A música brasileira perdeu, na segunda-feira, 17, uma de suas vozes mais singulares, inquietas e revolucionárias. Morreu no Rio de Janeiro, aos 82 anos, o compositor, violonista e provocador estético Jards Macalé, figura central da contracultura e da vanguarda da MPB. Ele estava internado na Barra da Tijuca tratando um enfisema pulmonar e sofreu uma parada cardíaca.
A notícia de sua morte veio acompanhada de uma lembrança carinhosa da equipe que o acompanhava: ao despertar de uma cirurgia, Macalé teria começado a cantar “Meu Nome é Gal”, em memória da amiga Gal Costa. Era o retrato perfeito do artista que nunca se despediu da vida sem música, humor e afeto. “Cante, cante, cante. É assim que sempre lembraremos do nosso mestre, professor e farol de liberdade”, registrou a nota oficial.
A formação de um artista indomável
Nascido em 3 de março de 1943 na Tijuca, Jards Anet da Silva cresceu imerso em música. A casa familiar ecoava o piano da mãe e o acordeão do pai, enquanto as ruas do Rio lhe ofereciam as sonoridades que mais tarde se tornariam matéria-prima de seu estilo inclassificável. Ainda jovem, já em Ipanema, recebeu o apelido “Macalé”, que o acompanharia por toda a vida.
A formação musical foi sólida: piano, violoncelo, violão, análise musical, orquestração. Em 1965, profissionalizou-se no Grupo Opinião, núcleo fundamental de resistência cultural em plena ditadura. Desde o início, Macalé já se colocava como uma figura dissonante — musical e politicamente.
A estética do risco: do “maldito” ao farol de liberdade
Macalé jamais aceitou rótulos, mas o mercado tentou enquadrá-lo como um dos chamados “malditos” da MPB — artistas que fugiam ao padrão comercial, que desafiavam a indústria cultural, que preferiam a autonomia ao aplauso fácil. Ele rejeitava o termo, mas incorporava o espírito: sua obra sempre tensionou as fronteiras do aceitável.
Seu primeiro álbum solo, Jards Macalé (1972), tornou-se um marco da música de vanguarda. Com arranjos criados ao lado de Lanny Gordin e Tutty Moreno, e letras de parceiros como Torquato Neto, Waly Salomão e José Carlos Capinam, o disco atravessou o clima de censura com experimentação sonora, poesia cortante e uma estética do desequilíbrio que virou sua marca.
O segundo disco, Aprender a Nadar (1974), carregava em seu título uma resposta poética a uma ameaça velada dos agentes da ditadura. Lançado simbolicamente na Baía de Guanabara, tornou-se símbolo de coragem e resistência.
A parceria com Gal Costa, Maria Bethânia, Naná Vasconcelos e Caetano Veloso — com quem trabalhou nos arranjos do disco Transa, gravado no exílio — consolidou sua presença como um dos arquitetos da MPB que ousava desmontar e remontar a própria noção de canção.
Aos 80 anos, Macalé repetia que “falar de amor é um gesto político”, ao lançar o disco Coração Bifurcado. Até o fim da vida, manteve a irreverência, a inquietação e a vontade de provocar o ouvinte.
Depoimentos e a comoção nacional
A morte de Macalé mobilizou artistas, autoridades e instituições culturais. As homenagens reforçaram sua condição de referência ética, estética e política.
Caetano Veloso
“Macalé foi um irmão de invenção. Sem ele, a música brasileira seria mais pobre, mais obediente. Ele me ensinou a ouvir o inesperado.”
Maria Bethânia
“Jards era coragem pura. Um artista que cantava com o corpo inteiro. Pelo amigo e pelo gigante, acendo uma vela e deixo a música falar.”
Gilberto Gil
“Macalé era desses espíritos que movem a cultura por dentro, como vento forte que ninguém controla. Sua obra seguirá soprando.”
Gal Costa
(Depoimento de arquivo, recuperado pela equipe do artista)
“Macalé sempre teve uma generosidade que não aparecia. Ele mordia o mundo, mas abraçava os amigos. Um músico radical no melhor sentido.”
Fernanda Montenegro
“A música de Macalé tem teatralidade, tem gesto. Ele era um ator da canção, um poeta do som.”
Elza Soares
(Depoimento de arquivo, amplamente citado)
“Macalé nunca teve medo. Ele ia onde a música chamava — e chamava bonito.”
Ministra da Cultura, Margareth Menezes
“Perdemos um mestre da liberdade artística. Macalé é referência para todos que acreditam que a cultura é espaço de enfrentamento e criação.”
Legado
Jards Macalé não deixa apenas discos. Deixa uma ética. Um modo de ser artista no Brasil.
- A recusa ao conformismo.
- A defesa radical da liberdade estética.
- A parceria com poetas que moldaram a contracultura.
- O risco permanente como método de criação.
- A música como gesto político.
Para muitos, ele foi o “anjo torto” que desafinou o coro dos contentes — parafraseando Drummond — e, por isso mesmo, abriu caminho para novas gerações de músicos, poetas e artistas que se atrevem a não caber em nenhuma caixinha.
Imagem destacada: Reprodução Facebook Jards Macalé





Respostas de 2
Não se pode deixar de registrar a participação de Macaé na criação do grupo carnavalesco “Suvaco do Cristo”,
Com mais esta perda, a música brasileira vai empobrecendo e em breve, muito breve – um década no máximo – seremos irremediavelmente miseráveis, pois teremos perdido todos os nossos grandes talentos. E não há luz no fim do túnel…