Evolução do Sistema Bancário em Função da Urbanização

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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

A criação de um sistema bancário e a urbanização são processos interdependentes. Eles se reforçam mutuamente. Os bancos fornecem o capital necessário para o crescimento urbano, enquanto as cidades, com suas atividades econômicas concentradas, criam a demanda e as condições para a expansão dos serviços bancários.

Os bancos, especialmente os de desenvolvimento (como o BNDES no Brasil), financiam projetos de infraestrutura urbana (transporte, energia), saneamento, construção civil e habitação são créditos direcionados pela Caixa Econômica Federal. Os bancos públicos são essenciais para o crescimento físico das cidades.

O sistema bancário atua como um mecanismo centralizador de capital, canalizando recursos inclusive de investidores institucionais para investimentos urbanos de grande escala. De outra forma, seriam inviáveis.

Quanto ao estímulo de atividades econômicas, o crédito e outros serviços bancários facilitam a especialização econômica, a criação de negócios e empregos nas cidades. Impulsionam a produtividade e a competitividade do setor privado urbano.

No contexto do sistema capitalista, a urbanização é marcada pela “financeirização do espaço”. O capital financeiro, gerido pelos bancos, desempenha um papel central na produção e transformação do espaço urbano, influenciando inclusive a segregação socioespacial e as desigualdades regionais.

O crescimento das cidades e o aumento da população urbana demandam maior acessibilidade a serviços financeiros. Levam à expansão da rede de agências bancárias e à bancarização das populações locais.

Por exemplo, em um estudo de caso, de cuja banca julgadora participei, revelou-se o trabalho dos catadores de algodão no Ceará não ser apenas sub-remunerado, ele era parte de um sistema de dependência social e política. Ao entrar em crise, expulsou uma massa de trabalhadores para cidades. Elas não tinham estrutura para recebê-los.

A tardia urbanização cearense (apenas em 1980 o censo registra uma população urbana superior), portanto, não foi fruto de uma transição planejada, mas de uma desestruturação violenta do mundo rural. O campo perdeu sua capacidade de sustentar e fixar a população. A cidade assumiu, precariamente, o papel de absorção social.

O “coronel nordestino” refere-se a um latifundiário e chefe político. Durante a República Velha no Nordeste, exercia poder local sobre a população e a política através da posse de terras, influência econômica e violência. Esse sistema, conhecido como coronelismo, baseava-se no “voto de cabresto”, onde os coronéis coagiam ou trocavam favores para garantir votos para seus candidatos.

Quanto ao poder econômico, os grandes proprietários de terras controlavam a economia local. Mantinham a influência política, praticamente, detinham controle sobre as eleições locais, distribuíam favores e, por vezes, mantinham milícias ou jagunços para impor sua vontade.

Para controle social, eram figuras de autoridade capazes de exercerem domínio não só pela força, mas também por carisma e dependência da população local. “Voto de cabresto” era um sistema de manipulação eleitoral onde os coronéis forçavam seus subordinados a votar em seus candidatos através da violência ou da oferta de favores.

Era evidente a hierarquia de poder. O título de coronel era a patente mais alta da Guarda Nacional e era usado para oficializar o poder dos oligarcas, mesmo após a extinção da Guarda Nacional, como um sinônimo de poder político local.

Apresento uma justificativa metodológica para uma pesquisa sobre história bancária no Brasil com foco em holismo, totalidade social e emergência sistêmica. A investigação sobre a formação bancária do Brasil exige uma abordagem capaz de ir além do acúmulo de casos isolados e de trajetórias institucionais particulares.

O desenvolvimento das instituições financeiras não resulta de decisões individuais desconexas, mas de transformações estruturais no modo de organização da produção, da circulação e da reprodução social.  Assim, a pesquisa deve adotar um holismo metodológico. O leitor deverá entender o sistema bancário como de uma totalidade social em movimento pelas interações de seus componentes criados ao longo da história.

A totalidade não será um pano de fundo abstrato, mas uma configuração dinâmica de relações entre Estado, classes sociais, empresas produtivas, mercados de trabalho, regimes de propriedade da terra, padrões de urbanização e formas de pagamentos monetários. Nesse quadro, os bancos se constituem historicamente como infraestrutura institucional da monetização social da vida econômica.

Entre outras atividades, garantem pagamentos impessoais, transformam poupanças em crédito, securitizam dívidas e operam como mediadores entre riqueza financeira e poder político. Logo, o surgimento, a consolidação e a reconfiguração do sistema bancário derivam de necessidades sistêmicas emergentes — não apenas da racionalidade interna dos agentes financeiros individualizados.

Essa perspectiva contrapõe-se ao individualismo metodológico. Este privilegiaria respostas micro analíticas, por exemplo, motivações dos fundadores de bancos, competições empresariais locais, casos raros de inovação financeira etc.

Embora relevantes como evidências, tais elementos não explicam por qual razão e quando a ausência de instituições financeiras passaram a ser um problema social. Tampouco indicam como se formam condições de possibilidade para a bancarização como fenômeno de massa.

A abordagem sistêmica permite examinar o processo de emergência do sistema bancário brasileiro como resposta cumulativa a mudanças profundas como: a dissolução gradual do patriarcado rural e das relações de dominação pessoal baseadas na terra; o avanço da urbanização e da mercantilização da sobrevivência; a necessidade de meios de pagamento impessoais e escaláveis; a expansão do crédito como pilar da reprodução da vida urbana e do capital; a crescente centralização estatal na regulação da moeda e do crédito; a financeirização como modo de acumulação dominante.

Essas transformações não se apresentam como linha reta de progresso econômico, mas como trama de conflitos e desigualdades. No caso brasileiro, a transição para um capitalismo urbano-financeiro foi lenta, descontínua e marcada pela coexistência prolongada entre uma ordem agrária pessoalista e uma ordem urbana, monetizada e moderna.

Tal descompasso histórico ilumina o caráter tardio e dependente da expansão bancária nacional. Seu enraizamento no acesso à cidadania financeira das camadas populares só se torna decisivo quando a urbanização se consolida, as formas tradicionais de sobrevivência se esgotam e seus representantes políticos criaram um Partido dos Trabalhadores. Aliaram-se com outros partidos, ganharam cinco eleições presidenciais, desde 2002, governando e sofrendo ameaças de golpes de Estado.

No primeiro governo Lula (2003-2006), tive a oportunidade de ser um dos ativistas (e obter o testemunho ocular do sucesso) pelo acesso à cidadania financeira por todos os moradores das cidades, inclusive de suas periferias. Lutamos por acesso popular a bancos e crédito.

A opção metodológica, portanto, articula níveis de abstração da teoria, temporalidade e empiria em torno de uma hipótese central: o sistema bancário emerge como totalidade quando as formas sociais pré-existentes deixam de dar conta da reprodução social em escala ampliada. Nesse sentido, a pesquisa buscaria identificar o momento e o mecanismo pelo qual a bancarização se transforma em necessidade estrutural — não apenas em oportunidade de negócios.

Assim, ao unir a lógica da totalidade com a teoria dos sistemas complexos, a pesquisa não descreverá apenas instituições financeiras. Revelará como, ao se desenvolverem, os bancos reconfiguram a própria sociedade, produzindo novas dependências, novos direitos, novas vulnerabilidades e novos modos de vida.

Os potenciais objetivos específicos seriam, primeiro, mapear a passagem de relações pessoais de crédito para pagamentos bancários impessoais. Depois, correlacionar urbanização, bancarização e endividamento em séries históricas.

Com isso, demonstraria como a inclusão bancária difunde novos mecanismos de subordinação, mas modernizados e mais livres. Analisaria o papel do Estado e das telecomunicações na formação do mercado popular bancário. Permitiria analisar o banco como novo centro da dominação econômica após o colapso do coronelismo.



*Fernando Nogueira da Costa é Professor Titular do IE-UNICAMP. Baixe seus livros digitais em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com

Foto de capa: IA

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