É indispensável ver ‘Adolescência’

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Por LÉA MARIA AARÃO REIS*

Um dos mais importantes acontecimentos no ambiente cultural, no mundo cinematográfico e do audiovisual em geral, nas últimas semanas, é a série britânica Adolescência (Adolescence), realizada em 2024 e em cartaz no streaming. Quatro episódios de cerca de uma hora cada um, de autoria do ator Stephen Graham e do roteirista Jack Thorne, exploram a poderosa e frequentemente nefasta influência das redes sociais sobre as novas gerações, que origina isolamento emocional de jovens, violência, e estimula eventuais falhas na comunicação familiar.

Nas escolas, em reuniões convocadas para pais e professores, e nos encontros e debates dos(as) psicólogos, psicanalistas e psiquiatras de vários países, Brasil inclusive, vem sendo discutida com empenho a história relatada na série inglesa, do menino Jamie Miller, de 13 anos, acusado de esfaquear e assassinar uma colega da sua escola, de noite, em um estacionamento.

Jamie foi influenciado pela violência no seu entorno, pelo ressentimento, por um sentimento de retaliação ao status de incel (na linguagem digital dos jovens, os incels são celibatários involuntários na fase da vida de afirmação sexual), e pelo ódio contra a misoginia. Violências expostas não apenas nas plataformas desreguladas, mas extensivas a alguns enredos de filmes comerciais anunciados como ‘cinema infantil’ e até controlados pela censura!

Os temas contidos na ‘cultura de telas’ contemporânea por parte da garotada são urgentes: o bullying digital e o acesso indiscriminado aos celulares, aos programas e filmes na televisão aberta, aos iPads e congêneres usados até por pré-adolescentes, a frágil legislação específica e as normas sociais, e o instável controle e convívio familiar por parte de mães e pais cada vez mais ausentes do cotidiano doméstico durante muitas horas diárias, absorvidos pelo cada vez mais intenso trabalho profissional.

A trama de Adolescência transcorre em uma pequena cidade britânica, numa manhã ainda quase de madrugada, quando a polícia invade a casa de uma família de classe média bem-sucedida financeiramente, e leva Jamie Miller preso até uma delegacia de polícia local, onde ele será interrogado por ser suspeito de assassinar uma colega do colégio. Em seguida, o garoto ficará detido em um Centro de Segurança por pouco mais de um ano, à espera de julgamento.

A história é real e foi lida em um jornal, há tempos, por Stephen Graham, um dos autores da série (ele é ator e faz o pai de Jamie). Está em cartaz em muitos países há menos de um mês e está no topo da assistência digital, o que sinaliza a gravidade do tema e o alerta urgente para ser discutido.

Adolescência foi vista por mais de 66 milhões de pessoas no streaming internacional, em apenas duas semanas. No Reino Unido, transformou-se em fenômeno de massa e a mídia não cansa de publicar artigos e de produzir debates sobre as questões nele levantadas. “Vê-lo exibido dentro das escolas como está ocorrendo vai além de todas nossas expectativas”, diz o co-roteirista Jack Thorne.

O primeiro episódio da série introduz o espectador no mundo de Jamie, interpretado pelo menino Owen Cooper, de 15 anos, que não sonhava trabalhar na profissão até ser escolhido em testes realizados com centenas de candidatos ao papel. A expectativa de Owen era (não se sabe se ainda é) seguir a carreira de jogador de futebol profissional. Seu trabalho impressiona, com os tons e semitons com os quais compõe a personalidade de um rapazinho, e tem sido recebido com uma crítica unânime e entusiasmada.

Quatro episódios dissecam os motivos que podem ter levado Jamie Miller ao assassinato da colega Katie e evocam a influência de discurso misógino e machista, e a impossibilidade de controlar o uso das redes sociais entre a população de adolescentes.

No primeiro episódio, vê-se a atuação da polícia, do advogado burocrata designado para a defesa de Jamie, as primeiras audiências de instrução. A perplexidade é geral. No segundo tempo, o mundo escolar, as investigações policiais no colégio onde o garoto e a menina assassinada estudavam e onde conviviam com amigos em comum. No terceiro episódio, uma das sessões de Jamie com a psicóloga designada pela lei para ouvi-lo e para produzir um diagnóstico a ser utilizado no tribunal. É o episódio que está sendo mais focalizado por especialistas, professores, terapeutas e educadores. Também aqui é sugerido o tom burocrático da funcionária pública.

No quarto e último episódio, cerca de um ano depois da tragédia e durante a comemoração muito íntima do aniversário do pai de Jamie, apesar do tempo passado, vê-se que a vizinhança não esqueceu o crime.

Adolescência vem sendo dissecada também no seu aspecto formal, de audiovisual utilizando com sucesso e de modo particularmente inteligente a ferramenta do plano-sequência, um dos mais desafiadores dispositivos da arte cinematográfica. No caso, a cena durante a qual é aprofundado o assunto tratado e onde não há cortes; não há edição. O plano-sequência mais forte, aqui, é o do terceiro episódio da série, com a sessão da psicóloga com Jamie. O que importa nele é o conteúdo da conversa entre o adolescente e a terapeuta, e o modo como a psi a encerra abruptamente. É importante prestar atenção nos diálogos.

A propósito dessa série: há pouco tempo e em boa hora, as escolas brasileiras foram instruídas a não permitirem o uso de celulares dentro das salas de aula em cumprimento à recente Lei 15.100/2025. O objetivo é evitar a dispersão dos alunos durante as atividades escolares e estimulá-los a interagirem com colegas e professores olho no olho, como ocorria antes do advento da chamada “era digital”. Na Grã-Bretanha, uma severa Lei de Segurança Digital foi aprovada em 2023 e está em vigor. Seu objetivo é reforçar obrigações das plataformas e o de remover conteúdos ilegais.

O precioso papel de Adolescência é, basicamente, o de estimular essas e outras eventuais providências legais e ajudar no exame do acompanhamento familiar da garotada que se encontra na fase de transição da infância para a idade adulta. É quando um agudo sofrimento pode passar despercebido ou se disfarçar por trás de um ódio que leva à morte física ou à morte em vida.


Publicado originalmente no Fórum 21.

*Léa Maria Aarão Reis é jornalista.

lustração de capa: Reprodução

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