Por ALEXANDRE DE JESUS DOS PRAZERES – MANGUE JORNALISMO*
A Câmara Municipal de Aracaju aprovou por unanimidade no dia 17 de julho o Projeto de Lei 47/2025, que versa, em termos práticos, sobre o que ficou conhecido no Brasil como “intervalo bíblico” em escolas públicas. Quem é o autor do projeto? Um ou uma parlamentar espírita, mulçumano, candomblecista, ateu ou agnóstico? Não. Um pastor, o vereador pastor Diego (União Brasil), o que é uma das características de propostas semelhantes que estão se multiplicando em parlamentos municipais e estaduais no Brasil.
Qual o conteúdo do PL 47/2025? Em resumo, textualmente encabeçando o projeto está escrito que: “Dispõe sobre a garantia da liberdade de reunião religiosa entre alunos durante o intervalo escolar nas instituições de ensino do município de Aracaju”.
Mas isto já não está previsto pelo princípio constitucional de liberdade religiosa? Sim está, desde que seja uma manifestação realmente espontânea por parte de alunos e não articulações proselitistas orquestradas por instituições religiosas com o objetivo de burlar a laicidade que deve ser mantida em espaços e instituições geridos pelo Estado. E este é exatamente ponto que desejo discutir por meio deste texto.
Os “intervalos bíblicos” podem ser descritos como reuniões de grupos de estudantes que, no horário de recreio, realizavam encontros “voluntários” ou “espontâneos” para leitura da Bíblia, oração, louvor e reflexão cristã nos pátios ou auditórios das escolas públicas.
A ênfase está na ideia de que se trata de manifestações religiosas espontâneas de estudantes, embora matérias jornalísticas apontem o envolvimento direto de grupos missionários e “influencers evangélicos” que atuam em algumas escolas como líderes dos cultos. Dados que sinalizam uma articulação mais estruturada do que simples e espontânea iniciativa de alunos, sugerindo um processo ativo de mobilização missionária dentro de contextos escolares públicos.
Um breve histórico sobre os “intervalos bíblicos”
Vamos a um breve histórico sobre a ocorrência de “intervalos bíblicos” em escolas públicas. No início de 2024, começaram a surgir relatos sobre grupos de estudantes que, no horário de intervalo, realizavam encontros para leitura da Bíblia, oração, louvor e reflexão cristã nos pátios ou auditórios das escolas estaduais de Pernambuco (FERRAZ, 2025).
O Ministério Público de Pernambuco (MPPE) provocado por denúncia do Sindicato dos Trabalhadores da Educação de Pernambuco (SINTEPE) decidiu atuar. Nos meses seguintes, o MPPE reuniu-se com a Secretaria de Educação e com o SINTEPE, resultando em uma audiência pública ocorrida em novembro e dezembro de 2024, convocada pela Assembleia Legislativa de Pernambuco (ALEPE), para debater as práticas religiosas escolares — reunindo alunos, professores, gestores e parlamentares.
Estudantes envolvidos nos “intervalos bíblicos” defenderam o caráter voluntário do culto e o caráter privado do tempo de recreio. Parlamentares evangélicos, por sua vez, reagiram criticando as restrições propostas, argumentando que qualquer tentativa de impedir os encontros durante o intervalo feriria o direito à liberdade religiosa (SOBREIRA, 2024).
Desde então, o debate se expandiu para outras localidades: em Manaus, um vereador apresentou PL em maio de 2025 para autorizar legalmente o “intervalo bíblico” em escolas públicas e privadas, como prática voluntária promovida por estudantes. Projetos similares também surgiram em Divinópolis (MG) em julho de 2025, bem como em ao menos 13 capitais em meados de 2025, segundo levantamento do UOL (BIMBATI, 2025), com vereadores propondo regulamentação de devocionais no recreio e uso da Bíblia como material de apoio em salas de aula.
Entre os defensores dos “intervalos bíblicos” há a constante afirmação de que se constituem em manifestações religiosas espontâneas por parte de estudantes, porém as matérias jornalísticas documentam a atuação de grupos missionários como o Avival School e do digital influencer Guilherme Batista.
O Aviva School figura em reportagens como organização que atua em cerca de 15 estados do Brasil, realizando encontros denominados “Flow” nos recreios escolares, que começam como palestras motivacionais e evoluem para devocionais com música, testemunhos e participação de alunos liderados pela equipe. Já em relação a Guilherme Batista, relatos apontam que esse pregador já teria evangelizado em cerca de mil escolas no país, com vídeos nas redes sociais mostrando alunos orando e chorando em resposta emocional à pregação.

Estratégia evangelística da extrema direta para “converter” alunos
Além disto, é plausível acreditar que mesmo reuniões de pequenos grupos de alunos, suspostamente espontâneas, façam parte de estratégias evangelísticas incentivadas por igrejas evangélicas locais das quais os alunos são membros. Neste sentido, os alunos são incentivados a atuarem como agentes evangelizadores com o objetivo de converter outros estudantes, utilizando os “intervalos bíblicos” como estratégia missionária.
Não é uma novidade a ação missionária evangélica em espaços informais de escolas e universidades, ou a realização de eventos supostamente motivacionais, porém com teor religioso e proseletista, em auditórios de escolas e universidades, contando com a facilitação de professores e gestores escolares evangélicos.
Para citar alguns exemplos de destaque, no contexto universitário, é histórica a atuação da Aliança Bíblica Universitária (ABU) com foco em formação de lideranças estudantis, e evangelismo qualificado no contexto universitário; e dos Jovens Com Uma Missão (JOCUM), representante no Brasil da agência missionária internacional Youth with a Mission, que atua apoiando igrejas evangélicas locais, promovendo treinamento e mobilização evangelística para atuação em espaços como escolas, universidades e outros ambientes públicos.
Os projetos de lei apresentados por parlamentares evangélicos, incluindo-se o de Aracaju, com o objetivo de legislar sobre os tais “intervalos bíblicos”, articulam-se em torno de uma noção de liberdade religiosa similar as dos representantes da extrema direita política no Brasil.
Uma noção de liberdade, seja religiosa ou de expressão absolutas, sem considerar que tais liberdades não devem ultrapassar os limites da lei, pois ao ultrapassarem esses limites se constituem em práticas criminosas.
O PL 47/2025, no art. 2º, expõe que a liberdade religiosa é direito de todo cidadão, é “um direito fundamental do indivíduo de manifestar publicamente sua crença”, e declara que “é vedado ao poder público proibir tais manifestações”, sem esclarecer que há lugares nos quais tais manifestações não devem ocorrer, principalmente com propósitos proseletistas, pois se constituirão em afronta a laicidade do Estado brasileiro. E, por este motivo, o poder público deve proibir tais manifestações. Vejam que os mesmos grupos políticos que encabeçam propostas como “Escola sem partido”, acusando professores de realizarem doutrinação política nas escolas, desejam facilitar a realização de doutrinação religiosa nestas mesmas escolas.
A evidência empírica acerca de como a laicidade é compreendida e praticada no Ocidente demonstra que se trata de arranjos civilizatórios com o objetivo de lidar com a diversidade religiosa presente no âmbito de cada país, garantindo liberdade e proteção, principalmente, às minorias religiosas, ou seja, os mais vulneráveis. Porém não havendo um modelo único de laicidade, pelo contrário, revelando que há heterogeneidades que apontam para a existência de distintas formas de laicidades, sempre adaptadas à história e à cultura de cada país (ORO, 2011).
Em meio a isto, para dar conta do contexto brasileiro, do ponto de vista de pesquisas sociológicas e antropológicas, a laicidade brasileira ou “lacidade à brasileira” tem sido denominada como modelo de “laicidade flexível”. Esta noção contrasta principalmente com o modelo francês (laïcité), laicidade estrita, exclusão da religião do espaço público. Assim, diversos autores brasileiros têm se debruçado sobre essa configuração específica da laicidade no Brasil, propondo conceitos que orbitam a noção de “laicidade flexível”: Laicidade à brasileira (ALMEIDA, 2015); Laicidade possível (GUERRIERO, 2011); e Pluralismo regulado (PASSOS, 2016).

“Laicidade flexível”?
A noção de “laicidade flexível” tem se mostrado útil para compreender a especificidade da relação entre religião e Estado no Brasil. E que longe de um ideal normativo de separação absoluta, o que se vê é um modelo híbrido, em que o Estado laico convive com uma presença religiosa ativa e, por vezes, até mesmo institucionalizada pelo Estado.
Porém, outra abordagem que tem sido útil para lidar com cenário latino americano é a de “Estado pluriconfessional”. Este conceito tem sido utilizado pelo sociólogo e historiador mexicano Roberto Blancarte (2001; 2006; 2009), estudioso da relação entre religião e Estado na América Latina. Ele propôs o conceito de “Estado pluriconfessional” como uma alternativa analítica à clássica dicotomia entre Estados confessionais e laicos.
Segundo Blancarte, o “Estado pluriconfessional” é aquele que, não se assumindo como confessional nem plenamente laico, adota políticas públicas e práticas institucionais que resultam em um reconhecimento tácito ou explícito de múltiplas confissões religiosas. Ele não promove uma religião específica, mas mantém relações privilegiadas com algumas expressões religiosas, geralmente majoritárias, ainda que reconheça a existência de outras.
O “Estado puriconfessional”, “embora não promova uma religião específica, mantém relações privilegiadas com algumas expressões religiosas majoritárias”, isto, no caso do Brasil fica evidente: a religião de maior presença histórica e influência cultural (a Igreja Católica Romana) e a que devido ao crescimento numérico e capacidade de articulação política pretende transformar suas pautas religiosas em política de Estado (as igrejas evangélicas).
É, neste contexto de articulação política, que o PL 47/2025 se insere, como parte de esforços de uma religião majoritária no Brasil para ampliar relações privilegiadas com o Estado brasileiro, enfraquecendo a laicidade no espaço das escolas públicas com o objetivo de facilitar a doutrinação religiosa e a conversão de alunos e demais membros da comunidade escolar.

Perguntas que deveriam ter sido feitas pelos vereadores de Aracaju
Na justificativa para este projeto, que consiste em apenas um parágrafo, consta: “O presente projeto de lei tem como objetivo assegurar o direito à liberdade religiosa e fomentar a convivência pacífica entre os alunos, promovendo um ambiente escolar mais inclusivo e respeitoso”.
Então, faço alguns questionamentos que deveriam ter sido feitos pelos vereadores de Aracaju antes de aprovar um projeto desta natureza:
1) de que forma a liberdade religiosa tem sido prejudicada no âmbito das escolas públicas aracajuanas?
2) Sobre quais manifestações religiosas “espontâneas” de estudantes o PL se refere e pertencentes a quais tradições religiosas? Faço a pergunta, embora o PL 47/2025 se quer cogite a pressuposta espontaneidade das manifestações religiosas apressou-se em garantir: “Fica garantido aos alunos das instituições de ensino do município de Aracaju o direito de realizar reuniões religiosas durante os intervalos e períodos extracurriculares, desde que sejam respeitadas as normas de convivência e a ordem pública”. Aqui, parece não importar se estas “reuniões religiosas” sejam parte ou não de estratégias com fins proselitistas, instrumentalizando o ambiente escolar para estes fins.
3) Quais dados de pesquisas ou estudos identificam, descrevem e quantificam violações de direito à liberdade religiosa no ambiente de escolas públicas municipais de Aracaju e que serviram para amparar um projeto de lei como este? Pois, no parágrafo que apresenta uma justifica para este PL, consta apenas além do que já expus que: “A recente mobilização ocorrida em Pernambuco evidencia a necessidade de regulamentação dessa questão, a fim de prevenir conflitos e garantir o respeito às diversas crenças presentes no ambiente escolar”.
4) Consiste em impedimento à liberdade religioso limitar práticas proselitistas no âmbito das escolas públicas? Pergunto isto, uma vez que o PL no art. 2º veda ao poder público proibir manifestações religiosas nas escolas.
5) Será que os vereadores de Aracaju nem consideraram os propósitos proselitistas de algumas manifestações religiosas? Algo amplamente documentado por matérias jornalísticas no caso dos tais “intervalos bíblicos”.
6) será que os vereadores de Aracaju assumiram como fato que todas essas manifestações religiosas são espontâneas, sem considerar que algumas práticas possam ser parte de estratégias missionárias?
7) Se o objetivo é prevenir conflitos e garantir respeito às diversas crenças presentes no âmbito escolar, quais casos evidenciam que estudantes de outras crenças, exceto os evangélicos, estejam reivindicando o uso do intervalo para realizar manifestações religiosas?
8) Não foi considerado que na forma como o projeto está elaborado, conforme expresso na justificativa, fruto do mesmo contexto dos casos envolvendo as escolas pernambucanas, seria indício de que foi construído não para atender aos interesses da diversidade religiosa, mas ao interesse de uma única confissão religiosa? Adivinhem qual.
Para finalizar, considerando o conteúdo do PL 47/2025, ao invés de prevenir conflitos, o PL é um incentivo para que o ambiente escolar seja transformado em espaço disputado por diferentes confissões religiosas. É exatamente o que recomendo que os praticantes de outras religiões façam para evidenciar o absurdo. Assim como os evangélicos legalizaram em Aracaju o “intervalo bíblico” no âmbito das escolas públicas municipais, os estudantes candomblecistas criem o “intervalo de invocação a Exu”; umbandistas, o “intervalo para Zé Pelintra ou Pomba Gira”; Satanistas, o “intervalo para Lúcifer”; ateus e agnósticos, o “intervalo do materialismo”; e assim sucessivamente.
Alexandre de Jesus dos Prazeres é doutor em Sociologia (UFS), mestre em Ciências da Religião (UNICAP) e bacharel em Teologia (UNICAP). Docente no Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião – PPGCR/UFS.
Referências
ALMEIDA, Ronaldo de. Religião e política: medos sociais, extremismo religioso e as eleições de 2014. Cadernos Adenauer, São Paulo, v. 16, n. 1, p. 13–26, 2015.
BIMBATI, Ana Paula. Vereadores fazem ofensiva por religião nas escolas em ao menos 13 capitais. Uol, 18 mai. 2025. Disponível em: https://educacao.uol.com.br/noticias/2025/05/18/vereadores-projetos-intervalo-biblico-escola-biblia-capitais.htm
BLANCARTE, Roberto. Estado laico y pluriconfesionalidad: el caso mexicano. In: MENDONÇA, Antônio Flávio Pierucci; NOVAES, Regina. (Org.). Religião e sociedade no espaço público. São Paulo: Attar; Rio de Janeiro: Iser, 2001. p. 129–152.
______. El Estado laico en América Latina: ¿realidad o ficción?. In: CAMPBELL, Carlos Miguel; CARRILLO, Hernán (Coord.). Religión, política y sociedad: experiencias recientes en América Latina. San José: DEI, 2006. p. 25–44.
______. El laicismo en América Latina: ¿una excepción histórica o una regla en construcción?. Revista Mexicana de Ciencias Políticas y Sociales, Ciudad do México, v. 51, n. 199, p. 13–33, 2009.
FERRAZ, Adriana. Intervalos bíblicos: devocional entra na rotina das escolas públicas. Uol, São Paulo, 28 jan. 2025. Disponível em: https://tab.uol.com.br/noticias/redacao/2025/01/28/intervalos-de-louvor-devocional-entra-na-rotina-das-escolas-publicas.htm
GUERRIERO, Silas. Laicidade à brasileira: o caso do ensino religioso. Horizonte, Belo Horizonte, v. 9, n. 23, p. 481–500, 2011.
ORO, Ari Pedro. A laicidade no Brasil e no Ocidente: algumas considerações. Civitas. Porto Alegre, v.11, n.2, p.221-237, maio-ago 2011.
PASSOS, João Décio. Religião e espaço público: reflexões sobre a laicidade. Cadernos Teologia Pública, São Leopoldo, n. 13, p. 1–15, 2016.
SOBREIRA, Vinícius. Intervalos bíblicos e cultos: audiência pública debate realização de atividades religiosas em escolas estaduais de Pernambuco. Brasil de Fato, Recife, 27 nov. 2024. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2024/11/27/intervalos-biblicos-e-cultos-audiencia-publica-debate-realizacao-de-atividades-religiosas-em-escolas-estaduais-de-pernambuco/
*Publicado originalmente no site Mangue Jornalismo.
Foto da capa: Alexandre: “Assim como os evangélicos legalizaram em Aracaju o ‘intervalo bíblico’ nas escolas, os estudantes candomblecistas, umbandistas, satanistas, ateus e agnósticos deviam ter seus intervalos (Crédito: Rede Digital Intervalo Bíblico)
Tags: Intervalo bíblico, Liberdade religiosa, Laicidade, Doutrinação religiosa, Escolas públicas, Projeto de Lei 47/2025, Aracaju





Uma resposta
O próprio nome, Intervalo Bíblico, já deixa claro a exclusão das demais manifestacaoes religiosas. Isto por si só, já fere o Direito a liberdade religiosa, conforme reza nossa Carta Magna. Não passa de estratégia para renovar os Templos Evangélicos, hoje, muitos vazios e/ou com a maioria dos fiéis caminhando para a velhice