Quando o poder exige servidão

translate

arzh-CNenfrdeitjaptruesyi
1d6da804-51041731_2416874498550270_5508271711461572608_n

Por SOLON SALDANHA*

O atual prefeito de Bento Gonçalves, Diogo Siqueira (PSDB), lidera com sucesso um movimento no qual logo foi acompanhado por outros chefes de executivos municipais da Serra Gaúcha, bem como por lideranças de entidades empresariais da mesma região. Ele está propondo que seja extinto o Bolsa Família ou, no mínimo, passe o programa por redução substancial. A justificativa é que com sua existência está faltando mão de obra para atender as empresas. Sua ofensiva, neste sentido, já inclui a implementação de uma força-tarefa que trabalha revendo os cadastros para que sejam retiradas tantas pessoas quanto possível. Com isso ele já conseguiu que caísse de 2,2 mil para 1,7 mil as famílias que recebem os valores no seu município – portanto, 500 delas já foram eliminadas. Lembremos que, apesar de ser um programa federal, são as prefeituras que listam as famílias carentes para os recebimentos do benefício. Diogo também implementou uma lei que prevê multa para quem eventualmente tenha usado dados falsos para acessar o programa.

Não satisfeito em atacar os necessitados do seu próprio território, o prefeito conseguiu que os demais que integram a Associação dos Municípios da Encosta Superior do Nordeste (Amesne) se comprometessem a adotar medidas semelhantes. São 23 no total, incluindo potências econômicas como são Caxias do Sul, Farroupilha, Garibaldi e Carlos Barbosa, além de outras localidades como Nova Prata, Veranópolis, Guaporé, Marau e Flores da Cunha. Depois das administrações municipais, o caso atraiu a atenção da Federação das Entidades Empresariais do Rio Grande do Sul (Federasul), que passou a incentivar associações comerciais de todo o interior para atuarem com o mesmo objetivo. Segundo informa, pelo menos em 30 cidades obtiveram adesões, até o momento, indo para além da região serrana.

Nosso Estado é um dos que menos cadastrados têm no Bolsa Família. Das 27 unidades da federação, apenas três estão atrás do Rio Grande do Sul. O programa em média paga aqui R$ 659,04 por família. No caso específico de Bento Gonçalves, o número de beneficiados (hoje 1.738) equivale a apenas 1,3% da sua população. E o valor médio pago a eles é menor do que o do RS como um todo, ficando em R$ 614,38. Mas, Diogo Siqueira, que recebe subsídios mensais de exatos R$ 21.924,34 – além de alguns benefícios –, acredita que as pessoas que sobrevivem com o auxílio se contentam com ele e preferem não trabalhar.

A ação do prefeito de Bento Gonçalves, que com ela pretende agradar a classe empresarial que ajudou a financiar a sua eleição, desconsidera que existem vários fatores contribuindo com a escassez de mão de obra que ela relata. Primeiro, tem pouca gente na “reserva”, aguardando por oportunidades, porque o Brasil está vivendo um índice de desocupação em patamares muito pequenos. Em 2024 o desemprego em todo o país era de 6,6%, enquanto que no Rio Grande do Sul estava em 4,5%. Em ambos os casos, algo que não se verificava desde 2012. Segundo, porque a informalidade foi se tornando mais atrativa, em função dos baixos salários que os empresários oferecem. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), que é realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), há cerca de seis milhões de pessoas exercendo atividade laboral com remuneração, no Rio Grande do Sul. No entanto, 32% delas – o que significa algo como 1,9 milhão – atuam no mercado informal. Estas não raras vezes ganham mais, com maior flexibilidade para tempo livre.

Em 2023 foram encontrados e resgatados 207 trabalhadores em Bento Gonçalves, que eram submetidos a condições degradantes, análogas à escravidão, durante a colheita da uva. Tinham sido trazidos de Bahia por uma empresa que oferecia mão de obra para as vinícolas Aurora, Salton e Cooperativa Garibaldi. Se por aqui também existirem homens que, por absoluto desespero, lutando por sobrevivência sua e de suas famílias, aceitem situação similar, ótimo para quem lucra com isso. Seria muito mais barato arregimentar escravos locais do que ter que importá-los de tão longe. Aliás, por questão de justiça, lembremos que o Brasil já fez isso lá nos seus primórdios. Os colonizadores tentaram escravizar os índios antes de buscar negros trazidos à força da África. Se tivessem conseguido, não enfrentariam os altos custos, os riscos e as perdas no trajeto entre os continentes.

Empatia é a capacidade de nos colocarmos no lugar do outro, condição para compreender e compartilhar sentimentos. Trata-se de importante habilidade socioemocional que envolve a identificação e a compreensão das emoções não nossas, mas de outras pessoas. Difícil sequer se supor que estes todos envolvidos no esforço de degradação da vida já precária de tantas pessoas sequer saibam o que é isso.


*Solon Saldanha é jornalista e blogueiro.

Texto publicado originalmente no Blog  Virtualidades.

Foto de capa: Reprodução

Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia..

Gostou do texto? Tem críticas, correções ou complementações a fazer? Quer elogiar?

Deixe aqui o seu comentário.

Os comentários não representam a opinião da RED. A responsabilidade é do comentador.

Uma resposta

  1. Solon, muitíssimo obrigado por suas sábias palavras. Desvela-se mais um ato da burguesia empresarial. De nosso capitalismo cruel. Herança escravocrata matizada com um neofascismo internacional de opressão e obscurantismo. O mundo velho está a morrer. O mundo novo tarda em aparecer. Neste claro-escuro irrompem os monstros, como nos ensinou Gramsci.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

plugins premium WordPress