Guinada à direita na Bolívia: Rodrigo Paz vence eleição e promete “capitalismo para todos” em meio à crise mais grave em décadas

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A Bolívia encerra um ciclo de 20 anos de governos progressistas com a eleição de Rodrigo Paz, do Partido Democrata Cristão (PDC), que venceu o segundo turno presidencial neste domingo (19) com 54,5% dos votos. Sua vitória — a primeira da centro-direita desde 2005 — marca o retorno de forças conservadoras ao poder num país mergulhado em crise econômica, política e institucional.

Filho do ex-presidente Jaime Paz Zamora, o novo mandatário, de 58 anos, chega ao Palácio Quemado com um discurso de “mudança sem rupturas”, embalado pelo slogan de campanha “capitalismo para todos”. A frase, que resume sua promessa de conciliar o mercado com programas sociais, revela o tom de sua proposta: um liberalismo moderado que pretende desmontar o legado de redistribuição e soberania econômica construído sob Evo Morales e Luis Arce.

O fim de uma era e o colapso da esquerda boliviana

A vitória de Paz sela o esgotamento político do Movimento ao Socialismo (MAS), partido que dominou o cenário boliviano desde 2006. O colapso da legenda foi acelerado pela cisão entre Evo Morales e o atual presidente Luis Arce, que fragmentou o campo progressista e abriu caminho para a direita. O MAS, que chegou a ser um dos mais poderosos movimentos populares da América Latina, obteve menos de 4% dos votos no primeiro turno — uma derrota histórica.

Fora da disputa, Evo Morales pediu voto nulo e denunciou a ausência de uma alternativa popular. “Ambos representam um punhado de pessoas, não o movimento popular nem o indígena”, afirmou, de Cochabamba, onde vive protegido por uma guarda comunitária após ter sido alvo de uma ordem de prisão por suposto tráfico de menor de idade — acusação que nega.

A derrocada da esquerda ocorreu em meio à pior crise econômica em quatro décadas. A Bolívia sofre com a escassez de dólares e combustíveis, inflação acima de 23% e colapso das reservas internacionais após o declínio da produção de gás natural, principal fonte de divisas do país desde sua nacionalização em 2006.

O novo governo assume, portanto, um país exaurido e descrente. As longas filas para comprar combustível e produtos básicos tornaram-se símbolo do fim de um ciclo que, por anos, sustentou avanços sociais significativos.

Um herdeiro das elites com discurso de moderação

Rodrigo Paz nasceu no exílio, em Santiago de Compostela, em 1967, durante a ditadura militar boliviana. Criado em diversos países da América do Sul, formou-se em Relações Internacionais e fez mestrado em Gestão Política em Washington, nos Estados Unidos — formação que o alinha à tradição tecnocrática e liberal de elites políticas latino-americanas educadas no exterior.

Apesar de sua trajetória familiar e política vinculada à centro-direita, Paz conseguiu se apresentar como “outsider” num país cansado de velhos rostos. Sua campanha moderada, que prometia “diálogo e reconstrução institucional”, atraiu parte do eleitorado popular e mestiço que tradicionalmente apoiava o MAS.

Para analistas, sua vitória reflete menos uma adesão às ideias liberais do que um voto de cansaço diante da crise. “Paz conseguiu capturar o voto rural e urbano que o MAS perdeu”, resume o cientista político Eduardo Gamarra, da Universidade de Pittsburgh.

O “capitalismo para todos” e o retorno da ortodoxia

O projeto econômico de Paz, batizado de “capitalismo para todos”, propõe a desregulamentação da economia, incentivos fiscais, cortes de impostos e descentralização orçamentária entre departamentos e províncias. Ele promete reativar a economia via fomento ao crédito e estímulo à formalização — em um país onde mais de 80% dos trabalhadores estão na informalidade.

O presidente eleito defende que “todos os bolivianos são capitalistas”, e promete substituir o “Estado tranca”, sua expressão para um Estado burocrático e ineficiente, por uma estrutura “ágil e produtiva”.

Na prática, trata-se de uma tentativa de reintroduzir a lógica de mercado e abrir espaço ao setor privado, com o argumento de que o país “precisa voltar a crescer”. Para críticos, a retórica de Paz ecoa o velho receituário neoliberal — reformulado em linguagem moderna e despolitizada.

“É o retorno da ortodoxia travestido de pragmatismo”, analisa o jornalista boliviano Fernando Molina. “Paz é um político oportunista que aprendeu a vestir o discurso da moderação para conquistar um país esgotado pelo conflito político.”

Política externa: pragmatismo e dependência

No plano internacional, Paz sinalizou manter a Bolívia no Mercosul e nos BRICS, mas pretende adotar uma “aproximação pragmática” com os Estados Unidos. Durante a campanha, evitou se alinhar explicitamente a Donald Trump, mas indicou simpatia por um modelo de integração econômica subordinado ao capital externo.

Sobre o Brasil, afirmou que pretende “fortalecer a parceria estratégica” com o governo Lula, apesar das diferenças ideológicas — um gesto de cálculo diplomático num momento em que a economia boliviana depende fortemente das exportações de gás e energia ao país vizinho.

Entre a promessa e a incerteza

Paz assume o governo em 8 de novembro, ao lado do vice-presidente eleito, o capitão Edman Lara — um ex-policial popular nas redes sociais por denunciar corrupção. A combinação de um político de elite com um vice populista reflete uma aliança frágil e contraditória, montada às pressas para capturar o voto antipetista e anti-MAS.

Seu desafio imediato será lidar com um Estado endividado e uma população descrente. A Bolívia vive um processo de desindustrialização acelerada, dependente da importação de combustíveis e com o setor agrícola ameaçado pela crise climática.

A promessa de “capitalismo para todos”, num país com 11 milhões de habitantes e uma economia fortemente informal, soa, no mínimo, paradoxal. A aposta em um modelo de mercado num contexto de penúria fiscal e desigualdade estrutural tende a reproduzir os velhos padrões de concentração de renda que os governos do MAS haviam tentado mitigar.

Um país dividido, mais uma vez

A eleição de Rodrigo Paz simboliza o retorno da direita liberal a um país que, nos últimos 20 anos, experimentou o poder transformador — e também os limites — de um projeto popular e soberano. O novo presidente promete diálogo, mas representa, em essência, o reencaixe da Bolívia nos marcos do capitalismo periférico latino-americano.

Entre a desilusão com o passado recente e a incerteza sobre o futuro, o povo boliviano volta a caminhar sobre um terreno conhecido: o da esperança condicionada às promessas do mercado.


Imagem destacada: Reprodução redes sociais de Rodrigo Paz

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