Por JORGE BARCELLOS*
“A gente não é treinado para dar tiro de advertência. A gente é treinado para dar dois tiros no tórax. E é isso que a gente faz”.
“A gente não é treinado para dar tiro na perna. A gente não é treinado para dar tiro de advertência. A gente é treinado para dar dois tiros no tórax. E é isso que a gente faz”. RBS Notícias, 3/7.
A epígrafe deste texto foi dita pelo delegado encarregado do caso da morte de Valdemar Both, de 53 anos, por policiais da Brigada Militar (BM), durante atendimento de uma ocorrência de suposto crime ambiental no interior de Santa Maria. O resultado foi mais uma família destruída e policiais afastados de suas funções. “Estou até agora sem entender, estou sem chão”, diz Cléria Both, de 49 anos, massoterapeuta que voltou às pressas para ouvir do filho “os policiais fuzilaram o pai”. A morte é relatada pela matéria do G1 (disponibilizada aqui), que diz que Both estaria com um machado e teria reagido à abordagem e por isso os policiais militares (PM) atiraram contra ele. ”Ele cortava lenha no local, um galpão onde morava, estaria vendendo o produto sem autorização – motivo da suspeita de crime ambiental”. A Polícia Civil abriu inquérito e afastou os policiais. Gabriel Both, filho de Both, diz que o pai era “querido por todos, e a prova disso é o próprio pessoal do Vale, que está inconformado com o ocorrido”. A vizinha Cleusa Pereira diz que ele “era uma pessoa extremamente boa. Ele ajudava todos aqui da comunidade.”
A morte ocorreu, segundo os policiais, quando Valdemar ia assinar o termo circunstanciado, quando teria pegado um machado e avançado contra os policiais. “No vídeo, Both grita com os policiais. Uma policial mulher aparece correndo. É possível ouvir um primeiro tiro de arma de fogo e outros dois tiros logo em seguida. Both cai no chão e um dos policiais sai do galpão segurando uma arma de fogo. Em seguida, outro PM aparece”, narra a reportagem que também diz que o delegado encarregado investiga se houve excesso de legítima defesa. A família diz que Both comprava eucalipto para fazer lenha e revender, o que é permitido, além de os equipamentos, como as motosserras, serem legalizados, o que descaracterizaria o crime ambiental. Os policiais militares, no entanto, afirmam que Valdermar não possuía licença ambiental para a operação, nem as motosserras teriam licença.
Não sou autoridade em segurança pública e nem possuo pesquisas sobre o tema. Há outros pesquisadores, como Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo e Alberto Koptike, muito mais autorizados e competentes do que eu para falar sobre o caso. Entretanto, eu não posso deixar de refletir sobre a fala do delegado responsável pelo caso que abre esta coluna e dita ao Jornal da RBS da última quinta-feira. A fala soou para mim como a revelação de um segredo, revelação de um mecanismo de proteção da corporação frente ao exterior, que quebra um modo de fortalecer a instituição diante do público porque nos oferece uma outra maneira de perceber o jogo social que se oferece aos nossos olhos. Eu espero estar errado.
Os dados da violência policial
É que, como todos, assisto com tristeza às cenas de violência policial de norte a sul do país. Como todos, sabemos que a maioria da corporação é composta por servidores de valor. Mas, como em qualquer instituição, e eu sou servidor público aposentado, sei que, como em qualquer instituição, se por um lado há aqueles que se dedicam e fazem valer o conceito de servidor público, e que são maioria, há outros que nem tanto, e por isso, engrossam as estatísticas de morte por intervenção policial. Segundo dados da Agência Brasil (disponíveis aqui), “o Brasil registrou 6.393 mortes por intervenções policiais em 2023, o que significa 3,1 mortes por 100 mil habitantes.” O número representa uma redução de 1% em relação a 2022, mas considerando os últimos dez anos (2013 a 2023), a letalidade policial no país aumentou 188,9%. Os dados são do 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado nesta quinta-feira (18), pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.” Eu sou uma espécie de felizardo das relações com a polícia: minha última abordagem policial foi na RS 040 quando ia para Cidreira. O policial militar parou meu carro, educadamente pediu-me os documentos e até disse que nem precisava, “está tudo ok no sistema, desculpe e boa viagem”. De minha parte, o mais perto que estive de uma arma foi aos sete anos, e era de plástico, enquanto brincava de polícia na pracinha perto de casa – nesses tempos, nos anos 70, ainda não existia o politicamente incorreto infantil.
Eu estou ciente de que a sociedade necessita da polícia e que as corporações fazem o possível para combater a violência policial. Mas quando digo que a afirmação soou para mim como revelação, é no sentido de que dá Michel Mafessoli em seu O tempo das tribos (Forense Universitária, 1987), “a temática do segredo [revela a] importância da aparência ou teatralidade tem na cena cotidiana, a sutil dialética entre o mostrar e o esconder, uma ostentação manifesta por ser o meio mais seguro de não ser descoberto, que tem, entre outras funções, a de integrar a “persona” numa arquitetura de conjunto” (p.128). É nesse sentido que a fala do delegado me soou como a queda de uma máscara, algo que subordina os membros da corporação policial, espécie de participação num conjunto mais vasto. Nesse mundo da corporação que se faz una em relação à sociedade à qual se subordina, eu acabo de descobrir que existe então uma máxima: ninguém fala que não se aprende a atirar para avisar, só para matar. Se vocês já sabiam disso, a leitura das próximas linhas é desnecessária. Pare por aqui.
É que, pelo menos, eu, como cidadão comum, sempre pensei o contrário. Mafessoli diz que a função unificadora deste silêncio foi compreendida pelos grandes místicos como a forma por excelência da comunicação. “Podemos lembrar que existe um laço entre o mistério, o místico e o mudo; este laço é o da iniciação que permite partilhar um segredo. Que este último seja insignificante ou mesmo, objetivamente inexistente, não é essencial. Basta que, embora de maneira fantasmática, os iniciados possam partilhar qualquer coisa. É isso que lhes dá força e dinamiza sua ação. Cada vez que se deseja instaurar, restaurar, corrigir uma ordem de coisas, ou uma comunidade, toma-se por base o segredo que reforça e confirma a solidariedade fundamental” (p. 129).
“Segredos de família”
Como nos antigos sodalícios de que fala Mafessoli, onde a refeição em comum implicava que se soubesse guardar o segredo frente ao exterior, o que aprendem os policiais militares em suas escolas é essa espécie de “assunto de família”, e, “dos assuntos de família”, portanto, não se fala. Os policiais, os educadores ou os jornalistas são frequentemente confrontados com esse segredo” (idem). Por minha experiência escolar, vi esse segredo se reproduzir nas reuniões de professores, para quem reprovar um aluno é sempre uma certeza e ninguém discute se é certo ou errado; para os jornalistas, Carlos André Moreira nos brindou aqui nas páginas de Sler recentemente com imagens de cenas de um jornal local que não imaginávamos existir e agora, com a fala do delegado, tenho a revelação inesperada que o mesmo acontece com as instituições policiais, como afirma Mafessoli, o que me faz pensar que foi um ato falho, na concepção freudiana.
Ricardo Salztrager (disponível aqui) diz que ato falho pode ser visto numa troca de palavras, mas também num simples deslize que esconde algo mais profundo, exatamente como entendo que fez o delegado na entrevista à RBS. Eu posso estar errado, mas entendo que ele nos indica algo que o desejo inconsciente dos membros da corporação foi treinado para reprimir, mas que aparece exatamente como Freud viu, na espécie de constrangimento do delegado “que acaba revelando verdades que gostaríamos de manter escondidas até de nós mesmos”. É um ato falho porque, como Freud diz, ocorreu de forma inesperada “só que, a partir deste engano, acabamos falando a verdade”. O autor diz que ato falho pode ser também definido como parapraxia, para nele agrupar os mais variados lapsos de linguagem. Nesse sentido, a fala do delegado é como aquela em que o namorado chama a atual namorada pelo nome da ex, fala inoportuna e por isso morre de vergonha. Eu não sei quanto a vocês, mas tive essa sensação do rosto do delegado, naquela hesitação ao afirmar que, ao contrário da imagem que a corporação alimenta para a sociedade, a polícia não é treinada para atirar para alertar, somente para matar. São os “dois tiros no peito” de que fala o delegado. A frase é exatamente isso, “manifestação de uma verdade até então impedida de se mostrar”, exatamente como Freud tratou do tema em seu livro “Psicopatologia da vida cotidiana”, a de que há verdades que todos nós insistimos em negar e a esconder. No entanto, quando menos esperamos, estas verdades encontram uma brecha e finalmente conseguem se manifestar em nossas falas” (idem).
A violência e a polícia como objeto de estudo
Há inúmeros estudos sobre violência e polícia. Em Topologia da Violência (Vozes, 2017), Byung-Chul Han diz que a violência evoluiu. Ela não desaparece na sociedade neoliberal, apenas suas formas de manifestação se modificam: “Hoje ela se retira para espaços subcutâneos, subcomunicativos, capilares e neuronais, adotando uma forma microfísica, exercida mesmo sem a negatividade do domínio ou da inimizade. Ela se desloca do caráter visível para o invisível, da força bruta para o medial e do frontal para o viral. Nada de ataques abertos; seu modo de atuação é através da infecção ou contágio”. Por isso chama tanta atenção a morte de Both: ela está ali, é visível, violência pura e gravada em vídeo. Tiago Caspian (disponível aqui), que não representa, nem perto, o principal balanço sobre a evolução da polícia, lembra que a instituição veio com a família real para o Brasil em 1808, que trouxe o formato desenvolvido naquela capital. Definida como instituição fundamental do processo de controle social, seu campo (Bourdieu) prevê vigilância de infrações existentes e mobilização para garantir a ordem social. Divididas em duas facções estaduais, incluem a Polícia Civil, com funções judiciárias, e a Polícia Militar, de policiamento ostensivo e patrulha. É clara a distinção da polícia para os demais servidores públicos: ela está autorizada ao uso da arma.
E aí começam todos os problemas também. O porte de armas tem uma história, foi objeto de uma codificação para seu uso estrito. Diz Elsa Dorlin em Autodefesa: uma filosofia da violência (Ubu, 2020) que “essas legislações classificaram as armas segundo escalas complexas de tecnicidade e periculosidade. Pretendiam, com isso, hierarquizar estatutos, distinguir condições, sedimentar posições sociais, isto é, instituir um acesso diferenciado aos recursos indispensáveis para a defesa de si” (p. 31). A partir daí, Dorlin mostra como se estabeleceram as distinções ao longo do tempo entre aqueles que têm o direito de se defender por dispor de uma arma, e quem, ao contrário, não pode. Deixo ao leitor, se curioso, buscar a obra para constatar a demonstração de seu argumento.
Na fala do delegado responsável, duas questões se sobressaem para mim. A primeira é como os policiais militares aprendem a atirar. A segunda é como veem o tiro de advertência. Nesse sentido, minha pergunta é se o chamado tiro de advertência faz parte ou não do treinamento recebido pelos militares. Parece simplório, não? O que fazer, não entendo do tema. Fui atrás de como é tratado o assunto nos currículos das Academias de Polícia. Encontrei no site da Acadepol (disponível aqui) o documento “Portfólio de Cursos de Tiro e Técnicas Operacionais Policiais”, onde se encontram os conteúdos relativos à formação de oficiais da Brigada Militar, e de onde foram reproduzidas as duas imagens deste artigo. A Acadepol é localizada em Porto Alegre, não tendo encontrado manuais das demais escolas de formação.
O currículo do tiro
O documento, com 18 páginas, trata dos cursos dirigidos à habilitação nas diversas armas da corporação: para se ter uma ideia, o curso de pistola automática é composto por cem horas de aula de tiro, sendo trinta delas de técnicas operacionais, perfazendo 400 tiros por aluno. Os demais cursos são destinados a treinamento em pistolas de calibre 12, .40, fuzil 5.56, fuzil 7.62, variando o número de horas e tiros dados por aluno no treinamento. De fato, procurei em todo o documento e não existe a expressão “tiro de advertência”. Nós, professores, sabemos que um programa é somente uma lista de assuntos e eu não deixaria de lado a possibilidade de o tema ser abordado de alguma forma que desconheço em algum outro conteúdo de ensino. Mas, de fato, como diz o delegado, não existe o tema, para minha surpresa.
No entanto, é um programa de ensino bastante detalhado. Os conteúdos são discriminados por tipo de armamento, como também o da pistola ao calibre 12, mas há claramente conteúdos relativos a gerenciamento de crises, verbalização da ação policial, bem como o uso de equipamentos não letais. Quer dizer, os conteúdos são projetados para darem aos policiais condições de enfrentarem tais situações como a de Both.
“A gente não é treinado para dar tiro na perna. A gente não é treinado para dar tiro de advertência. A gente é treinado para dar dois tiros no tórax. E é isso que a gente faz”. RBS Notícias, 3/7.
A epígrafe deste texto foi dita pelo delegado encarregado do caso da morte de Valdemar Both, de 53 anos, por policiais da Brigada Militar (BM), durante atendimento de uma ocorrência de suposto crime ambiental no interior de Santa Maria. O resultado foi mais uma família destruída e policiais afastados de suas funções. “Estou até agora sem entender, estou sem chão”, diz Cléria Both, de 49 anos, massoterapeuta que voltou às pressas para ouvir do filho “os policiais fuzilaram o pai”. A morte é relatada pela matéria do G1 (disponibilizada aqui), que diz que Both estaria com um machado e teria reagido à abordagem e por isso os policiais militares (PM) atiraram contra ele. ”Ele cortava lenha no local, um galpão onde morava, estaria vendendo o produto sem autorização – motivo da suspeita de crime ambiental”. A Polícia Civil abriu inquérito e afastou os policiais. Gabriel Both, filho de Both, diz que o pai era “querido por todos, e a prova disso é o próprio pessoal do Vale, que está inconformado com o ocorrido”. A vizinha Cleusa Pereira diz que ele “era uma pessoa extremamente boa. Ele ajudava todos aqui da comunidade.”
A morte ocorreu, segundo os policiais, quando Valdemar ia assinar o termo circunstanciado, quando teria pegado um machado e avançado contra os policiais. “No vídeo, Both grita com os policiais. Uma policial mulher aparece correndo. É possível ouvir um primeiro tiro de arma de fogo e outros dois tiros logo em seguida. Both cai no chão e um dos policiais sai do galpão segurando uma arma de fogo. Em seguida, outro PM aparece”, narra a reportagem que também diz que o delegado encarregado investiga se houve excesso de legítima defesa. A família diz que Both comprava eucalipto para fazer lenha e revender, o que é permitido, além de os equipamentos, como as motosserras, serem legalizados, o que descaracterizaria o crime ambiental. Os policiais militares, no entanto, afirmam que Valdermar não possuía licença ambiental para a operação, nem as motosserras teriam licença.
Não sou autoridade em segurança pública e nem possuo pesquisas sobre o tema. Há outros pesquisadores, como Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo e Alberto Koptike, muito mais autorizados e competentes do que eu para falar sobre o caso. Entretanto, eu não posso deixar de refletir sobre a fala do delegado responsável pelo caso que abre esta coluna e dita ao Jornal da RBS da última quinta-feira. A fala soou para mim como a revelação de um segredo, revelação de um mecanismo de proteção da corporação frente ao exterior, que quebra um modo de fortalecer a instituição diante do público porque nos oferece uma outra maneira de perceber o jogo social que se oferece aos nossos olhos. Eu espero estar errado.
Os dados da violência policial
É que, como todos, assisto com tristeza às cenas de violência policial de norte a sul do país. Como todos, sabemos que a maioria da corporação é composta por servidores de valor. Mas, como em qualquer instituição, e eu sou servidor público aposentado, sei que, como em qualquer instituição, se por um lado há aqueles que se dedicam e fazem valer o conceito de servidor público, e que são maioria, há outros que nem tanto, e por isso, engrossam as estatísticas de morte por intervenção policial. Segundo dados da Agência Brasil (disponíveis aqui), “o Brasil registrou 6.393 mortes por intervenções policiais em 2023, o que significa 3,1 mortes por 100 mil habitantes.” O número representa uma redução de 1% em relação a 2022, mas considerando os últimos dez anos (2013 a 2023), a letalidade policial no país aumentou 188,9%. Os dados são do 18º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado nesta quinta-feira (18), pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública.” Eu sou uma espécie de felizardo das relações com a polícia: minha última abordagem policial foi na RS 040 quando ia para Cidreira. O policial militar parou meu carro, educadamente pediu-me os documentos e até disse que nem precisava, “está tudo ok no sistema, desculpe e boa viagem”. De minha parte, o mais perto que estive de uma arma foi aos sete anos, e era de plástico, enquanto brincava de polícia na pracinha perto de casa – nesses tempos, nos anos 70, ainda não existia o politicamente incorreto infantil.
Eu estou ciente de que a sociedade necessita da polícia e que as corporações fazem o possível para combater a violência policial. Mas quando digo que a afirmação soou para mim como revelação, é no sentido de que dá Michel Mafessoli em seu O tempo das tribos (Forense Universitária, 1987), “a temática do segredo [revela a] importância da aparência ou teatralidade tem na cena cotidiana, a sutil dialética entre o mostrar e o esconder, uma ostentação manifesta por ser o meio mais seguro de não ser descoberto, que tem, entre outras funções, a de integrar a “persona” numa arquitetura de conjunto” (p.128). É nesse sentido que a fala do delegado me soou como a queda de uma máscara, algo que subordina os membros da corporação policial, espécie de participação num conjunto mais vasto. Nesse mundo da corporação que se faz una em relação à sociedade à qual se subordina, eu acabo de descobrir que existe então uma máxima: ninguém fala que não se aprende a atirar para avisar, só para matar. Se vocês já sabiam disso, a leitura das próximas linhas é desnecessária. Pare por aqui.
É que, pelo menos, eu, como cidadão comum, sempre pensei o contrário. Mafessoli diz que a função unificadora deste silêncio foi compreendida pelos grandes místicos como a forma por excelência da comunicação. “Podemos lembrar que existe um laço entre o mistério, o místico e o mudo; este laço é o da iniciação que permite partilhar um segredo. Que este último seja insignificante ou mesmo, objetivamente inexistente, não é essencial. Basta que, embora de maneira fantasmática, os iniciados possam partilhar qualquer coisa. É isso que lhes dá força e dinamiza sua ação. Cada vez que se deseja instaurar, restaurar, corrigir uma ordem de coisas, ou uma comunidade, toma-se por base o segredo que reforça e confirma a solidariedade fundamental” (p. 129).
“Segredos de família”
Como nos antigos sodalícios de que fala Mafessoli, onde a refeição em comum implicava que se soubesse guardar o segredo frente ao exterior, o que aprendem os policiais militares em suas escolas é essa espécie de “assunto de família”, e, “dos assuntos de família”, portanto, não se fala. Os policiais, os educadores ou os jornalistas são frequentemente confrontados com esse segredo” (idem). Por minha experiência escolar, vi esse segredo se reproduzir nas reuniões de professores, para quem reprovar um aluno é sempre uma certeza e ninguém discute se é certo ou errado; para os jornalistas, Carlos André Moreira nos brindou aqui nas páginas de Sler recentemente com imagens de cenas de um jornal local que não imaginávamos existir e agora, com a fala do delegado, tenho a revelação inesperada que o mesmo acontece com as instituições policiais, como afirma Mafessoli, o que me faz pensar que foi um ato falho, na concepção freudiana.
Ricardo Salztrager (disponível aqui) diz que ato falho pode ser visto numa troca de palavras, mas também num simples deslize que esconde algo mais profundo, exatamente como entendo que fez o delegado na entrevista à RBS. Eu posso estar errado, mas entendo que ele nos indica algo que o desejo inconsciente dos membros da corporação foi treinado para reprimir, mas que aparece exatamente como Freud viu, na espécie de constrangimento do delegado “que acaba revelando verdades que gostaríamos de manter escondidas até de nós mesmos”. É um ato falho porque, como Freud diz, ocorreu de forma inesperada “só que, a partir deste engano, acabamos falando a verdade”. O autor diz que ato falho pode ser também definido como parapraxia, para nele agrupar os mais variados lapsos de linguagem. Nesse sentido, a fala do delegado é como aquela em que o namorado chama a atual namorada pelo nome da ex, fala inoportuna e por isso morre de vergonha. Eu não sei quanto a vocês, mas tive essa sensação do rosto do delegado, naquela hesitação ao afirmar que, ao contrário da imagem que a corporação alimenta para a sociedade, a polícia não é treinada para atirar para alertar, somente para matar. São os “dois tiros no peito” de que fala o delegado. A frase é exatamente isso, “manifestação de uma verdade até então impedida de se mostrar”, exatamente como Freud tratou do tema em seu livro “Psicopatologia da vida cotidiana”, a de que há verdades que todos nós insistimos em negar e a esconder. No entanto, quando menos esperamos, estas verdades encontram uma brecha e finalmente conseguem se manifestar em nossas falas” (idem).
A violência e a polícia como objeto de estudo
Há inúmeros estudos sobre violência e polícia. Em Topologia da Violência (Vozes, 2017), Byung-Chul Han diz que a violência evoluiu. Ela não desaparece na sociedade neoliberal, apenas suas formas de manifestação se modificam: “Hoje ela se retira para espaços subcutâneos, subcomunicativos, capilares e neuronais, adotando uma forma microfísica, exercida mesmo sem a negatividade do domínio ou da inimizade. Ela se desloca do caráter visível para o invisível, da força bruta para o medial e do frontal para o viral. Nada de ataques abertos; seu modo de atuação é através da infecção ou contágio”. Por isso chama tanta atenção a morte de Both: ela está ali, é visível, violência pura e gravada em vídeo. Tiago Caspian (disponível aqui), que não representa, nem perto, o principal balanço sobre a evolução da polícia, lembra que a instituição veio com a família real para o Brasil em 1808, que trouxe o formato desenvolvido naquela capital. Definida como instituição fundamental do processo de controle social, seu campo (Bourdieu) prevê vigilância de infrações existentes e mobilização para garantir a ordem social. Divididas em duas facções estaduais, incluem a Polícia Civil, com funções judiciárias, e a Polícia Militar, de policiamento ostensivo e patrulha. É clara a distinção da polícia para os demais servidores públicos: ela está autorizada ao uso da arma.
E aí começam todos os problemas também. O porte de armas tem uma história, foi objeto de uma codificação para seu uso estrito. Diz Elsa Dorlin em Autodefesa: uma filosofia da violência (Ubu, 2020) que “essas legislações classificaram as armas segundo escalas complexas de tecnicidade e periculosidade. Pretendiam, com isso, hierarquizar estatutos, distinguir condições, sedimentar posições sociais, isto é, instituir um acesso diferenciado aos recursos indispensáveis para a defesa de si” (p. 31). A partir daí, Dorlin mostra como se estabeleceram as distinções ao longo do tempo entre aqueles que têm o direito de se defender por dispor de uma arma, e quem, ao contrário, não pode. Deixo ao leitor, se curioso, buscar a obra para constatar a demonstração de seu argumento.
Na fala do delegado responsável, duas questões se sobressaem para mim. A primeira é como os policiais militares aprendem a atirar. A segunda é como veem o tiro de advertência. Nesse sentido, minha pergunta é se o chamado tiro de advertência faz parte ou não do treinamento recebido pelos militares. Parece simplório, não? O que fazer, não entendo do tema. Fui atrás de como é tratado o assunto nos currículos das Academias de Polícia. Encontrei no site da Acadepol (disponível aqui) o documento “Portfólio de Cursos de Tiro e Técnicas Operacionais Policiais”, onde se encontram os conteúdos relativos à formação de oficiais da Brigada Militar, e de onde foram reproduzidas as duas imagens deste artigo. A Acadepol é localizada em Porto Alegre, não tendo encontrado manuais das demais escolas de formação.
O currículo do tiro
O documento, com 18 páginas, trata dos cursos dirigidos à habilitação nas diversas armas da corporação: para se ter uma ideia, o curso de pistola automática é composto por cem horas de aula de tiro, sendo trinta delas de técnicas operacionais, perfazendo 400 tiros por aluno. Os demais cursos são destinados a treinamento em pistolas de calibre 12, .40, fuzil 5.56, fuzil 7.62, variando o número de horas e tiros dados por aluno no treinamento. De fato, procurei em todo o documento e não existe a expressão “tiro de advertência”. Nós, professores, sabemos que um programa é somente uma lista de assuntos e eu não deixaria de lado a possibilidade de o tema ser abordado de alguma forma que desconheço em algum outro conteúdo de ensino. Mas, de fato, como diz o delegado, não existe o tema, para minha surpresa.
No entanto, é um programa de ensino bastante detalhado. Os conteúdos são discriminados por tipo de armamento, como também o da pistola ao calibre 12, mas há claramente conteúdos relativos a gerenciamento de crises, verbalização da ação policial, bem como o uso de equipamentos não letais. Quer dizer, os conteúdos são projetados para darem aos policiais condições de enfrentarem tais situações como a de Both.
Com relação ao tiro, a avaliação é composta de duas provas para os diversos tipos de armas. No caso da arma curta, a imagem acima é a do alvo. Chama a minha atenção no programa o detalhamento do modelo do alvo. No modelo Alvo Silhueta (figura 1), a prova é uma silhueta humanoide, padrão DPF/ANP, com zonas de pontuação decrescente de 5 (cinco) a 0 (zero) pontos, onde o atirador deve ficar a 5 e 7 metros e executar dez tiros em cada distância, totalizando os vinte tiros. O teste é feito em vinte segundos para cada sequência de 5 tiros ou quarenta segundos para sequência de dez tiros, com mecanismo de acionamento de disparo variando entre armas de ação simples ou dupla e somente com munição original, de fábrica, proibido o uso de munição recarregada. O candidato é aprovado obtendo no mínimo 60% da pontuação máxima do alvo, ou seja, 30 (trinta) pontos em cada distância, do total dos 50 (cinquenta) pontos possíveis. Analisando o alvo silhueta, ele confirma o que o delegado afirma em seu depoimento ao jornal da RBS: é ensinado aos aprendizes o tiro no tronco. Constato que o desenho não comporta outros alvos como pernas ou braços, contendo os dois pontos fatais para o tiro: o centro do peito e a cabeça.
A segunda prova é chamada de Alvo de 4 cores (figura 2). É a da imagem acima. Ambas constam do programa. O aluno deve executar “24 (vinte e quatro) disparos, divididos em 6 (seis) séries de 4 (quatro) disparos cada, no tempo máximo de 08’’ (oito segundos por série) a 7 metros, contra alvo do tipo fogo central, padrão SAT/ANP, medindo 46cm x 64cm, subdividido em quatro cores distintas, sendo 2 (dois) disparos em cada cor, conforme comando do aplicador da verificação. Será considerado aprovado aquele que obtiver, no mínimo, 60% (sessenta por cento) dos pontos possíveis, ou seja, 72 (setenta e dois) pontos dos 120 (cento e vinte) pontos possíveis. Para os 24 (vinte e quatro) disparos, a contagem de pontos será feita com base nos valores de 0 (zero), 3 (três), 4 (quatro) e 5 (cinco), impressos no alvo tipo fogo central e de acordo com os locais atingidos pelos projéteis.
O tiro ausente
Se eu entendi bem, a pontuação é feita exatamente na lógica mortal que diz que quanto mais ao centro, quanto mais perto dos pontos vitais, melhor é o tiro e mais certeiro é o atirador. E mais nota ganha. O centro da avaliação é acertar o ponto fatal na vítima. Não há espaço aqui para o tiro de advertência. É o tiro ausente. Eu entendo que a didática deste ensino está na premissa de que o que está em jogo é a vida do policial, o que, na filosofia da corporação e da sociedade, é fundamental. Mas eu, como educador, como cidadão observador da violência policial, penso que o policial também deveria possuir a faculdade de julgar avaliada nessas situações, não? Dificilmente saberemos o exato sentimento e o que aconteceu que levou policiais treinados a atirar em Both, somente podemos esperar que a corporação seja capaz de avaliar seus processos para fazer um trabalho melhor.
Continuando a leitura, vejo que as provas variam conforme o padrão de armamento, com regras específicas para espingarda calibre 12, carabina 5.56, armas de fogo longas, submetralhadoras e fuzil 7.62. Eu vejo positivamente que a instituição tenha a preocupação com o aperfeiçoamento de seus profissionais, pois o programa prevê cursos de aperfeiçoamento de tiro para as diversas armas da corporação, com número de horas e tiros específicos por arma, mostrando o desejo da instituição em aprimorar a qualidade da corporação. Mas ainda é qualificar em matar, ainda que reconheça os esforços da instituição em uma Educação para Direitos Humanos em seu meio.
Também é importante registrar que a Acadepol possui curso específico para capacitação em tecnologias não letais. Diz a ementa: “Capacitar e habilitar como operadores das técnicas para o uso e emprego de tecnologias não letais, utilizando o conhecimento adquirido na defesa da cidadania, das garantias individuais, de sua integridade física e/ou de terceiros, no estrito cumprimento do dever legal, com base no ordenamento jurídico vigente e dos tratados internacionais, buscando a inclusão e o aperfeiçoamento na doutrina do uso diferenciado da força.” É importante apontar a preocupação da instituição em constar em seus programas o conhecimento de temas de cidadania, isto é, como assumir para si a defesa das garantias individuais e integridade de terceiros. E, finalmente, cabe destacar que a Acadepol oferece curso específico para utilização de dispositivo elétrico incapacitante. Quer dizer, há formação para o uso de armas letais e não letais.
A polêmica do tiro de advertência
Outro ponto que merece destaque na fala do delegado é sobre o chamado “tiro de advertência”. Procurei na internet e descobri que há, em relação ao tema, uma polêmica. Francisco Sannini Neto e Rodrigo Foureaux (disponível aqui) afirmam que o artigo 15 do Estatuto do Desarmamento criminaliza, em tese, o “disparo de advertência”, mas eles ressaltam que a intenção do legislador foi criminalizar, de fato, o disparo a esmo ou aleatório. “Se houver justa causa para o disparo, notadamente quando efetuado por policiais, não há que se falar em crime.” Segundo os autores, o chamado “Triângulo do Tiro”, a regra que auxilia na tomada de decisão do uso da arma de fogo, é a seguinte: “é possível atirar em um agressor quando, no caso concreto, ele demonstrar ‘habilidade’, ‘oportunidade’ e ‘perigo’: capacidade real de causar danos graves, possibilidade de fazer uso da habilidade, e efetiva intenção de atacar sem justa causa e de maneira letal.”
Por esta razão, a Lei 13.060/14 já prevê o uso de armas não letais para policiais diante de uma potencial agressão. “Ocorre que, em muitas situações, policiais civis e policiais militares não dispõem de armas não letais por ausência de fornecimento pela instituição, o que, na realidade das ruas, serve de justificativa para o emprego de armas de fogo.” Os autores chegam a defender o “tiro de advertência”, pois “representa uma forma distinta de dissuasão de ataques atuais ou iminentes, constituindo uma modalidade de disparo menos incisiva, pois não é efetuado na região do alvo, mas, preferencialmente, em zona neutra, sem apresentar risco à incolumidade pública.” A conclusão dos autores é que o tiro de advertência também é justificado para agir em defesa própria ou de terceiros.
Sobre o tema, ainda encontrei o artigo do delegado de polícia Marcio Dububras (disponível aqui). Para ele, o assunto se tornou complexo para os policiais depois que o Decreto 12.341/24 disciplinou o uso da força e dos instrumentos de menor potencial ofensivo pelos profissionais da segurança pública. Segundo ele, “o referido decreto estabelece que o emprego de arma de fogo somente poderá ser realizado como último recurso. Portanto, se o agente dispor de instrumentos menos letais, deverá utilizá-los antes do uso de uma arma de fogo.” Dentro desse contexto, o autor pergunta também se “o policial que efetua um tiro de advertência comete o crime de disparo de arma de fogo?”
Os critérios de exclusão
Seus argumentos são os seguintes. Primeiro, para que não seja considerado crime, é preciso mostrar que o comportamento é lícito e não culpável. A exclusão se dá pelo “estado de necessidade”, pela “legítima defesa” e pelo “estrito cumprimento do dever”. A culpabilidade é mais complexa, pois é um juízo de reprovação pessoal “verificado quando estão presentes os seus elementos constitutivos que são imputabilidade, potencial consciência sobre a ilicitude do fato e a exigibilidade de conduta diversa. Portanto, se algum desses elementos não estiver presente, não teremos a culpabilidade.” Isso envolveria análise da teoria do crime, outra dimensão complexa do direito, daí o autor centrar-se no famoso “tiro de advertência”, definido como “casos em que o policial atira para o alto para evitar a possibilidade dele ou de terceiro ser agredido: não há que se falar em crime, pois ele estaria amparado pela excludente de ilicitude, legítima defesa. Portanto, o policial não estaria cometendo crime se não houvesse outro meio menos letal para impedir a agressão.”
Ele cita o artigo 25 do Código Penal que diz que “entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.” O problema, diz o autor, é que “não há um cálculo matemático preciso para o uso desses meios. Moderação dos meios é o emprego dos meios necessários na proporção entre o ataque sofrido e a defesa. A escolha do meio para se defender e o seu uso dependerão da forma como se dá a agressão. Portanto, se o policial está na iminência de ser agredido por um grupo de pessoas e só dispõe de uma arma de fogo para se defender, pode usá-la efetuando o tiro para o alto e até, em situações mais graves, quando os agressores objetivam agredi-lo ou tomar a sua arma, atirar naquele que pretende fazê-lo.”
O autor passa a enumerar decisões de tribunais sobre o uso do tiro de advertência por policiais, caracterizando legítima defesa. Para o autor, “portanto, mesmo que o agente pratique um fato típico, não responderá pelo crime por agir sob o amparo de uma das causas de exclusão da ilicitude, o estrito cumprimento do dever legal.” Seria desarrozado a lei impor que determinadas pessoas realizassem um ato, e, ao mesmo tempo, sujeitá-lo a uma sanção penal em razão do seu cumprimento. O cumprimento desse ato não é uma faculdade para o agente agir ou não agir. Há, em verdade, um dever legal de agir que, caso se negue a realizar, terá como consequência uma responsabilidade penal por essa omissão.” O autor cita como exemplos similares a não responsabilização de violação de domicílio para o cumprimento de um mandado de prisão. E continua: “Dentro desse contexto, entendemos que se o policial efetua um disparo para o alto com a finalidade de impedir que um criminoso fuja, está amparado pela excludente do estrito cumprimento do dever legal, pois usou dos meios necessários para cumprir uma ordem legal de prisão ou de efetuar uma prisão em flagrante delito, ressaltando que se não agir assim poderá ser responsabilizado por deixar de agir.”
Pergunta ainda sem resposta
A pergunta que eu entendo fica no ar depois do depoimento do delegado e que merece ser respondida pela instituição é: se os agentes têm treinamento e recursos para uso de outras tecnologias, se faz parte da filosofia da instituição a preservação das vidas, se os policiais dispõem de outros recursos de contenção além de armas de fogo e se os policiais não são punidos quando fazem tiros de advertência, por que não o fizeram? Eu pergunto isso porque entendo que o gesto poderia ter colaborado para a reversão da situação, pois, do jeito que ficou, nos termos de Dorlin, se o caso não for esclarecido devidamente, ele corre o risco de transformar Valdermar Both em nosso Rodney King. O caso é conhecido: interceptado pela polícia de Los Angeles por dirigir acima da velocidade, ele se nega a sair do carro, obedece ao policial, é obrigado a se deitar no chão, recebe golpes de arma de eletrochoque, tenta se levantar, é espancado e morto, tudo filmado e que levou à absolvição dos quatro policiais que alegaram legítima defesa.
O que aproxima King de Both é que, nos termos da filósofa francesa, o fato de que ambos não são vistos como vítimas, mas como agressores, e nos dois casos, o argumento da legítima defesa é sempre daqueles que têm o poder. Dorlin enfatiza que sua obra é de análise de violência policial em contexto de lutas raciais: aqui, o meu entendimento é a possibilidade de extensão de seu argumento a toda e qualquer forma de violência de estado. King é o jovem trabalhador afro-americano e Both é o velho trabalhador rural gaúcho: ao se recusarem a aceitar o seu destino, foram ambos atingidos em seu corpo. Ambos os casos têm um vídeo que registra a violência que é sujeito a interpretação; ambos colocaram a questão do uso excessivo da força, seja no julgamento dos quatro policiais, seja no julgamento inicial do público; ambos policiais alegaram que se sentiram agredidos; ambos policiais afirmam que estavam apenas se defendendo: os primeiros, de um “colosso”, um homem de mais de 1,90 m e os segundos, de um homem armado de um machado. Ambos agiram sob o mote de que, no momento, era legítima defesa ‘que atestava a “vulnerabilidade” dos policiais’ (p. 20).
A pergunta, após a morte de Both, é: quem é a vítima? Dorlin oferece uma linha de interpretação para isso para chegar à verdade: “é, portanto, esse processo que se deve questionar: o processo pelo qual percepções são socialmente construídas, produzidas por um corpus que continua constrangendo todo ato de conhecimento possível” (p. 22). Nos termos da filósofa, King alimenta o fantasma da agressão ao racista branco, assim como Both alimenta o fantasma do policial vítima de violência. Dorlin fala da paranoia branca que alimenta a percepção de King como agressor, mas e se for simplesmente paranoia o que se trata, o sentimento que faz com que policiais que tinham o treinamento para controlar a situação – afinal, era um senhor de idade conhecido por todos – não o tenham conseguido e simplesmente tenham dado a ambos o mesmo destino, a morte?
A conclusão é que sabemos que policiais padecem em sua profissão, sejam pelos baixos salários ou pelas condições de trabalho, e que, como as mais diversas categorias sociais, adoecem da profissão. Mas, tal como o erro médico, o erro policial é fatal. Por isso, é preciso ir a fundo, pois outras questões se colocam com o caso: o que é o uso razoável da força? O que é uso excessivo? “A percepção da violência policial não depende apenas do enquadramento de uma inteligibilidade que emerge do passado; esse enquadramento é atualizado o tempo todo por técnicas de poder materiais e discursivas que consistem, entre outras coisas, tanto em desvincular as percepções dos acontecimentos das lutas sociais e políticas que contribuem precisamente para ancorá-las na história, como em produzir outros enquadramentos de apreensão e inteligibilidade da realidade vivida” (p. 24). É uma luta por narrativas, é verdade, mas há também uma luta pelo sentido de quem é vítima e quem é agressor. Se queremos uma polícia cidadã na democracia, é por isto que devemos lutar.
Publicado originalmente Sler.
*Jorge Barcellos é graduado em História (IFCH/UFRGS) com Mestrado e Doutorado em Educação (PPGEDU/UFRGS). Entre 1997 e 2022 desenvolveu o projeto Educação para Cidadania da Câmara Municipal. É autor de 21 livros disponibilizados gratuitamente em seu site jorgebarcellos.pro.br. Servidor público aposentado, presta serviços de consultoria editorial e ação educativa para escolas e instituições. É casado com a socióloga Denise Barcellos e tem um filho, o advogado Eduardo Machado. http://lattes.cnpq.br/5729306431041524
Foto de capa: Freepik