Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*
A afirmação de a desigualdade (pobreza relativa) ser insuperável, enquanto a pobreza absoluta pode ser socialmente superada, não é um conhecimento factual neutro, mas sim um enunciado híbrido. Nela se combinam descrições empíricas, pressupostos teóricos e escolhas normativas. Ela não se situa integralmente nem no plano da Ciência Positiva nem no da crença pura: ocupa uma zona intermediária.
Para a esclarecer, convém decompor a proposição.
Primeiro, trata-se de levantar o conhecimento empírico. Há fatos amplamente documentados.
A pobreza absoluta caiu muito no mundo nas últimas décadas, medida por renda mínima, acesso a alimentos, água, energia, vacinação e expectativa de vida. Países com diferentes regimes políticos e econômicos conseguiram reduzir miséria extrema, ainda que por caminhos distintos.
A desigualdade relativa persiste mesmo quando a pobreza absoluta diminui. Em muitos casos, cresce.
Esses pontos pertencem ao campo do conhecimento empírico. São observáveis, mensuráveis e historicamente verificáveis.
Onde começa a interpretação teórica? Quando a ideia de a desigualdade ser “insuperável” não decorre diretamente dos dados, mas de quadros analíticos específicos. Por exemplo, há teorias com tratamento da desigualdade como resultado inevitável de diferenciações de produtividade, consequência estrutural da propriedade privada e da acumulação, ou efeito permanente de hierarquias sociais e tecnológicas.
Essas interpretações são teoricamente coerentes, mas contestáveis. Há períodos históricos – como no Estado de bem-estar europeu no pós-guerra – no qual a desigualdade foi reduzida de forma duradoura, embora não tenha sido eliminada.
Portanto, “insuperável” é uma afirmação forte. Isto porque já ultrapassa a constatação empírica e entra no terreno da teoria social.
O núcleo ideológico da proposição aparece quando se infere: “se a desigualdade é estrutural ou inevitável, então o objetivo legítimo da política deve ser apenas erradicar a pobreza absoluta”.
Nesse caso, há uma escolha de valores, não um fato. Define-se qual problema merece ser combatido, rebaixa-se a desigualdade a uma externalidade tolerável e reorienta-se a ação pública para mínimos sociais, não para redistribuição de renda ou riqueza. Esse passo é normativo, mesmo quando apresentado como “realista” ou “técnico”.
Essa formulação é compatível com uma posição ideológica liberal-igualitária mínima, social-liberal, ou conservadora pragmática. Nelas, a desigualdade é vista como funcional ou inevitável.
No entanto, o pragmatismo político sugere ao se priorizar a meta de eliminação da pobreza absoluta, não abre brecha para a contumaz crítica de oposição, mesmo diante bons resultados na melhoria das condições de vida dos mais pobres: – Mas a desigualdade continua…
A pobreza extrema é o verdadeiro escândalo moral. Por isso, políticas focalizadas substituem projetos redistributivos amplos.
Essa abordagem não é neutra, mas também não é dogmática. Na verdade, é uma visão de mundo capaz de se apresentar como tecnicamente informada.
Outras tradições críticas argumentam a pobreza relativa ser socialmente produzida, não um resíduo natural. Altos níveis de desigualdade reproduzem pobreza absoluta, instabilidade política e captura do Estado.
Mesmo quando a miséria extrema diminui, a desigualdade é capaz de bloquear mobilidade, corroer democracia e gerar novas formas de exclusão. No caso deste ponto de vista, a desigualdade deixa de ser pano de fundo e passa a ser objeto central da política.
Em síntese, a redução da pobreza absoluta é um fato histórico verificável. Porém, muitos dogmáticos de esquerda afirmam a ideia de a desigualdade ser “insuperável” deve ser vista como uma interpretação teórica, não um dado.
Ora, não é um “dado” os 10% dos brasileiros no topo da pirâmide de rendimentos per capita capturarem 59,1% da renda nacional, enquanto a metade mais pobre fica com apenas 9,3%?! O país aparece atrás apenas de África do Sul, Colômbia, México e Chile.
Em relação à concentração da riqueza, incluindo ativos financeiros e outros bens, como imóveis e automotores, o Brasil está na sexta posição no ranking mundial. Os 10% mais ricos detêm 70% do total, e o 1% no topo, mais de um terço.
Essa condição é econômica, política e socialmente superável dentro das regras democráticas e constitucionais?!
Os dados constam da terceira edição do Relatório da Desigualdade Global, realizado pela rede do World Inequality Lab, sediado na Paris School of Economics. Inclui mais de 200 pesquisadores em todos os continentes, liderados pela equipe do economista Thomas Piketty. O francês é autor de best-sellers sobre o tema, destacadamente, “O Capital no Século 21” (2013).
Porém, recalcitrantes de esquerda, sem questionamento de seus dogmas, denunciam como fosse uma “posição de direita” a conclusão de a pobreza absoluta deve ser prioritariamente combatida. Para eles, seria uma posição normativa e ideológica.
Os dogmáticos criticam quem questiona a possibilidade do fim da desigualdade. Reconhecem até esse posicionamento não ser crença pura, nem conhecimento neutro, mas acusam-no de ser uma forma específica de racionalizar escolhas políticas sob a aparência de constatação factual. Nesse ponto, ciência social e ideologia deixam de ser opostas e passam a ser momentos distintos de uma mesma construção discursiva sobre a ordem social.
Na verdade, o enunciado completo combina conhecimento empírico, teoria e valor. Quem afirma a pobreza relativa ser insuperável, dentro dos marcos do capitalismo ocidental, não critica a tributação progressiva e/ou o imposto sobre grande fortuna, para financiamento das políticas públicas de combate à miséria ou pobreza absoluta. Ele simplesmente não ilude outras pessoas com algo inalcançável dentro do Estado de Direito.
Como alterar a concentração da riqueza, em termos significativos, se o 0,001% mais rico representa 56 mil pessoas pelo mundo, mas detém três vezes mais patrimônio se comparado ao de toda a metade mais pobre adulta do planeta combinada (2,8 bilhões de pessoas)? Levando em conta os 10% mais ricos da população, estes se apropriam de 75% da riqueza global, enquanto a metade mais pobre fica com apenas 2%. Alterará isso em escala planetária? Quando?
*Fernando Nogueira da Costa é Professor Titular do IE-UNICAMP. Baixe seus livros digitais em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com.
Foto de capa: Imagem de arquivo). | AP




