Por BENEDITO TADEU CÉSAR*
O que está em curso no Brasil ultrapassa disputas partidárias. É a corrosão do pacto democrático que se desenha entre acordos de bastidores, manobras regimentais e uma ofensiva institucional para proteger políticos condenados e golpistas. A tentativa de impor anistia ampla — ou de reduzir penas — não pode ser vista como mero evento político: revela como o regime democrático segue sob ameaça ativa.
O contexto das manobras recentes
- Anistia e urgência:
O presidente da Câmara decidiu pautar o pedido de urgência para a proposta de anistia que alcançaria investigados e condenados pelos atos antidemocráticos do 8 de janeiro. Líderes bolsonaristas e do PL pressionam para que a anistia seja ampla, irrestrita e imediata. - Alternativa restrita de redução de penas:
Diante de resistência no Congresso e do temor de conflito com o STF, algumas negociações avançam para que, em vez da anistia total, seja aprovada uma proposta menos abrangente, que apenas reduza as penas. - Eduardo Bolsonaro líder da minoria + ausência prolongada:
O PL e parlamentares aliados articulam para que Eduardo Bolsonaro, que está nos Estados Unidos desde fevereiro, assuma a liderança da minoria na Câmara, com justificativa de que isso lhe permitiria alegar “missão autorizada” e, assim, não sofrer penalizações por faltas acumuladas. Caroline de Toni deverá abrir mão do posto de líder, tornando-se vice-líder ou responsável por tarefas em Brasília, enquanto Eduardo permaneceria fora do país.- O detalhe ainda mais escandaloso é que a tal “missão autorizada” tem sido usada para propor sanções contra o próprio Brasil. Ou seja, um parlamentar eleito para defender os interesses da nação atua no exterior para fragilizá-la. E, ao legitimar esse papel, o PL nivela sua direção e seus parlamentares a traidores da pátria, cúmplices de um projeto de submissão nacional.
- Desafio institucional ao STF, ao Estado de Direito e à legitimidade democrática:
A articulação para anistia ampla confronta decisões do Supremo Tribunal Federal — inclusive condenações já transitadas — e a Constituição, que proíbe anistia para crimes contra o Estado Democrático de Direito.
Perguntas urgentes que exigem resposta
- Até que ponto os presidentes da Câmara e do Senado estão efetivamente comprometidos com o desmonte do Estado democrático, ao apoiar (via pautas, urgência ou omissão) medidas que podem anular penalidades contra golpistas?
- Mandato parlamentar exige presença, responsabilidade, compromisso com o debate público. Pode-se exercer liderança legislativa “à distância” apenas pela via de manobras regimentais? Isso conflita com princípios básicos de representação.
- Qual é a função do STF neste momento: atuante como freio institucional ou colocado sob pressão para recuar diante de acordos políticos?
- Como a cidadania reage quando vê instituições que deveriam ser guardiãs da ordem democrática agindo para proteger os responsáveis pela tentativa de sua dissolução?
O que está em jogo: democracia vs impunidade
Essa disputa não é abstrata. É de fundo histórico. Golpes, ditaduras e regimes autoritários no Brasil foram combatidos pela incorporação dos princípios da responsabilização, da separação de poderes e do respeito à Constituição. Como afirma Norberto Bobbio, a democracia é caracterizada não só por eleições, mas por um “jogo institucionalizado” de contornos previsíveis e limites aos abusos. A impunidade para os que atentam contra esses limites é a negação da democracia.
Quando o Congresso propõe anistias para crimes contra o Estado Democrático de Direito, ele sinaliza que violações graves podem ser relativizadas. Isso enfraquece o papel do Judiciário, embute insegurança jurídica, estimula versões revisionistas da história, e abre espaço para novas agressões institucionais.
Além disso, quando pessoas e movimentos sociais percebem que instituições formais (Câmara, Senado) operam em favor de réus que desafiaram as próprias regras fundamentais da democracia, cresce o descrédito institucional. E, sem legitimidade compartilhada, o regime declina.
Hora de reagir
- Porque tanto as articulações pela anistia quanto para blindar mandatos ou fraquezas físicas são tentativas de consolidar impunidade, de encerrar processos que ameaçam setores do poder. Não é exagero dizer que isso configura parte de um golpe em curso — não aquele que foi consumado em dias, mas o que se consolida passo a passo, institucionalmente.
- Porque os prazos regimentais, a articulação de partidos e o colossal peso simbólico dos atos de 8 de janeiro (e das condenações do STF) tornam este um momento decisivo para definir se o Estado democrático ainda funciona como guardião das liberdades ou se será capturado por fórmulas de impunidade.
A vitimização como estratégia: o corpo como escudo
Desde antes de assumir a Presidência, Jair Bolsonaro vem explorando seu quadro de saúde como instrumento político. A cada novo avanço nas investigações contra si, reaparecem hospitalizações, sintomas agravados ou internações. Recentemente, voltou ao hospital com alegações de obstrução intestinal, em meio ao avanço da proposta de anistia e à iminência de uma possível condenação.
Essa prática, que transforma o corpo físico em escudo simbólico, combina com a estratégia de fuga da responsabilização por meio da vitimização. Ao contrário do personagem que se vendia como militar atlético, destemido e imune à “gripezinha” da Covid-19, Bolsonaro alterna momentos de bravata com aparições em leitos, sugerindo fragilidade.
O objetivo é claro: gerar empatia, reduzir a percepção de ameaça e construir um discurso de perseguição política e fragilidade pessoal, como se a prisão ou punição fosse desumana diante de seu “estado clínico”. Trata-se de uma tática que dialoga com setores conservadores e religiosos, reforçando o mito do “perseguido injustamente”, e que já teve precedentes na história política brasileira e internacional.
Se o Judiciário ceder a esse tipo de chantagem emocional, legitima-se uma distorção grave: a de que a condição clínica momentânea pode suspender a responsabilização por crimes graves, inclusive contra a democracia.
O tempo da democracia é agora
O golpe no Brasil não é algo que terminou: ele se prolonga no esforço para salvar réus, blindar mandatários ausentes, relativizar decisões do STF e instrumentalizar até mesmo quadros de saúde fragilizados para escapar da Justiça.
Mais grave ainda: Eduardo Bolsonaro, protegido por uma “missão autorizada”, atua no exterior para propor sanções contra o próprio Brasil. Ao aceitar e legitimar esse papel, o PL compromete não apenas sua bancada, mas a própria direção partidária em uma prática de traição nacional. É a negação da soberania — condição elementar para qualquer projeto democrático.
A ameaça à democracia, portanto, é também uma ameaça à independência política e econômica do país. Não ficará limitada a discursos ou disputas eleitorais: manifestar-se-á no retrocesso institucional, no descrédito das instituições, na fratura do contrato social e na submissão do Brasil a interesses externos.
É hora de resposta firme. Se o Estado de Direito não refutar esta ofensiva agora, perderemos espaço para reconstruí-lo depois — mas em condições muito mais adversas.
*Benedito Tadeu César é cientista político e professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Especialista em democracia, poder e soberania, integra a Coordenação do Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito e é diretor da RED.
Ilustração da capa: Golpe em curso: Bolsonaro e os presidentes da Câmara e do Senado – Imagem gerada por IA ChatGPT
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