Por RUDOLFO LAGO*, do Correio da Manhã
Ao receber, na terça-feira (18), o projeto que aumenta a faixa de isenção do Imposto de Renda para R$ 5 mil, o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), apesar de toda a demonstração de boa vontade com o projeto, já adiantou ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva que ele muito provavelmente será alterado no Congresso. E o mais provável é que tal alteração venha a se concentrar especialmente naquilo que o governo propõe como contrapartida para a perda de arrecadação que terá aumentando a isenção: taxar mais fortemente os mais ricos. Embora a grande ala conservadora da Câmara e do Senado torça o nariz para a ideia, é difícil imaginar a defesa de uma realidade onde quem é mais rico paga menos imposto.
Igual
Um estudo do Sindicato dos Auditores-Fiscais da Receita Federal (Sindifisco Nacional) aponta que se os mais ricos pagassem a mesma alíquota de imposto de renda da classe média isso, além de reduzir desigualdades, significaria uma entrada de R$ 140 bilhões por ano.
Perdas
O valor a mais na arrecadação, assim, considera o Sindifisco, é expressivamente maior que os cerca de R$ 25 bilhões que o Ministério da Fazenda estima que perderá de receita aumentando a faixa de isenção para quem ganha até R$ 5 mil. Mais receita com mais justiça.
Proposta do governo é mais modesta que a do sindicato
O Leão costuma ser mais manso com os mais ricos | Foto: Joédson Alves/Agência Brasil
Para fazer o cálculo, o Sindifisco simulou uma gradação para o piso de tributação das altas rendas, partindo de uma tributação mínima de 11,34%, para rendimento de R$ 50 mil mensais, e chegando a 20%, a partir do rendimento superiores a R$ 100 mil mensais. Considerando a tabela de alíquotas atuais, de 0% a 27,5%, essa medida ampliaria substancialmente a progressividade do Imposto de Renda e seria capaz de promover um aumento de arrecadação até os R$ 140 bilhões simulados. A sugestão é mais ousada do que a apresentada pelo governo, que prevê 10% para rendas superiores a R$ 100 mil. No caso, mais R$ 40 bilhões.
Problema
Mas o Sindifisco vê um problema. Que pode trazer dificuldades para o projeto do governo, pela provável pressão. Estados e municípios também vão perder arrecadação. E vão cobrar a necessidade de uma compensação. A perda refere-se especialmente aos servidores.
Na fonte
Com o aumento da faixa de isenção, haveria uma perda no imposto retido na fonte dos salários de boa parte dos servidores públicos municipais e estaduais. A estimativa é que 80% dos funcionários municipais têm rendimento mensal até R$ 5 mil.
Fundos
Além disso, o Artigo 159 da Constituição estabelece que metade da arrecadação do Imposto de Renda deve compor os Fundos de Participação dos Estados (FPE) e dos Municípios (FPM). Muito provavelmente, mudanças no Congresso focarão na compensação.
Positiva
“Isso impõe a necessidade de se criar na própria proposta legislativa um mecanismo de compensação”, considera o presidente do Sindifisco, Dão Real Pereira dos Santos. “A diferença entre o aumento e a redução tem de ser positiva para compensar tais perdas”.
*Rudolfo Lago é jornalista do Correio da Manhã / Brasília, foi editor do site Congresso em Foco e é diretor da Consultoria Imagem e Credibilidade
Publicado originalmente no Correio da Manhã.
Foto de capa: Hugo Motta disse que projeto será alterado | Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil
Uma resposta
Não, não é difícil defender a iniquidade fiscal de tributar os pobres e isentar os ricos. Ao contrário. A justificativa está de pé há quase 50 anos: a teoria do ‘trickle down’, gotejamento. A riqueza escorre dos ricos para os pobres. Os ricos não a guardam embaixo do colchão, aplicam-na em atividades que geram emprego e renda. O governo esbanjador e corrupto usa muito pior o dinheiro do que os próprios ricos. Deixem os ricos em paz! A sociedade ganha muito mais assim. Essa teoria tem forte relação com a brutal concentração de renda nos países anglo-saxões dos dois lados do Atlântico Norte e nos demais que foram progressivamente embarcando na canoa neoliberal. FHC é o autor da lei que isentou lucros e dividendos do IRPF. Os argumentos dos seus brilhantes economistas eram um repeteco daquela tese, com o acréscimo vira-lata e chantagista de que era necessário isentar os rendimentos do capital para reter o próprio aqui na Viralatalândia, à qual eles faziam um favor ao permanecer.
Nós, progressistas, estamos presos no círculo de aço ideológico-argumentativo do neoliberalismo. É poderoso. Toda a preocupação do governo eleito contra o protofascismo golpista e a direita em geral concentra-se em dois pontos: 1- não haverá perda de arrecadação, portanto, sem risco para o calabouço fiscal; 2- não vai tirar nada de essencial dos mais ricos, “ninguém ficará pobre” (Lula). A obscenidade de nossa injustiça fiscal, nossa pavorosa regressividade, que todos reconhecem quando se fala “neutralmente” da estrutura tributária sem proposta real de alteração, isso passa como natural ou inevitável.
A lasquinha de renda dos mais ricos, que tanto preocupa o governo e será reduzida pelo Centrão (alguém duvida?), é nada, comparado com o que uma verdadeira política fiscal progressiva e redistributiva deveria fazer. Quatro alíquotas de IRPF, excluindo a faixa isenta, é um padrão suíço (ou sueco). Um cidadão que ganha R$ 8.000 e outro que ganha R$ 100 mil caírem na mesma alíquota máxima é uma ofensa a qualquer princípio de justiça tributária mínima.
Nestas plagas oligárquicas desde as capitanias hereditárias, já chegou a haver dez alíquotas, em tempos de leão desdentado (pré-1964). Quando lhe puseram dentes, o Leão mostrou ser classista: o PAEG de R. Campos (o avô) e O. G. Bulhões criou uma estrutura tributária mais complexa, porém centrada no consumo. Tributação sobre consumo é intrinsecamente regressiva, visto que os ricos poupam boa parte de sua renda e os pobres a gastam toda em consumo. E o IRPF ficou sempre reduzido a poucas e injustas alíquotas. O IRPJ, por sua vez, é substancialmente injusto: oligopólios o repassam ao consumidor, tornando este o verdadeiro contribuinte; pequenas e microempresas são sufocadas por ele, mesmo com todos os Simples e demais arranjos inventados para aliviar seus efeitos.
A Constituição Cidadã (até onde? até quando?) mudou a distribuição das receitas, descentralizando-as um pouco, mas foi parca em progressividade: recomendações gerais sobre capacidade contributiva (“sempre que possível”), medidas deixadas à lei complementar (Imposto sobre Grandes Fortunas, jamais regulamentado) etc. O pouco que surgiu, como o Imposto sobre Doações e Transmissão Causa Mortis (heranças), foi devidamente podado pela tesoura classista nos legislativos estaduais, para não incorporar alíquotas progressivas conforme faixas de valor patrimonial – que o diga o deputado José Américo do PT em SP, que viu seu projeto de alíquotas progressivas ser engavetado na ALESP.
Todos os podres poderes da República se unem para proteger a apropriação e a concentração da renda nacional em pouquíssimas mãos. Assim, o Supremo – que hoje nos vemos na contingência de defender contra os golpistas, depois de termos sofrido (nunca esquecer!) sua anuência a todas as brutalidades e inconstitucionalidades contra Dilma e Lula – julgou, certo dia, que jatos executivos e iates, lanchas e assemelhados não são veículos automotores. Parece que Éolo, o deus dos ventos, e Poseidon, o senhor dos mares, são suas forças motrizes. Portanto, não se aplique o Imposto sobre Propriedade de Veículos Automotores a esses presentes dos deuses. O STF deu ao povo brasileiro um presente de grego com tal decisão. O fusquinha e o Uno, bem como os automóveis da classe média e até os dos ricos (!), e ainda motos superiores a certa potência, pagam o imposto, mas aqueles meios olímpicos – e oligárquicos – de locomoção ficam isentos.
Quando surgirá um governo que “ponha o rico no imposto de renda” em ações, não em palavras? Quando essa discussão será levada aos movimentos sociais, às bases dos partidos populares e, a partir desses segmentos, à população escorchada por impostos sobre o consumo e alíquotas/isenções de IR tão favoráveis aos mais ricos (ademais presenteados com renúncias fiscais bilionárias) e tão esmagadoras aos mais pobres? Quando se criará um forte movimento de opinião pública, de movimentos e bases sociais, para pressionar o Legislativo por justiça fiscal, a partir de um projeto completo e consistente de nova estrutura tributária? Quando sairemos do círculo restritivo que nos reduz à mediocridade de fazer uma concessão real, mas muito limitada, como que pedindo desculpas aos ricos por cortar suas unhas um décimo de milímetro a mais para “manter o equilíbrio fiscal” e abandonar toda a discussão sobre tributação progressiva?