Escola não se gerencia como empresa

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Por JORGE BARCELLOS*

A modernização da educação não é neutra e nem virtuosa, ela oculta a internalização e normalização da lógica neoliberal no sistema educacional.

O governador Eduardo Leite lançou na quarta-feira (13) o Programa de Reconhecimento da Educação Gaúcha no Teatro da Feevale.   A chamada “modernização” da educação do seu governo caminha agora a passos largos e faz parte de um projeto de implementação de um modelo gerencial na educação.  Esse modelo já foi denunciado por Rafaela Fagundes de Menezes no âmbito do Judiciário com seu livro Gestão e Trabalho no Judiciário: desafios da nova lógica gerencial (Editora Thoth) a partir de sua pesquisa e vivência institucional como servidora pública e eu mesmo, em O êxtase neoliberal (Editora Clube dos Autores), já o critiquei nos governos passados.

Como a proposta de modernização do judiciário, a modernização da educação usa termos como produtividade, metas, eficiência, inovação para associar a educação à produção de resultados. Mas essa mudança não é neutra e nem virtuosa, ela oculta a internalização e normalização da lógica neoliberal no sistema educacional e, por isso, não poderia ser mais nefasta. Aqui, o objetivo deste texto é levantar a crítica da esquerda ao projeto neoliberal de educação, reconstruindo o argumento de Christian Laval em seu A escola não é uma empresa (Planta, 2007), que inspira o título deste ensaio, que será, pela extensão, dividido em duas partes.

A Educação é historicamente comprometida com o direito ao seu acesso e democratização de sua gestão, mas agora, quando mudanças gerenciais propostas no setor privado influenciam as políticas educacionais de estado, estamos num universo muito mais diverso, onde performance, controle e gerencialismo valem mais do que o compromisso com o aprendizado real de todos. O que é o gerencialismo aplicado à educação? É o braço operacional do estado neoliberal, que visa normalizar no interior do sistema educacional os discursos da lógica da concorrência, eficiência e produtividade, o que faz com que professores e alunos paguem um alto preço para realizá-los: adoecimento, esvaziamento do sentido da atividade, fim da autonomia do professor, absorção da rotina em metas excessivas, com a individualização de alunos e professores.

O CPERGS já manifestou sua posição contra o projeto. “A educação e a categoria são uma coisa só: não é admissível remuneração diferenciada, como se sucesso ou insucesso fossem resultado apenas de qualidades e ações individuais. Essa lógica não apenas ignora as condições reais de trabalho, como também tenta dividir a categoria. Meritocracia é competição em vez de cooperação; é a negação do reconhecimento da classe; é individualizar aquilo que se conquista coletiva e socialmente.” (disponível aqui).

O programa, por isso, reconfigura o professor como servidor público. O compromisso com a educação e a formação do cidadão crítico cede espaço à lógica do cumprimento de metas quantitativas que pouco dizem sobre a qualidade da educação, e a avaliação por números reduz a natureza das especificidades de cada aluno e a transformação social que a educação visa promover. Fim do professor, substituído pelo gestor, que instiga e incentiva a produtividade escolar; criação de um aluno trabalhador submisso às novas regras da exploração capitalista, à precarização e ao empreendedorismo de si mesmo. Em vez de escuta do aluno, a imposição de metas automatiza e forma uma subjetividade submissa ao neoliberalismo. Em vez de reflexão coletiva dos professores e alunos sobre situações de ensino, o “dashboard” de desempenho. Não, produtividade não é o único fator a se mensurar em educação, e já mostrei em meu livro “Os tribunais de contas e a educação municipal” (Clube dos Autores, 2020), o quanto até o próprio Tribunal de Contas se equivocou ao adotar tais critérios para a avaliação da educação municipal.

Por isso, defendo que técnicas de gestão devem ser usadas com muita parcimônia. A gestão só pode ser usada em espaços restritos, pois implica uma racionalidade totalmente diferente da racionalidade educativa. O projeto atual de Eduardo Leite impõe uma racionalidade que não admite contestação e deslegitima outras formas de organizar e pensar a educação pública. Se o gerencialismo assumir a prerrogativa no campo educacional, trará para a escola os mesmos problemas que já são visíveis em outras formas de organização neoliberal do trabalho: precarização simbólica dos professores e alunos disfarçada de profissionalização e inovação. Precisamos cuidar da escola como valor democrático e da educação como serviço público e bem coletivo, que só existe no equilíbrio da eficiência com o valor público do trabalho coletivo, autônomo e educativo. Por isso, não apenas a pergunta sobre o significado do método gerencialista em educação importa, mas também quais os princípios de base que fazem com que a proposta neoliberal gerencialista em educação é incapaz de atingir os fins a que se propõe. Mas para isso, é necessário entender a crítica às abordagens neoliberais de gestão em educação.

Christian Laval e a crítica da educação neoliberal

Há inúmeras críticas ao modelo neoliberal de gestão. Vincent de Gaulejac, em Gestão como doença social (Ideias e Letras, 2007), é de longe a mais aguda crítica ao gerencialismo como ideologia. Ele a define como a ideologia que legitima a guerra econômica, a obsessão pelo rendimento e a incitação ilimitada no investimento de si que instila nas mentes uma representação do mundo e da pessoa humana: o único caminho de realização é a “luta pelos lugares”, corrida de produtividade que transborda o campo econômico e coloniza a sociedade. Tudo é gerenciado nesse mundo de alto desempenho, o que nada mais faz do que colocar a escola sob pressão e num clima de competição. A escola é assim somente um novo campo de batalha.

Mas Gaulejac não explora detidamente o campo da gestão no campo educacional como faz Christian Laval em seu A Escola não é uma empresa: o neoliberalismo em ataque ao ensino público (Planta, 2004). Ele é um dos autores que descrevem os processos embutidos nas propostas de educação neoliberal e, por isso, possui um lugar especial no pensamento crítico de educação na atualidade. Nascido em 1953, é um pesquisador francês que trabalha os campos da história da filosofia e da sociologia na Universidade Paris Nanterre, que se centram em três grandes temas: a história do utilitarismo, a história da sociologia clássica e a evolução dos sistemas de ensino. Nesta obra, Laval aponta as bases do ataque protagonizado pela perspectiva neoliberal em educação.

A “Escola não é uma empresa”, publicado originalmente em 2004, seguiu-se a obra A Nova Escola Capitalista, escrita em parceria com P. Clément, G. Dreux e F. Vergne, publicada em 2011. Para Laval, a educação é um campo importante para demonstrar teses de maior peso críticas ao capitalismo que o autor veio a desenvolver em obras como Comum (Boitempo, 2017) e A nova razão do Mundo (Boitempo, 2016)que desenvolveu em parceria com Pierre Dardot, onde critica o neoliberalismo ao mesmo tempo que fundamenta princípios para uma nova ordem democrática. Em comum, aponta que os serviços públicos, como a educação, são o lugar que articula práticas contra o capitalismo quando em seu interior possibilita a construção de novas formas democráticas de convívio e existência. Na linha de Marx, quaisquer reformas educativas, se não forem concebidas pelos atores envolvidos no processo, estarão a serviço da dominação burguesa da sociedade.

Christian Laval é integrante do Grupo de Estudo e Observação da Democracia de Paris X Nanterre/CNRS e do Centro Bentham. Investigador do Instituto de Estudos e Pesquisas da Federação Sindical Unida, Laval é especialista na filosofia utilitarista de Jeremy Bentham e vem publicando ao longo de sua trajetória artigos sobre temas sociológicos. Entre suas obras principais, situam-se “Ambição Sociológica e Homem Sociológico”, obras em que analisa, critica e reposiciona a ideologia neoliberal como aquela que “se afirma hoje em sua pretensão de ser a única verdade social, ao eleger-se como única realidade possível”.

Tanto em “A Escola não é uma empresa”, de 2004, quanto em “Nova Escola Capitalista”, de 2011, Laval estuda as transformações contemporâneas do sistema educativo sob os efeitos do neoliberalismo e do New Public Management, criticando exatamente sua capacidade em lidar com a complexidade do fenômeno educativo. Seu foco é descrever a concorrência que é introduzida nos estabelecimentos educativos e no ritmo de vida dos alunos e sua principal consequência, o aumento das desigualdades sociais na escola, a segregação social e étnica entre estabelecimentos escolares, bem como a redução da autonomia dos professores. Esses aspectos são fundamentais para a contextualização do projeto de reforma neoliberal da educação de Eduardo Leite.

Crise de legitimidade da escola pública?

O ponto de partida de Laval é o mesmo que serve de porto de partida para o governador implementar seu plano: a reforma neoliberal parte da suposta crise da legitimidade da escola. Mas de que crise se trata? Logo na introdução, Laval afirma que a crise crônica da escola é uma crise de legitimidade e várias abordagens a descrevem, desde as críticas sociológicas que mostram a sua face escondida, de submissão dos espíritos à ordem estabelecida, à crítica liberal, pela falta de eficácia frente ao desemprego e à necessidade de inovação. De que crise de legitimidade Laval fala? Daquela que crê na escola como lugar de emancipação pelo conhecimento, que, segundo o autor, está se transformando em ideia obsoleta. De fato, a desigualdade continua afetando de muitas formas o funcionamento da escola, principalmente pelo questionamento das relações de transmissão do saber entre as gerações: com a extinção progressiva da reprodução de ofícios, da redução do peso da família na formação da criança, substituída pela indústria da mídia, emerge a agenda da reforma neoliberal da educação como solução. Nesse contexto, se a educação está em crise, ela precisa ser reformada, segundo o discurso neoliberal.

O problema é que Laval critica a proposta de reforma da educação neoliberal porque ela esconde o elemento imposto pela preocupação gestionária, a do culto da inovação por si mesmo sem proposta política, que oculta aquilo que o autor quer criticar, a ideologia fatalista que concebe o destino neoliberal como unitário, visão de base da ideologia neoliberal da escola. As tentativas de reforma da educação na vertente neoliberal que o autor critica usam de figuras e imagens que vão da criança-rei à empresa divinizada, do gerenciamento educativo ao pedagogo não diretivo, do avaliador científico à família consumidora, que facilitam com que a lógica gerencial, consumista e o individualismo afetem a educação. “É possível perceber por que e como a instituição escolar se adapta sempre mais ao conceito de escola neoliberal” (p. 11). Para Laval, a única proposta possível de reforma educacional é aquela que fortalece a formação de cidadãos críticos, jamais a que forma consumidores ou trabalhadores submissos.

A escola neoliberal como valor econômico 

O primeiro argumento crítico apresentado por Laval na obra “A educação não é uma empresa” é o de que, na visão neoliberal, a educação é definida como bem privado. Nela, a educação é sempre um valor econômico: “não é a sociedade que garante a todos os seus membros um direito à cultura, são os indivíduos que devem capitalizar recursos privados cujo rendimento futuro será garantido pela sociedade” (p.XII). É, salienta o autor, uma definição ao mesmo tempo utilitarista e liberal, isto é, a escola é vista como um instrumento de bem-estar econômico e o conhecimento, ferramenta de interesse individual. Esse tipo de concepção é que vai possibilitar a emergência da ideia de que é preciso desempenho, pois a escola só existe para fornecer capital humano para as empresas. Essa definição também implica na ideia de reforço da ideologia liberal, já que o conhecimento é um recurso privado para o indivíduo alcançar melhores posições nas empresas. “Deduz-se facilmente que a relação educativa deve ser regida por uma relação de tipo mercantil ou deve ao menos imitar o modelo de mercado”, diz Laval.

Na educação neoliberal, ao contrário de uma instituição voltada para a autonomia plena do indivíduo, a escola é o trunfo do capital para fazer valer a acumulação capitalista, já que esta repousa na capacidade de inovação e formação de mão de obra. É claro que este encargo necessário à expansão da lógica da acumulação faz parte das coisas que o capital minimiza com a transferência de encargos para o Estado e para as famílias. “A despesa educativa deve ser ‘rentável’ para as empresas utilizadoras do ‘capital humano’” (p. XII). Transformada em fator de atratividade do capital, o desempenho escolar é um indicador de competitividade de um sistema econômico, e nesse sentido, tornou-se equivalente a “estabilidade política”, “liberdade de circulação financeira”, “sistema fiscal favorável”, “fraqueza do direito social e dos sindicatos”, etc.

As reformas liberais da educação valorizam uma forma particular de saber contrária aos interesses dos educadores. Ela valoriza o saber não como elemento intrínseco de formação do cidadão, mas como elemento da atividade econômica; elas propõem padrões de organização (descentralizada, gerencial, conteudismo, profissionalização de professores) que estabelecem a escola como centro competitivo por excelência: perde-se o valor social, cultural e político da escola, substituídos pelos valores de competitividade da economia globalizada.

A justificativa desta proposta é o conceito de legitimidade, diz Laval, garantido pela produção de relatórios de experts guardiães da ortodoxia, numa palavra, de uma nova autoridade que invade a instituição escolar que parte do modelo proposto por organizações internacionais que desde os anos 70 pregam para os mais diversos governos reformas neoliberais e a participação da educação de cada país na nova ordem educativa até chegar ao processo local. “O processo é muito difuso e tem múltiplas alternâncias nacionais e internacionais, cujas relações não se veem à primeira vista; que ele segue vias muitas vezes técnicas e que ele se cobre geralmente das melhores intenções éticas” (p. XIV).   Laval cita as organizações como OMC, OCDE, Banco Mundial e FMI, que transformaram “constatações”, “avaliações”, “comparações” em espaço de discurso global com extensão planetária na reformulação das políticas econômicas, e destas às educacionais, revelando seu poderio financeiro na centralização política e normalização simbólica também da educação, fazendo com que “um modelo homogêneo podia-se tornar o horizonte comum dos sistemas educativos nacionais e que seu poder de imposição viria justamente de seu caráter modalizado” (idem). É exatamente neste contexto de influência que se alinha o discurso do governador Eduardo Leite e de sua Secretária Estadual de Educação, Raquel Teixeira, na reforma que propõem. Mas não somente eles.

Laval salienta que o modelo de escola neoliberal permanece como uma tendência e não como uma realidade acabada, o que é fundamental para resgatar práticas e políticas de resistência frente às intenções de autoridades governamentais por educadores que continuam denunciando e recusando seu caráter ideológico. Isso deve-se ao fato da expansão dos efeitos a serem realizados em todos os níveis, da educação básica à universidade, mas variando conforme o governo e a resistência da população. “Se é possível pensar que ela desemboca hoje em uma massificação mal pensada, mal preparada, muito pouco financiada, não é efeito de uma doutrina toda voltada para resultados programados.” Laval faz o diagnóstico em seguida: “A falta de meios, a penúria dos professores, a sobrecarga das classes, se testemunham sem dúvida numa lógica de empobrecimento dos serviços públicos, relacionam-se igualmente a uma antiga tradição das elites econômicas e políticas que, se pagando palavras generosas, concedem mesquinhamente os meios financeiros quando se trata da educação de crianças das classes populares”. (p. XV).

Se o campo da educação, seja por pobreza ou por tradição, tenderia a manter-se fixado no passado, o que faz os gestores escolares aderirem às propostas neoliberais? Laval assinala que a centralização burocrática caracteriza o sistema de ensino, o que produz o espírito de casta entre servidores, o autoritarismo dos governantes, o fetichismo do regulamento, a valorização da iniciação geral dos administrados e funcionários, que pode tornar sedutoras as soluções neoliberais em situações extremas. Na educação, assevera Laval, vive-se a contradição entre aspirações igualitárias e divisão de classes, que acelera a imposição da concepção neoliberal da escola. “A força do novo modelo e a razão pela qual ele pouco a pouco se impõe referem-se precisamente à forma como o neoliberalismo se apresenta à escola e ao resto da sociedade, como solução ideal e universal a todas as contradições e disfunçõesenquanto na verdade, esse remédio alimenta o mal que ele supostamente cura” (Laval, p. XVI).

A política neoliberal de gestão da educação ameaça o objetivo de acesso universal à cultura escrita, letrada, científica, técnica e universal dada pela educação pública cidadã, diz Laval. Quer dizer, a gestão educacional para o mercado, transformada de princípio de governo à utopia irrealizável, é contrária aos fins da educação porque a lógica de acumulação de capital se torna o fim consciente da sociedade que se sobrepõe a qualquer outro, principalmente para o acesso universal à educação para formar cidadãos autônomos, críticos e livres. Isso porque a educação universal de qualidade exige ampliação do financiamento público, o que contraria expressamente as doutrinas liberais que defendem a baixa contribuição obrigatória por parte do Estado. As políticas neoliberais exigem menos ensino público e mais ensino privado de olho no aumento da despesa privada com educação. É a degradação do direito universal à educação, afirma Laval, degradação porque dissolve a educação pública na solução da educação privada ou se submete à sua lógica. O outro ponto de desvio do caminho, diz Laval, se dá pela pressão de solicitações mercantis e divertimentos audiovisuais que afetam os alunos e aprisionam também os jovens na “gaiola estreita do interesse privado e do consumo” (p. xvi): educação para o consumo, inserção de novas tecnologias e jogos na educação, tudo volta a educação para o mercado. Para Laval, a socialização-atomização feita pela sociedade de consumo está tomando o lugar da escola, as alegrias mercantis substituem as alegrias intelectuais, a cultura transmitida pela escola encontra dificuldade de se apresentar na sociedade de mercado: “na sociedade de mercado, o consumo ultrapassa a transmissão”, finaliza Laval.

 Mutação ou destruição da escola?

A crítica de Laval é a redução e simplificação que a ideologia neoliberal faz da escola republicana. O gerencialismo não a transforma, a destrói. É um discurso que conclui rapidamente pelo fim da escola tradicional, da escola pública. Isso acontece porque o autor salienta que, justamente por ser educação pública, ela é um campo de luta de forças e onde se posicionam grupos de interesse pela implementação de suas representações e suas lógicas. Relações de força não impõem fatalidades, e a educação pública tem valor justamente por engajar o sentido da vida individual de seus atores à vida coletiva. O debate neoliberal não é, afirma Laval, o de uma “adaptação à economia capitalista”, longe disso, se trata de colocar em perigo a autonomia da instituição escolar pública, de colocar termos que encaminham em direção da destruição da escola como tal porque baseados não em valores de solidariedade social, mas de extremo individualismo e competição.

Para explicar as raízes neoliberais da promoção da destruição da escola libertária, Laval retoma a famosa frase de Gilles Deleuze: “Tenta-se nos fazer crer em uma reforma da escola como uma liquidação” (p. xvii), pois para este autor, estamos passando das sociedades de aprisionamento (com suas prisões e escolas) para a sociedade de controle total e permanente, nas quais “não se acaba nunca com nada”: controle contínuo de processos, procedimentos e conteúdos da escola que visam assegurar o máximo de “flexibilidade”, de “disponibilidade” dos dominados ao capital. É, segundo Laval, o que se denomina de “desescolarização”, substituída por uma “pedagogização generalizada das relações sociais” (p. XVIII). Por isso, é comum na concepção neoliberal da escola a noção de “aprendizado ao longo de toda a vida”, que é absorvida por setores, inclusive da esquerda, como “dilatação da relação pedagógica”, mas ela é definida pelo acompanhamento e pelo desenvolvimento de tecnologias de informação e individualização da relação com os saberes. “Não são tantos outros sinais de um inevitável declínio da forma escolar?”, questiona Laval. A proposta neoliberal de “educação para toda a vida” oculta o fato de que se confundem o universo dos conhecimentos e o dos bens e serviços, que corroem as distinções entre o mundo escolar e o das empresas. E finaliza Laval: “Com a universalização da conexão mercantil dos indivíduos, parece chegada a época de um enfraquecimento das formas institucionais que acompanharam a construção dos espaços públicos e dos estados-nações” (idem). Escola e empresa são coisas diferentes.

Mas Laval afirma que a ideia de declínio da instituição escolar também não é desejada pela economia capitalista, ao contrário. Trata-se de propor sua mutação, o que é muito mais sutil, associada a três fatores promotores. O primeiro é a desinstitucionalização da educação, o que significa, nos termos do autor, uma “liquefação progressiva da instituição como forma social caracterizada por sua estabilidade e sua autonomia relativa”. É o processo que impõe o modelo de escola como “empresa aprendiz”, isto é, aquela gerida pelos princípios do novo gerencialismo, submetida a resultados, inovações. A instituição é considerada como capaz de se transformar em “organização flexível”. É só observar a inserção do Instituto Caldeira nas políticas públicas de educação ou as iniciativas das chamadas Smart Cities para observar a prática destas lógicas.

O segundo é o processo de desvalorização da educação. A educação é valorizada como fator de progresso, mas somente se acreditarmos que seus fundamentos e finalidades como instituição de transmissão de cultura e reprodução dos quadros da sociedade, onde os objetivos clássicos de emancipação política, precisam ser desconsiderados para serem colocados em seu lugar os imperativos prioritários de eficácia produtiva e inserção profissional. “Assiste-se, no plano da escola, à transmutação progressiva de todos os valores em um único valor econômico (p. xix).

O terceiro é o estabelecimento de mecanismos que produzem a desintegração da escola. Todos os mecanismos de mercado desintegram a escola porque são baseados no princípio da escolha liberal: de agora em diante, cabe às famílias a escolha de que conteúdos devem ser ministrados aos seus alunos, seguir as regras da competição capitalista, o que significa a ascensão de uma concepção consumidora, e não humanista, que corrói a autonomia da escola em nome da autonomia individual. A escola vira um laboratório de consumo de modos de ser, forma leve de impor a ideologia que fortalece a reprodução das desigualdades sociais, daí o desejo por uma escola que atenda à “diversidade”, “à diferenciação”, às necessidades do “público”, ou em última análise, às … demandas!

Laval aponta que essas tendências conduzem a um novo modelo escolar, mas que este não se impõe a termo pelas contradições que carrega. Professores e usuários da escola frequentemente se opõem a tais reformas, a que Laval chama de “hibridação”, “mistura curiosa de certos aspectos próprios ao setor mercantil (“serviço à clientela”, espírito “empreendedor”, financiamento privado) e certos modos de comando e de prescrição característicos de sistemas burocráticos mais restritivos” (idem). Laval vê como híbrida porque, ao mesmo tempo em que se sujeita à lógica econômica da competitividade, delineando-se como empresa, diversificando-se e adaptando-se aos “mercados locais”, é ao mesmo tempo uma “megamáquina” social comandada por um centro organizador, buscando “boas práticas” gerenciais, mas também pedagógicas, mas sempre “conteúdos” correspondentes às competências exigidas pelo mercado. O que é híbrido é que ao mesmo tempo assume características do mercado, como empreendedorismo, mas preserva a estrutura burocrática da escola tradicional: o que é híbrido é espaço entre “MERCADO” e “BUROCRACIA”. (continua na próxima semana)


Publicado originalmente Sler.

*Jorge Barcellos é graduado em História (IFCH/UFRGS) com Mestrado e Doutorado em Educação (PPGEDU/UFRGS). Entre 1997 e 2022 desenvolveu o projeto Educação para Cidadania da Câmara Municipal. É autor de 21 livros disponibilizados gratuitamente em seu site jorgebarcellos.pro.br. Servidor público aposentado, presta serviços de consultoria editorial e ação educativa para escolas e instituições. É casado com a socióloga Denise Barcellos e tem um filho, o advogado Eduardo Machado. http://lattes.cnpq.br/5729306431041524

Foto de capa: Christian Laval / Wikipedia

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