin com uma visão imperial e geoestratégica; Já Olavo com uma guerra cultural cristã; e finalmente Bannon com um populismo apocalíptico e mobilizador. As conexões entre eles estão mais no repertório simbólico e espiritual compartilhado (ordem, tradição, hierarquia, purificação, colapso moderno) do que em uma “doutrina unificada”. Teitelbaum descreve alguns encontros entre os três, porém, sem firmarem a consolidação de uma parceria ou um grupo coeso. Diferente de seus influenciados, como Trump e Bolsonaro, por exemplo.
Em que pese suas diferenças de concepções, segundo Teitelbaum (2023), Bannon e Olavo eram bem próximos. Ambos compartilhavam de uma mesma visão referente ao tradicionalismo, sustentando que a população camponesa, rural, e até a mais miserável e com poucos estudos nas cidades – cunhada de “Brasil profundo” por Olavo de Carvalho, ou “A América de verdade”, no caso de Bannon – eram fiéis depositários de certos valores tradicionalistas, tal como a orientação da vida pela religião e o patriotismo. O mesmo não ocorrera entre Dugin e Olavo, que travaram um debate acirrado sobre Tradicionalismo e divergiam qual ideologia global era mais ameaçadora (Liberalismo para o primeiro e Comunismo para o último). Ainda segundo esse autor, Bannon, inclusive, teve a iniciativa de encontrar Dugin, mas desejava que o ideólogo russo abandonasse seu projeto eurasiano de definir a Rússia como líder de uma zona de influência entre a Ásia e Europa em oposição à hegemonia mundial dos Estados Unidos, e se alinhasse aos estadunidenses geopoliticamente.
Figura 3 – Relações entre o Tradicionalismo, seus Ideólogos e Movimentos Políticos

Desse modo, pode-se inferir que o projeto MAGA de Trump, por intermédio e influência de Bannon, com seus ataques à globalização (por meio de sua errática política tarifária), às instituições democráticas, aos imigrantes e aos direitos humanos, guarda relação intrínseca com os preceitos Tradicionalistas, bem como ocorre na Rússia com Putin, ou ocorreu com Bolsonaro no Brasil[1]. Dialoga com os anseios e frustrações do típico norte-americano dito “nativo”, baixa escolaridade, conservador nos costumes, trabalhador ou capitalista rural, nostálgico de uma época que o país oferecia e era referência de um America Way of Life. Assim, quando Trump aponta que a piora nas suas condições de vida são razão do incremento da imigração latina e do avanço da globalização, seu projeto MAGA cativa esses cidadãos com a possibilidade de passagem dessa idade Sombria para uma idade de Ouro nostálgica de um EUA hegemônico. Nesse sentido, a luta geopolítica é entre Sacerdotes estadunidenses (espiritualistas) e Escravos chineses (materialistas). Se quiserem de fato combater o avanço da extrema-direita em nível mundial, os intelectuais de esquerda e progressistas precisam aprofundar mais o estudo e conhecimento de como essa corrente retroalimenta os movimentos ultraconservadores, e como contrapor sua ascensão para barrar o desmonte dos progressos advindos desde a modernidade.
Referências
[1] Complementarmente, de acordo com o banco J.P. Morgan, cerca de 58% das reservas cambiais mundiais estão alocadas em dólar, enquanto no início dos anos 2000, representavam 70% desse montante. O Yuan representa somente 2%, mas em conjunto com outras moedas, verifica-se um aumento de 6% em 2005 para 18% em 2024. Já o Euro caiu de 24% para 20% em igual período, enquanto a Libra Esterlina se manteve estável entre 4% e 5%. Finalmente, o ouro mais que dobrou sua participação nas reservas de países emergentes (elevou-se de 4% para 9% em uma década). Para mais detalhes, ver https://www.bbc.com/portuguese/articles/cjr1zpnr4gvo.
[2] TEITELBAUM, Benjamin R (2023). Guerra pela eternidade: o retorno do tradicionalismo e a ascensão da direita populista. Campinas/SP: Editora da UNICAMP. 288 p.
A proclamação solene dos ‘direitos do Terceiro Estado’ na França representa o estágio decisivo, seguido pelas variedades da revolução burguesa da terceira casta, que empregou as ideologias liberal e democrática para os seus propósitos […] Os esquemas revolucionário e ativistas da internacional socialista [quarta e última casta][2]
A proclamação solene dos ‘direitos do Terceiro Estado’ na França representa o estágio decisivo, seguido pelas variedades da revolução burguesa da terceira casta, que empregou as ideologias liberal e democrática para os seus propósitos […] Os esquemas revolucionário e ativistas da internacional socialista [quarta e última casta] [3]
[4] DUGIN, Alexander (2012) [2009]. A Quarta Teoria Política. Traduzido por Fernando Fidalgo; Gustavo Bodaneze; Raphael Machado. Curitiba: Editora Austral.
[5] Em que pese sua influência tradicionalista, sua Quarta Teoria Política sofre críticas até mesmo por adeptos dessa escola. Charles Upton tece duras críticas à teoria de Dugin, apontando imprecisões metafísicas, distorções do cristianismo ortodoxo e do Islã e até sinais de simpatia com o satanismo. Ver UPTON, Charles (2025). Dugin contra Dugin: uma crítica tradicionalista à Quarta Teoria Política. Campinas/SP: Vide Editorial. 688 p.
[6] Por não haver uma pesquisa mais aprofundada, deixou-se de lado citar outros movimentos e líderes da extrema-direita, como Le Pen, Vox, Giorgia Meloni e Benjamin Netanyahu, e suas possíveis associações com os preceitos do Tradicionalismo.
*Christian Velloso Kuhn é Professor e economista do Instituto PROFECOM.
Foto de capa: Reprodução




