Da REDAÇÃO, a partir do texto de Helcimara Telles e Horrana Grieg e Souza Oliveira
O artigo de Helcimara Telles e Horrana Grieg e Souza Oliveira: Entre Dios y la Patria: populismo mesiánico en la comunicación del chavismo y bolsonarismo analisa o populismo messiânico na América Latina a partir de uma comparação entre Jair Bolsonaro, no Brasil, e Hugo Chávez, na Venezuela. As autoras mostram como, em contextos de crise de representação e fragilidade institucional, religião e política se entrelaçam para produzir lideranças carismáticas que se apresentam como salvadoras da nação, deslocando o eixo da política da argumentação racional para o terreno da fé, da moral e da devoção.
Populismo, crise democrática e mesianismo político
Partindo da literatura sobre populismo (Mudde, Kaltwasser, Laclau, Freidenberg, entre outros), o texto recorda que o populismo não constitui uma ideologia própria, mas um modo de construção da política que opõe “o povo puro” a “as elites corruptas” e se ancora em lideranças carismáticas, personalização do poder, polarização extrema e questionamento das instituições democráticas.
Esse populismo pode assumir formas de esquerda ou de direita, variando os “inimigos” e a agenda moral, mas preservando traços comuns: apelo direto ao povo, crítica às mediações institucionais, linguagem de crise e promessa de regeneração nacional. Em certos contextos, ele assume um caráter propriamente messiânico: o líder é apresentado como enviado por Deus, portador de uma missão histórica de redenção, e a política passa a ser narrada como batalha espiritual entre o bem e o mal.
O populismo messiânico, tal como definido por Demuru e Negrão, combina dominação carismática (Weber), discurso religioso, visão maniqueísta e promessa de um novo tempo justo, legitimado não por regras institucionais, mas pela crença dos seguidores na excepcionalidade do líder. Essa forma de liderança tende a minar a democracia liberal: concentra poder no Executivo, demoniza a oposição, relativiza direitos e reduz o pluralismo ao conflito absoluto entre “nós” e “eles”.
Mídia, redes sociais e a construção do “salvador”
O artigo sublinha o papel central dos meios de comunicação na difusão do populismo messiânico. A mídia tradicional e, sobretudo, as redes sociais são usadas para:
- contornar a imprensa crítica e falar “diretamente” com o povo;
- reforçar a narrativa de crise permanente, complôs e inimigos internos;
- produzir símbolos, imagens e rituais que sacralizam o líder;
- espalhar desinformação e teorias conspiratórias, elevando a desconfiança institucional.
Chávez explorou a televisão e programas longos de contato direto com a população; Bolsonaro e Trump se apoiaram intensamente em redes sociais, WhatsApp e comunicação em tempo real, fazendo das plataformas digitais palco de guerra simbólica e moral. Algoritmos, segmentação e viralização favorecem conteúdos emotivos, polarizadores e religiosos, ampliando o alcance da retórica messiânica.
Bolsonaro: o “enviado de Deus” e o mito do líder-mártir
No caso brasileiro, Telles e Oliveira mostram como o crescimento do campo evangélico e a crise do sistema político abriram espaço para um projeto de direita populista com forte conteúdo religioso. Bolsonaro se apresenta como outsider anti-PT, defensor da “família cristã” e dos “valores tradicionais”, apoiado por redes de pastores e lideranças neopentecostais que o legitimam como instrumento de Deus contra o comunismo, o “globalismo” e a “ideologia de gênero”.
Dois episódios são centrais na construção de sua imagem messiânica:
- O batismo no rio Jordão (2016) – realizado por um pastor evangélico em Israel, em plena crise do governo Dilma. O ato, filmado e amplamente difundido, associa Bolsonaro diretamente à simbologia bíblica do renascimento espiritual e da missão divina, aproximando-o do eleitorado evangélico e conferindo-lhe o estatuto de “candidato híbrido” (católico e evangélico ao mesmo tempo).
- O atentado a faca em Juiz de Fora (2018) – a tentativa de assassinato é rapidamente ressignificada como martírio e prova de proteção divina. A sobrevivência é lida por apoiadores como sinal de que o “Messias” foi preservado por Deus para cumprir sua missão. Nas redes sociais, hashtags, montagens e teorias conspiratórias transformam Adélio Bispo em encarnação do mal e o ataque em mito fundacional do bolsonarismo. A dicotomia bem × mal ganha forma concreta: Bolsonaro aparece como herói-sacrificado; o agressor, como instrumento demoníaco; a esquerda e o “sistema”, como conspiradores contra o escolhido.


Bolsonaro esfaqueado em um ato de campanha em Juiz de Fora – Reprodução redes sociais
Pesquisas citadas pelas autoras revelam que parcela expressiva de apoiadores crê que Bolsonaro foi enviado por Deus para governar o Brasil e que quase morrer “por nós” reforça seu caráter sacrificial. A narrativa religiosa e conspiratória integra seus discursos, lives e gestos públicos, articulando guerra espiritual, crise moral e destino nacional. A política é convertida em cruzada, e a adesão ao líder passa a ter contornos de fé.
Chávez: o “comandante eterno” e a santificação popular
Hugo Chávez emerge num cenário de esgotamento do sistema partidário venezuelano, crise econômica e descrédito das elites vinculadas ao Pacto de Punto Fijo. Apresentando-se como militar rebelde e redentor das classes populares, ele combina discurso anti-elitista, nacionalismo econômico e “Revolução Bolivariana”, apoiada em políticas sociais financiadas pela renda do petróleo.
Ao longo do tempo, o chavismo constrói um verdadeiro culto político em torno de Chávez, articulando símbolos patrióticos (Bolívar, bandeira, heróis nacionais) e elementos católicos populares. Depois de sua morte, esse processo assume dimensões abertamente religiosas:
- erguem-se capelas, como a dedicada a “San Hugo Chávez”, onde sua imagem convive com santos e virgens;
- multiplicam-se murais, ícones, rosários e orações adaptadas (como um “Pai Nosso” dirigido a Chávez);
- relatos de graças alcançadas e milagres vinculam o ex-presidente a curas, empregos e proteção cotidiana.
Como mostram as autoras, Chávez é elevado à condição de “santo popular” e “comandante eterno”, típico de uma religiosidade latino-americana que canoniza figuras carismáticas à margem da hierarquia oficial da Igreja. A fronteira entre política e devoção se dilui: lembrar Chávez, votar no chavismo ou defender o projeto bolivariano torna-se também gesto religioso, moral e identitário.
A sacralização pós-morte funciona como prolongamento da autoridade carismática: Chávez permanece presente como guia espiritual da revolução, cujos “olhos” vigiam e protegem o povo. O culto reforça a lealdade ao projeto chavista e legitima continuidades autoritárias num contexto de autocratização híbrida, em que formas democráticas subsistem como fachada.


Entre Deus e a Pátria: convergências e diferenças
Apesar de se situarem em polos ideológicos opostos — esquerda, no caso de Chávez, e extrema direita, no de Bolsonaro —, os dois casos analisados compartilham características centrais do populismo messiânico:
- personalização extrema do poder e culto à liderança;
- sacralização do líder, apresentado como enviado por Deus ou figura quase santa;
- uso intenso de símbolos religiosos, mitos e rituais públicos;
- narrativa de crise total e batalha entre bem e mal;
- relação ambígua e instrumental com instituições religiosas;
- recurso sistemático a mídias de massa e redes sociais para construir uma comunidade de fé política.
As diferenças residem nos contextos religiosos e nas tradições culturais mobilizadas: no Brasil, predomina o neopentecostalismo, com forte ênfase em batalhas espirituais e guerra cultural; na Venezuela, o chavismo dialoga com o catolicismo popular e a tradição dos santos milagrosos. Mas, em ambos os casos, a política é recoberta por uma camada de transcendência que reforça a obediência ao líder e enfraquece a crítica institucional.
Considerações finais
O resumo do trabalho de Telles e Oliveira evidencia que o populismo messiânico é mais do que um estilo retórico: trata-se de uma estratégia de construção simbólica do poder que desloca a legitimidade das regras democráticas para o terreno da crença e da devoção. Ao transformar líderes em figuras sagradas — “enviado de Deus” ou “comandante eterno” — e o povo em comunidade moral ameaçada, esse tipo de populismo fragiliza o pluralismo, justifica a perseguição de adversários e normaliza a concentração de poder.
Na América Latina, onde a religião tem forte peso cultural e onde as instituições democráticas são frequentemente frágeis, a combinação entre crise política, ativismo religioso e comunicação digital cria condições especialmente favoráveis a esse tipo de liderança. O caso de Bolsonaro e Chávez mostra, assim, que entre Deus e a Pátria pode se abrir um amplo espaço para projetos autoritários travestidos de missão redentora.
Referência do texto resumido
TELLES, Helcimara; OLIVEIRA, Horrana Grieg e Souza. Entre Dios y la Patria: populismo mesiánico en la comunicación del chavismo y bolsonarismo. Trabalho apresentado no IX Congreso Uruguayo de Ciencia Política, Eje Temático “Comunicación política y opinión pública”, Montevideo, Uruguay, 3–5 dez. 2025.
Imagem da capa: Batismo de Bolsonaro e Chávez no céu – Fotocomposição gerada por IA ChatGPT a partir de fotos de Jair Bolsonaro, Pastor Everaldo no Rio Jordão e Mural de Chavez y su Asunción al cielo




