Herança Patriarcal dos “Homens Cordiais”

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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

Defendo a hipótese de o capitalismo financeiro tardio, aqui, se dever ao longo tempo de transição entre o patriarcado dos “homens cordiais” com arranjos de exploração e a impessoalidade do uso de dinheiro para pagamentos. Esses arranjos informais eram predominantes, na área rural, até a população urbana predominar ao longo dos anos 60s.
O capitalismo financeiro no Brasil se constitui como fenômeno tardio, plenamente implantado, embora sem uma Economia de Mercado de Capitais desenvolvida, somente a partir das reformas bancárias e de mercado de capitais em 1964. A bancarização, o crédito e a riqueza financeira indexada só puderam emergir plenamente quando houve a transição estrutural de uma economia e sociedade, baseadas em mecanismos pessoais de dominação — o patriarcado dos “homens cordiais” —, para uma ordem urbana.
Nela, a sobrevivência passa a exigir mediação monetária impessoal, garantida por um sistema bancário em escala nacional. Tinha já uma Autoridade Monetária supervisora das atividades dos bancos no cumprimento de suas exigências.
Neste sentido, a expansão do sistema bancário brasileiro esteve historicamente condicionada 1. à lenta dissolução das formas rurais de dependência pessoal e 2. à substituição progressiva da terra e do favor pelo dinheiro bancário como fundamento da integração social – e avanço do poder econômico. As instituições contratuais e financeiras edificam o sistema bancário.
Desdobramentos das pesquisas para teste dessa hipótese devem distinguir, qualitativamente, e não só temporalmente, as seguintes evoluções. Primeira, houve uma larga duração da herança escravocrata e da concentração fundiária no país.
Após a extinção da escravidão, em 1888, a relações de trabalho e crédito mantiveram-se como fossem “favores pessoais”, não relações monetárias impessoais. Nessa manutenção de aviamento, fiado, tutela e violência, com a pop predominantemente moradora em zona rural, não houve tanta demanda social por bancos.
A urbanização brasileira foi tardia: em 1960, a população urbana ainda era 45% do total. No Norte e no Nordeste, somente no censo de 1980 a urbana e a rural estavam próximas.
Mas, dado seu volume de uma das maiores populações e e um dos maiores territórios do mundo, essa transição pode ser considerado um processo relativamente rápido de 1950-1980. O Censo Demográfico de 1970 registrou mais de a metade da população total brasileiros já ser moradora em cidades.
A emigração rural buscava se afastar da dependência do “coronelismo”, mas muitos se tornaram dependente do salário contábil – para o bem, para o mal. Nessas novas relações de produção industrial e prestação de serviços urbanos, ser cliente de um banco se torna um requisito ou mesmo obrigação da vida social urbana.
Em paralelo, foi acontecendo a modernização institucional e tecnológica. As telecomunicações eram fundamentais para a compensação bancária e os pagamentos em todo o território nacional. Contas-salário, tarifas, crédito consignado e outros produtos vão sendo oferecidos (e demandados) com a financeirização da reprodução social.
Em síntese, seria válido afirmar: o banco substituiu o coronel? Ele é um mediador da sobrevivência mais moderno, mais impessoal e mais lucrativo — para quem estudou (inclusive Educação Financeira), trabalhou e se esforçou.
Minha ideia-chave, para uma nova investigação sobre o sistema bancário brasileiro, seria a seguinte. O atraso da financeirização no Brasil não foi atraso tecnológico, mas sim um atraso das condições sociais e demográficas capazes de tornarem o dinheiro bancário indispensável à reprodução da maioria da população.
A consequência explicativa central é a financeirização brasileira não ser “importada” nem mero efeito das reformas neoliberais. Ela brota da urbanização e se torna hegemonia monetária quando o trabalhador deixa de depender do proprietário de terra e passa a depender da gestão do seu dinheiro no sistema bancário. Quando o povo se torna urbano, o banco se torna soberano.
A história bancária brasileira não nasceu com grandes instituições, reguladores de uma Autoridade Monetária ou mercados impessoais. Antes de agências antes luxuosas e depois com portas giratórias para prevenção de risco de armas de metal, havia um país vasto, disperso, rural e pouco monetizado.
No interior do Brasil dessa época, a circulação de dinheiro era escassa, o trabalho assalariado era exceção e a confiança interpesssoal era tanto um recurso quanto uma necessidade — mais valiosa diante juros e colaterais patrimoniais inexistentes.
Em pequenas cidades estavam os primeiros “bancos” brasileiros: arranjos sociais rudimentares de crédito, guarda de valores (gestão de dinheiro) e intermediação financeira, formados por comerciantes locais, coronéis e instituições religiosas. Eles não pareciam bancos, tampouco operavam como tais, mas desempenhavam funções centrais para as economias regionais.
O cheque surgiu no Brasil, em 1845, quando o Banco Comercial da Bahia começou a emitir um instrumento chamado “cautela”, considerado um precursor do cheque. Após essa data, a legislação brasileira evoluiu para regulamentar o cheque, com destaques para a Lei 1.083/1860, porque disciplinou a atividade bancária em geral, a Lei 149-B, de 1893, a primeira legislação brasileira a se referir especificamente ao cheque, e a Lei 2.591/1912, porque estabeleceu requisitos e prazos para o cheque.
Por muitas décadas, as mulheres brasileiras não tinham permissão para abrir contas bancárias próprias ou assinar cheques sem a autorização do marido. Essa situação mudou apenas com o Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121), de 1962. Coincide com a difusão da pílula anticoncepcional, especialmente entre as usuárias potenciais, na primeira década após sua introdução, em 1962, no estado de São Paulo.
Antes de 1962, as mulheres casadas eram consideradas legalmente incapazes e dependentes dos maridos perante a lei civil. Elas precisavam de autorização conjugal para uma série de atos da vida civil, incluindo trabalhar fora de casa, ter bens em seu nome e gerenciar suas próprias finanças.
O acesso a serviços bancários, como a abertura de contas e, consequentemente, a emissão de cheques, era restrito ou exigia a aprovação e, muitas vezes, a assinatura conjunta do cônjuge. Com o Estatuto da Mulher Casada, a figura do “pátrio poder” exclusivo do marido foi abrandada, concedendo às mulheres casadas maior capacidade civil e o direito de gerir seus próprios bens e rendas, o que na prática lhes permitiu ter contas bancárias e assinar cheques de forma independente.
Posteriormente, na década de 1980, as mulheres também conquistaram o direito de possuir seu próprio Cadastro de Pessoas Físicas (CPF). Antes, eram registradas como dependentes do marido para fins fiscais e financeiros.
Em 1966, o Brasil passou a aplicar a Lei Uniforme sobre o Cheque, resultado de uma conferência internacional em Genebra, após aderir ao acordo em 1942.
A história da bancarização, portanto, emerge da combinação entre relações de poder, hierarquias sociais e estruturas pré-capitalistas de dependência pessoal, inclusive nas relações conjugais. Lentamente, foram absorvidas e transformadas pelo Estado nacional e pela economia de mercado.
A modernização bancária só ganhou escala quando o Brasil se urbanizou e se monetizou, especialmente após meado dos anos 1960. Rompeu, progressivamente, com a herança patriarcal dos “homens cordiais”.


*Fernando Nogueira da Costa é Professor Titular do IE-UNICAMP. Baixe seus  livros digitais em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com

Foto de capa: “Família brasileira no Rio de Janeiro”, de Jean-Baptiste Debret (1839)

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