Escola não se gerencia como empresa (parte 2)

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Por JORGE BARCELLOS*

As lógicas do mercado afetam as práticas educativas e o gerenciamento dentro da escola está se tornando uma realidade.

Laval aposta na capacidade de resistência: não é possível colocar em destaque a função econômica da escola sem relacionar as mutações sociais, políticas e culturais. As determinações econômicas não podem deixar de levar em consideração a evolução interna da instituição escolar; as restrições ideológicas enfrentam as experiências dos indivíduos, alunos e professores no mercado em construção. A escola se envolve com o novo capitalismo, sim; as lógicas do mercado afetam as práticas educativas e o gerenciamento dentro da escola está se tornando uma realidade, colocando como objetivo de a ordem educativa estar a serviço da competitividade econômica. É contra essa mutação que se insurge o CPERGS, professores e comunidade escolar. Pior, a esfera educativa está se estruturando como um mercado, sendo gerida como se fosse uma empresa qualquer. Acusa-se os professores que não se adequam à nova ordem de conservadores, mas é o contrário: a nova escola neoliberal é que é um “liquidificador” da escola republicana. Há ações que só esta escola é capaz de fazer para manter a vocação emancipadora da educação. É preciso recusar a chantagem neoliberal, recusar a negação da educação pública, defender a apropriação por todos de todas as formas simbólicas de conhecimento necessário ao julgamento.

Laval conclui que lutar contra o avanço da escola neoliberal é lutar contra a apropriação das formas simbólicas de conhecimento pelo mercado e pelas empresas, recusar o objetivo de construir trabalhadores dóceis para as fábricas para satisfação do interesse privado. A adoção do princípio de que a educação apenas serve para dar uma “igualdade de chances” mais instaura a lógica mercantil e consolida desigualdades sociais. A escola emancipadora, defende Laval, não está extinta: ela existe como ideal a ser defendido pela comunidade escolar, que não pode ser traído em nome da transformação da escola em antecâmara das empresas. A universalização do acesso à cultura deve ser superior ao modelo neoliberal proposto.

 Novo capitalismo e educação

O capítulo primeiro de A escola não é uma empresa, intitulado “A produção do capital humano a serviço da empresa”, inicia novamente com uma passagem de Gilles Deleuze, na qual se lê: “pode-se prever que a educação será, cada vez menos, um meio fechado, que se distingue do meio profissional como outro meio fechado, mas que todos os dois desaparecerão, em proveito de uma terrível formação permanente, de um controle contínuo exercido sobre o operário-aluno, ou sobre os dirigentes da universidade”. A citação, datada de 1990, mostrou-se atual com a reforma universitária proposta pelo governo Jair Bolsonaro, que liquefez os limites entre a universidade e o mercado, e no processo de achatamento progressivo dos servidores da educação pelo governo Eduardo Leite, que transforma alunos em aprendizes de empreendedores e professores em “mendigos”, na definição do poeta Fabricio Carpinejar e nas propostas de enquadramento da educação que sua reforma neoliberal propõe em escala de fábrica às escolas.

Em todos estes processos em andamento, Laval é certeiro em diagnosticar a submissão da razão da escola à razão econômica. As políticas atuais, na expressão de Laval, “dependem de um ‘economicismo’ aparentemente simplista, cujo axioma principal é que as instituições em geral, e as escolas, em particular, só têm sentido dentro do serviço que elas devem prestar às empresas e à economia. O “homem flexível” e o “trabalhador autônomo” constituem, assim, as referências do novo ideal pedagógico” (p. 03).

Laval também é preciso na definição do princípio que está por detrás desta redefinição do papel da escola: é o princípio utilitarista. Escola e economia devem se articular devido à concorrência do espaço econômico, que dá um papel determinante à qualificação e ao conhecimento na produção de bens e serviços. O que é oculto é que o tipo de qualificação e conhecimento que essa exigência econômica define e quais papéis e expectativas que dá aos atores do processo educativo, quer dizer, o que o enquadramento neoliberal da educação esconde é que tipo de conhecimento e que tipo de homem prevê como objetivo para a educação. Faz isso porque esse princípio utilitarista que adota faz com que a competitividade seja o axioma dominante dos sistemas educativos neoliberais.

Estes princípios retornam quando analisamos os exemplos de ações do governo Eduardo Leite. Quando o governo decreta a realização de premiação por desempenho, ele está colocando o sistema escolar a serviço da lógica do capital. Ele é utilitarista porque está ocultando a opção feita pela natureza econômica e não pela formação integral do cidadão crítico, pois está de olho no horizonte das escolas para a formação de trabalhadores dóceis para ocupação do mercado.

Dos exemplos francês e americano citados por Laval, aquele que afeta a vida escolar é o que mais chama a atenção. Laval exemplifica com as características indicadas por James W. Guthrie: “A inteligência, quando é valorizada pela educação, em outros termos, o ‘capital humano’, está em vias de se tornar, rapidamente, um recurso econômico primordial e pode ser que este ‘imperativo’ dê, pouco a pouco, nascimento a um modelo educativo internacional”. Laval usa a descrição destes sistemas estrangeiros, mas agora que tal modelo chegou ao Brasil, os governos neoliberais buscam atender diretamente às expectativas dos países membros da OCDE, de que os programas de formação brasileiros participem do crescimento econômico, já que o objetivo dos meios econômicos é justamente o controle da produção de tais profissionais, fornecendo às empresas uma mão de obra fortemente promissora. Por essa função, assinala Laval: “A educação é, daqui em diante, compreendida como fator cujas condições de produção devem ser plenamente submetidas à lógica econômica. Desse modo, é considerada como uma atividade que tem um custo e um rendimento e cujo produto é assimilável a uma mercadoria” (p. 4).

A reorientação da política educacional é revelada no incentivo à adoção da lógica da iniciativa privada na organização do ensino escolar, que impõe perdas, sendo a primeira, a progressiva perda da autonomia da escola, “acompanhada da empresa erigida em ideal normativo” (p. 5). A cultura de empresa confunde-se com a cultura escolar e, nesses termos, atende ao que diz o Livro Branco da Comissão da Comunidade Europeia: “Há convergência entre os estados membros sobre a necessidade de uma maior implicação do setor privado nos sistemas de educação e/ou formação profissional e na formulação das políticas de educação e de formação, para dar conta das necessidades do mercado e das circunstâncias locais, sob forma, por exemplo, de se encorajar a colaboração das empresas com o sistema de educação e formação e a integração, pelas empresas, da formação contínua nos seus planos estratégicos.” (idem).

 Os momentos da escola

Segundo Laval, é preciso compreender esse movimento no interior da história do processo de escolarização, que nasce como um sistema de instrução separado da família e dos meios de trabalho, como uma grande conquista do ocidente. Essa história corresponde à criação de diferentes ordens da sociedade, “processo de autonomização” que inclui o nascimento da política, da religião, da economia e onde explodem e desenvolvem-se esferas sociais de forma racional. Quer dizer, a educação não nasce ligada à formação de mão de obra, mas à construção de burocracias religiosas e políticas, que necessitavam de atores com cultura escrita, preponderando a ideia de finalidades culturais e políticas da escola. A educação torna-se assim um dos fundamentos da identidade nacional e da cultura republicana, e o Estado se torna o educador da nação em luta contra a igreja. Mas a ligação da educação com o universo do trabalho não desaparece com a escola republicana; ela ficou adormecida, havendo um lugar destinado nos modos pedagógicos do sistema escolar para a valorização do trabalho e orientação profissional até a época contemporânea, o que é confirmado, inclusive, pelos debates entre os deputados e senadores por ocasião da elaboração da LDB. Laval assinala na Europa, fato que também é confirmado no Brasil, que o ensino secundário clássico se fez crescer com a preocupação com a formação geral. Por um lado, com a formação profissional de mão de obra para o comércio e a indústria, de outro. Agora, com as sucessivas reformas neoliberais, que inclusive reduziram a carga horária de disciplinas humanísticas, o projeto de educação voltado para o mercado dá mais um passo. A equação fica desequilibrada e isso traz prejuízos. Diz Laval que, “no entanto, apesar dos avanços nessa via profissional, durante o período entre as duas guerras mundiais, a lógica dominante da escola permaneceu, durante muito tempo, aquela que Bernard Charlot qualificou como “político-cultural” (p. 6).

Inspirado em Charlot, Laval distingue 3 períodos históricos para a instalação do sistema educativo: “um período no qual a principal função da escola era a integração moral, linguística e política da nação; depois, um período no qual o imperativo industrial e nacional é que ditou sua finalidade à instituição; por fim, a fase atual, na qual a sociedade de mercado determina mais diretamente as mudanças da escola” (p. 7). Mas não há linearidade nisso, afirma Laval, já que a concepção utilitarista de educação vem criticando o sistema humanista desde o século XVI e também recebendo críticas. É o avanço da sociedade científica, técnica e produtiva que questiona as formas e conteúdos escolares, transformando o saber em uma “ferramenta de resolver problemas”, que resulta na expressão “CONHECIMENTO É PODER”. Por quê? Porque o saber é visto como um estoque que se acumula, capital para aumentar a capacidade humana de domínio da natureza, base do liberalismo. A crítica utilitarista se desenvolve ao longo do tempo em relação aos conteúdos pedagógicos e à cultura humanística para denunciar o distanciamento da prática. “O povo tem necessidade de certos conhecimentos ligados à prática, para seu bem-estar. Os outros, lhe sendo inúteis, são desvalorizados” (p. 8).

Por isso, não é uma transformação brusca da escola, diz Laval. Desde Spencer, passando por Rousseau, muitos autores encaminharam o acordo entre a escola republicana e o espírito do capitalismo. É a ênfase numa educação voltada para os negócios, para a vida plena que as profissões importantes realizam, reafirmando aquilo que Adam Smith destacara nas relações entre mercado e sistema de ensino: “se quer que as escolas ensinem coisas úteis, é necessário que elas obedeçam antes a uma demanda do que ao conformismo da corporação ou ao capricho dos superiores. O mercado é o melhor estimulante do zelo dos mestres, posto que ele permite que seus interesses e seus deveres se confundam”, destaca Laval do discurso de Adam Smith em seus Estudos sobre a natureza e causas das riquezas das nações.

Uma escola a serviço da economia.

Laval afirma que os conceitos utilitaristas irão se impor em várias etapas. Depois da Segunda Guerra Mundial, o crescimento industrial exige efetivos escolares qualificados em todos os níveis; durante o Welfare State (1946-1973), dá-se o desenvolvimento extensivo do sistema escolar para massas; os anos 60 e 70 aprofundam a ideia de fornecer para a indústria, trabalhadores e futuros consumidores capazes de utilizar os produtos complexos da indústria.

Ao mesmo tempo em que a indústria amplia sua demanda sobre recursos humanos qualificados, o Estado adota planos de gestão e regulação dessa industrialização da formação que é a escola. Ele introduz aquilo que Laval chama de “investimentos simbólicos”, isto é, formas institucionais de estruturação e classificação salarial com base no diploma, nos níveis de saída do sistema de ensino e no tipo de orientação dada aos alunos. É o Estado o responsável pelo ajuste entre a mão de obra e as necessidades da economia, determinando um sistema educativo ótimo para as empresas. Laval afirma que a obra do escritor Lê Thanh Khoi, A Indústria do Ensino, resume a argumentação dos anos 70. Para Laval, o autor constata que o ensino foi transformado em uma verdadeira indústria de massa e que só pode ser descrito com base em categorias econômicas: “Essa interpretação do ensino distingue três funções da educação moderna: a formação de uma mão de obra qualificada, a mudança cultural que prevalece sobre a herança e a formação de cidadãos responsáveis. Essa mutação marca para o autor o fim do humanismo clássico, fundamentado no desinteresse e na livre atividade humana.”

Quer dizer, a partir de agora, a escola não é mais a única fonte de saber, e nem lugar de uma formação humanística geral. Sua função, doravante, é aprender a ensinar, a fim de que a criança possa ordenar a informação, selecionar, na cultura comercializada de massa, prelúdio da educação permanente, formação de todos, todos os dias, a adquirir a capacidade de reciclagem absoluta em benefício do mercado. Fim da função da transmissão da herança dos antepassados para criar conhecimentos novos, fim da formação do cidadão humanista crítico, transformado numa situação de quase-empresa visando à performance máxima do sistema. Laval lembra que Khoi destaca a criação do conceito de “rendimento de ensino” como variável que adapta o ensino à modernidade, evita desperdícios, perdas de tempo, visão utilitarista do discurso modernizador que redefine o humanismo tradicional para introduzir a ideia de formação de uma máquina produtiva, em que só vale o que pode ser aplicado na produção, na economia. O efeito é a acomodação da missão cultural e política da escola, abandono das antigas humanidades e da visão desinteressada de cultura. Isso também não é o fim da presença da arte, da cultura e do pensamento crítico na escola? Exatamente por essa razão utilitarista, tais disciplinas têm reduzido seu espaço no currículo escolar dia após dia.

Em direção à escola neoliberal

As reformas impostas às escolas são guiadas pela competição econômica entre sistemas sociais e educativos, pela pressão das elites para a adaptação da escola às condições econômicas gerais. “A padronização dos objetivos e dos controles, a descentralização, a mutação do ‘gerenciamento educativo’, a formação dos docentes são, essencialmente, reformas ‘centradas na produtividade’”, diz Laval. O ponto-chave do argumento liberal que revela seu caráter explorador é que essa elevação da qualidade da força de trabalho deve ser feita sem elevar o nível dos impostos e, se possível, reduzindo a despesa pública de educação. A ideia de gerenciar as escolas como empresas, o apelo à cultura voltada para competências de empregabilidade, o encorajamento da lógica de mercado na escola pelas atividades que envolvem competição entre seus membros, famílias e alunos, faz parte desta dinâmica ao mesmo tempo individualista e mercantil que é proposta para a escola. “O estado deixa, mais abertamente, que as regras do mercado atuem, quer reduzir seu perímetro de ação, se inspira na empresa privada. No plano da administração escolar, a tendência é para a descentralização, para o gerenciamento moderno e para a “gestão por demanda” (p.12-13).

A escola é vista como uma empresa entre outras, daí sua obrigação de atender às restrições de mercado, adotando o sistema estatístico rigoroso para aferir a qualidade da educação, atender às pressões em nome da eficácia, introdução de método de gestão da lógica empresarial na escola, que na verdade corresponde à sua “desregulamentação”: “não se trata mais de corrigir as imperfeições do mercado pela intervenção do estado, mas de suprir as fraquezas do Estado pela promoção do mercado, suposto autorregulador, quer dizer, estabelecer a superioridade ética da agregação das preferências individuais pelos processos mercantis sobre a deliberação como forma de elaboração das escolhas sociais” (p. 14).

A reforma neoliberal da educação introduz a ideia de apelar à responsabilidade individual da escolha do tipo de educação que se deseja. O mercado se impõe como referência ideológica e, o pior, com o silêncio da esquerda, tornando-se o equivalente da transformação dos serviços públicos em geral em quase-empresas, afirma Laval. “A aposta crucial é o enfraquecimento de tudo o que faz contrapeso ao poder do capital e de tudo que, institucionalmente, juridicamente, culturalmente, limita sua expansão social. Todas as instituições, muito além da economia, foram afetadas, incluindo a instituição da subjetividade humana: o neoliberalismo visa à eliminação de toda “rigidez”, inclusive psíquica, em nome da adaptação às situações as mais variadas que o indivíduo encontra, tanto no seu trabalho quanto na sua existência. A economia foi colocada, mais do que nunca, no centro da vida individual e coletiva, sendo os únicos valores sociais legítimos os da eficácia produtiva, da mobilidade individual, mental e afetiva e do sucesso pessoal”, finaliza Laval.

A escola flexível

A escola cedeu ao imperativo de formar o trabalhador flexível, diz Laval. Esse referencial substituiu o ideal de formação do cidadão autônomo, e pensar isso significa que o objetivo do capital é formar um trabalhador assalariado capaz de obediência passiva a prescrições definidas, capaz de aprender a usar novas tecnologias, ter a visão geral, não da sociedade, mas do sistema de produção ou de comercialização que deve gerir, ser capaz de usar da liberdade, iniciativa e autonomia em prol da empresa, típicos da visão funcionalista. “Desejaria, em suma, que, em vez de seguir cegamente as ordens vindas de cima, ele fosse capaz de discernimento e espírito analítico para prescrever a si mesmo uma conduta eficaz, como se fosse ditada pelas exigências só de seu próprio interior”, diz Laval, numa definição que se aproxima das leituras de Byung-Chul Han. E finaliza: “A autonomia que se espera do assalariado, que consiste em que ele dê ordens a si próprio, que ele se ‘autodiscipline’, não acontece sem um aumento do saber” (p. 15).

É a definição de trabalhador da Era da Informação de que fala Manuel Castells em sua obra célebre, em que seu valor está na capacidade de aprendizagem acumulada e replicação do aprendizado em diversas situações, ou o que é chamado de “empregabilidade individual”. Ao jovem não são pedidos conteúdos, mas uma capacidade de acomodação e flexibilidade de adaptação, pois, num universo de inovação tecnológica, quanto menos a empresa tiver de trocar de empregados, melhor. Não se trata apenas de empregados qualificados, mas também de se “estar apto a se formar”, leia-se, aprender no trabalho. Quando a escola cede a este imperativo de formar não cidadãos e o substitui por assalariados adaptáveis, a escola fica a reboque do mercado, ela assume o princípio de que deve ser uma instituição flexível em permanente inovação: não é exatamente esta a imagem de que algumas escolas querem passar para se vender no mercado?

É preciso lembrar que esta ideia chega com força. Instituições de peso, com a Comissão das Comunidades Europeias a defendem, o que é um crime contra a escola como conhecemos, já que defende, com todas as letras, “que toda a educação recebida tende a levar melhor em conta o ‘destinatário do serviço’, a saber, a empresa” (p. 17). A ideia de que a escola prepara o indivíduo para situações de incerteza constante, de posições instáveis, só é a outra face da precarização do trabalho. “A nova pedagogia, ‘não diretiva’, é ‘estruturada com leveza’, a utilização de novas tecnologias, um mais extenso ‘menu’ de opções oferecido aos alunos e aos estudantes, o hábito adquirido de um ‘controle contínuo’, são pensados como introdução na ‘gestão de situações de incerteza’ nas quais o jovem trabalhador será mergulhado ao sair de seus estudos” (idem). Isso é notável, pois levou os educadores a aceitarem como normais proposições pedagógicas nas quais o ensino deve ser formulado em competências de adaptação ao trabalho, trabalho em equipe, comunicação, capacidade de resolver problemas, etc., “aprender a aprender”, que são fundamentais não para a vida cidadã, mas para a vida profissional.

Degradação do vínculo entre diploma e emprego

A transformação importante assinalada por Laval durante o capitalismo fordista foi a instituição da escola como fator de proteção social, fundamentada no reconhecimento de direitos e posição que ela outorga aos assalariados, sua capacidade de regular o consumo, estabelecer uma evolução salarial. O assalariado fortaleceu a escola, pois via nela o instrumento de progressão social. “A escola, parte atuante do ‘compromisso fordista’ e da ‘sociedade salarial’, entregou, assim, títulos a pessoas dotadas de direitos reconhecidos por convenções coletivas e contribuiu para o estabelecimento de posições que eram pontos de apoio nos quais poderiam se fundamentar para vender sua força de trabalho” (p. 18). Isto significa que, para Laval, o diploma era o fundamento de uma hierarquia para as classes sociais, para a classe assalariada, principalmente para acesso à função pública, tinha força simbólica para tornar o assalariado relativamente independente. O problema surge com a ascensão do período neoliberal do capitalismo, que “tende a mudar a ligação, que ele deixa mais frouxa e mais leve, entre o diploma e o valor pessoal reconhecido socialmente. Esse título escolar e universitário, em uma época em que se declara que o saber é um produto “perecível”, e que as competências são, elas mesmas, objeto de uma “destruição criadora”, permanente, tende a perder sua força simbólica” (idem).

Ora, os imperativos de adaptabilidade permanente e reatividade imediata (resiliência) questionam as fontes de rigidez clássica, entre elas o diploma. A partir de agora, a identidade ao trabalho no contexto de desemprego de massa, de instabilidade dos postos, vítima daquilo que dava segurança ao trabalhador, que se estende também aos ofícios, seus conteúdos, à natureza das tarefas, às qualificações que possuem. Isso pode ser visto nas inúmeras “novas profissões” que surgem no contexto da instabilidade do trabalho (design de games, mentoring, etc.). Laval aponta a consequência: “o valor social dos indivíduos corre o risco de depender cada vez mais estreitamente das competências pessoais que o mercado de trabalho sancionará de modo menos institucional, menos ‘formal’ possível.” O trabalho se aproxima, então, cada vez mais, de uma mercadoria como as outras, perdendo pouco a pouco sua dimensão coletiva e suas formas jurídicas” (p. 19).

A não institucionalização da relação entre o diploma e a qualificação para o ofício interessa ao mercado para enfraquecer posições dos assalariados. A escola e a universidade não oferecem, no contexto neoliberal, segurança, o que significa que os indivíduos são culpados pela sua sorte, num contexto em que é o mercado que torna vulnerável a posse de títulos escolares. Elas são relegadas a um lugar ambíguo, são instituições tradicionais que passam a oferecer diplomas de validade temporária, precarizando-se agora a vida escolar e profissional.

A conclusão é que o neoliberalismo produz uma contradição no significado da aquisição do saber pelas novas gerações. O homem quer uma situação estável, participa do processo socializador na escola para isso, mas o mercado e a promoção que lhe são prometidas estão longe disso. Ao contrário, não existe mais a profissão e o trabalho estável para o qual a escola preparava; a profissionalização nada mais é do que a realização de uma “função”. Assim, a autonomia que o sistema capitalista espera que a escola forme é, justamente, a capacidade de se adaptar às mobilidades sociais e não torná-lo consciente para combater a desigualdade social, mas como fazer isso num contexto em que o próprio trabalho está sendo objeto de corrosão?

Cada estudante, cada trabalhador, vive o dilema em sua subjetividade, a perda do futuro que era garantido pela escola. A crise financeira tem como efeito principal na escola a perda de referências para as novas gerações, o que leva à crise dos laços sociais, e a escola, nesse horizonte de desigualdades e insegurança, não vê sentido, “não se vê como escola”: suas competências não são as mesmas da sociedade de mercado, ao contrário, seus objetivos querem é contrariar os efeitos destrutivos do neoliberalismo. Quando a sociedade tiver clareza dos objetivos da educação neoliberal, ela terá mais condições de lutar contra ela.

Bibliografia

LAVAL, Christian. A escola não é uma empresa. O neoliberalismo em ataque ao ensino público. Londrina. Editora Planta, 2004.

Leia também Escola não se Gerencia como Empresa.

Publicado originalmente Sler.

*Jorge Barcellos é graduado em História (IFCH/UFRGS) com Mestrado e Doutorado em Educação (PPGEDU/UFRGS). Entre 1997 e 2022 desenvolveu o projeto Educação para Cidadania da Câmara Municipal. É autor de 21 livros disponibilizados gratuitamente em seu site jorgebarcellos.pro.br. Servidor público aposentado, presta serviços de consultoria editorial e ação educativa para escolas e instituições. É casado com a socióloga Denise Barcellos e tem um filho, o advogado Eduardo Machado. http://lattes.cnpq.br/5729306431041524

Foto de capa: IA

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