Exus como Monumento: A Presença Ancestral na Cidade Contemporânea

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Por EMERSON GIUMBELLI*

Desde 2020, na cidade de Porto Alegre, existe um monumento a um exu quimbandeiro. Ele está localizado no meio de uma rótula, que fica em uma região periférica da capital gaúcha. Feita de metal e instalada sobre um pedestal de cimento recoberto por azulejos, retrata uma figura masculina de fraque e cartola. É um exu catiço.

Exu catiço é uma entidade que pode ser cultuada na Umbanda. Mas no contexto das religiões afro-gaúchas, está associada à Quimbanda. O desenvolvimento da Quimbanda, que data de pouco mais de meio século, está por sua vez relacionado com a forte e consolidada presença do Batuque, religião de origem nagô, como o Candomblé. Mais do que uma mera mistura de Batuque e Umbanda, a Quimbanda gaúcha “cruza” noções (como a de evolução de entidades que passam por várias encarnações) e preceitos (como a que envolve imolação de animais) para se dedicar ao culto de exus e pomba-giras.

A imagem monumentalizada no meio de uma rótula foi custeada com recursos reunidos por Pai Ricardo de Oxum, dirigente da Sociedade Beneficente e Cultural Oxum e Oxalá, cuja sede também fica na região norte de Porto Alegre. A instalação da estátua do Homem da Noite, como é designado o exu, foi autorizada por uma lei municipal de 2019, uma demonstração das articulações mantidas por Pai Ricardo para além do universo religioso.

O lugar onde está o monumento – não por acaso um cruzamento de avenidas – é o ponto onde se realiza, por iniciativa de Pai Ricardo, desde 2007, o “Encontro dos Quimbandeiros”. Aliás, a mesma lei que autorizou o monumento renomeou o lugar como “Rótula dos Quimbandeiros”. Em 2025, o evento combinou homenagens a sacerdotes e sacerdotisas da Quimbanda gaúcha (e mesmo de outros lugares, no sul do Brasil, Uruguai e Argentina) com a manifestação de exus e pomba-giras.

Na tarde do mesmo dia, ocorreu, pelo segundo ano consecutivo, a “Marcha dos Quimbandeiros”, outro evento liderado por Pai Ricardo. Em contraste com o ponto onde está o Homem da Noite, a Marcha é realizada em um lugar central, percorrendo avenidas que ficam perto da orla do Guaíba, que é frequentada por milhares de pessoas em seu lazer durante os finais de semana.

A existência de um monumento a Exu contribui para diversificar o espaço público de uma cidade como Porto Alegre. Como muitas outras, quando se trata de monumentos, nela predominam figuras históricas, quase sempre homens, quase sempre brancos. Embora seja uma imagem masculina e de cor indefinida, ela traz para a cena uma representação associada a um universo religioso que luta por uma maior legitimação social.

Nesse sentido, o Homem da Noite faz companhia à imagem de Oxum localizada na praia lacustre onde, todos os dezembros, ocorre a maior concentração de pessoas que homenageiam a orixá. Várias estátuas de Iemanjá se distribuem ao longo do litoral gaúcho. É também importante mencionar o marco que existe no Mercado Público em referência a Bará, a designação assumida por Exu, nesse caso o orixá, no Batuque. Ainda mais recente é o monumento a Zumbi dos Palmares, instalado não muito longe do Mercado, no mesmo espaço onde se encerrou a “Marcha dos Quimbandeiros” em 2024 e 2025.

Vale lembrar que o 20 de novembro, agora um feriado nacional no Brasil, é data que está associada ao líder quilombola (Zumbi) e que sua celebração foi proposta por um grupo (Palmares) formado na década de 1970 em Porto Alegre. No dia da inauguração do novo monumento, várias sacerdotisas do Batuque estiveram presentes e dedicaram rituais à estátua.

O Bará do Mercado Público vem ganhando ainda maior destaque nos últimos anos por conta de celebrações organizadas pela Associação Independente em Defesa das Religiões Afro-Brasileiras (ASIDRAB). Em junho 2025 a festa consistiu em atividades junto ao marco no interior do Mercado e em uma procissão seguida de um xirê.

Mas se o Homem da Noite faz companhia a marcos que homenageiam Oxum, Iemanjá e Bará, também remete a expressões que tensionam as próprias representações associadas às religiões afro-gaúchas. Essa é uma característica da Quimbanda, que tem, por um lado, raízes nesse universo religioso e, por outro, se abre para referências que são nele contestadas.

Para perceber isso, precisamos nos distanciar ainda mais do centro de Porto Alegre. No município de Gravataí, dois acontecimentos de 2024 tiveram em comum a figura de Mestre Lukas de Bará da Rua. Em junho, ele esteve à frente da inauguração de outra estátua pública de um Exu quimbandeiro. Em agosto, teve frustrada a apresentação de uma imagem de Lúcifer. Embora construída e instalada, essa imagem até hoje ocupa local desconhecido.

No primeiro caso, temos outro exemplo material da forma pela qual os exus são geralmente cultuados na Quimbanda. A viabilização do monumento seguiu vias parecidas àquelas observadas no caso do Homem da Noite: custeada por recursos privados, foi autorizada por uma lei municipal e contou com o apoio do executivo local. Pai Ricardo ajudou a dar publicidade à inauguração da obra, que ainda contou com o suporte do Conselho do Povo de Terreiro de Gravataí, entidade que reúne sacerdotes de diversas vertentes das religiões afro-gaúchas.

No segundo caso, entra em cena outra faceta de Mestre Lukas, quando se apresenta como um dos líderes da Nova Ordem de Lúcifer na Terra. Um dos objetivos do grupo seria exatamente ressignificar a figura vinculada ao satanismo, considerada como uma “manifestação simbólica de transformação, conhecimento e libertação”. Dessa vez, a prefeitura mostrou-se incomodada com a notícia da inauguração do monumento a Lucífer e acionou a Justiça para impedir a abertura pública da sede da instituição luciferiana.

Mais sucesso vem tendo Mãe Michelly da Cigana, outra figura polêmica no recente cenário afro-religioso gaúcho. Muita ativa em mídias e redes sociais, conhecida como “mãe de santo das celebridades”, suas inovações rituais causam contrariedade entre pessoas pertencentes ao mesmo universo religioso. Em 2022, viralizaram imagens de sua casa e templo, localizado no município de Alvorada, também na região metropolitana de Porto Alegre. Elas mostram a escultura de um Belzebu/Baphomet. Embora a escultura esteja instalada em um espaço privado, é facilmente visível da rua.

Em 2024, Mãe Michelly inaugurou o Santuário Nacional de Belzebu na região rural de Viamão, outro município vizinho à capital gaúcha. O primeiro espaço a ser anunciado foi um cemitério. Sem sepulturas, esse cemitério serviria como local seguro para rituais de Quimbanda. Uma visão geral do santuário encontra capelas com imagens católicas, um lago com representações dos orixás, uma pirâmide envidraçada, esculturas de entidades da umbanda e quimbanda – que incluem vários belzebus. O maior deles saúda quem passa pela estrada que dá acesso ao lugar. A visitação é pública, mediante pagamento.

Porto Alegre e esses municípios vizinhos destacam-se nas recentes estatísticas divulgadas pelo IBGE quando se trata do número de adeptos de religiões afro-brasileiras (“umbanda e candomblé”). Viamão, aliás, é o município com o maior índice, 9,3%, bem acima do 1% nacional. Essas porcentagens se mantêm altas quando se vai em direção ao sul do Estado, ao encontro de cidades como Rio Grande e Pelotas – onde outra estátua de um Exu Bará da Rua foi inaugurada recentemente.

É difícil afirmar haver uma relação direta entre as duas dimensões, a dos números de adeptos declarados e a presença de imagens públicas. Mas é necessário chamar a atenção para a proliferação dessas imagens. Elas contribuem, vale reiterar, para diversificar as referências que povoam os espaços públicos, servindo para testar os limites de nosso pluralismo religioso. Elas acompanham dinâmicas que mostram a vitalidade do universo afro-religioso, inclusive por meio de expressões que levantam polêmicas entre seus próprios praticantes.

Além de perceber a proliferação dessas imagens, cabe registrar o que vem acontecendo com elas. Quem com elas se identifica, quais eventos (religiosos e de outra natureza) mobilizam, que lideranças e grupos lhes estão associadas, que visibilidade adquirem nas mídias sociais. Não menos importante: com a força para modificar as ruas nas quais estão expostas, precisaremos acompanhar o que os seres que habitam as ruas farão com essas imagens.

Publicado originalmente no Blog Religião em Debate: https://religiaoemdebate.com.br/

Emerson Giumbelli é professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul


*Emerson Giumbelli é professor do Departamento de Antropologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Foto de capa: Reprodução / Facebook

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