Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*
A constatação as maiores economias terem menor grau de abertura externa e maior dependência do mercado interno relaciona-se com os debates contemporâneos sobre relocalização produtiva, multipolaridade e autonomia estratégica. Esses temas convergem hoje na reconfiguração estratégica da ordem econômica internacional e na continuidade (ou não) do globalismo produtivo.
Durante a Era da Globalização Neoliberal (1980–2008), as cadeias de valor se estenderam planetariamente. O paradigma era produzir onde é mais barato, vender onde é mais rentável e governar via instituições multilaterais (OMC, FMI).
Esse modelo intensificou a interdependência assimétrica, sobretudo entre países centrais consumidores (EUA, UE – União Europeia), países industriais exportadores (China, Sudeste Asiático) e fornecedores de matérias-primas (América Latina, África). Crises sucessivas — financeiras (2008), sanitárias (Covid-19), geopolíticas (guerra na Ucrânia, tensões EUA-China) e climáticas — desencadearam um movimento de reavaliação da dependência externa, com três conceitos centrais emergentes.
O primeiro é de relocalização produtiva (reshoring / friend-shoring), cuja definição se refere ao processo pelo qual países buscam trazer de volta parte da produção industrial para seus territórios ou para países aliados politicamente. Suas motivações são reduzir as vulnerabilidades em cadeias críticas, por exemplo, semicondutores e insumos médicos, preservar empregos industriais e garantir segurança econômica em contextos de conflito.
No governo Biden (democrata), os EUA com o Inflation Reduction Act (IRA) concederam incentivos massivos à produção doméstica de tecnologias verdes, semicondutores, baterias etc.
O segundo é o de multipolaridade econômica. Trata-se da transição de uma ordem global unipolar (dominada pelos EUA) para uma com vários centros de poder econômico e político: China, UE, Índia, Rússia, Brasil, líderes dos grandes países emergentes organizados no BRIC.
As implicações são: o centro da acumulação não estar mais exclusivamente nos países do Atlântico Norte. Novas coalizões sul-sul (BRICS, Nova Rota da Seda) criam alternativas às instituições ocidentais. As regras do comércio e da produção deixam de ser universais para se tornarem disputadas geopoliticamente.
O terceiro conceito-chave é o de autonomia estratégica. É a capacidade de um país ou bloco de tomar decisões econômicas, tecnológicas e políticas sem dependência excessiva de terceiros.
Como exemplos temos a UE em busca de autonomia em energia, dados e tecnologia frente aos EUA e China. O Brasil rediscute sua política industrial e energética sob critérios de soberania. A China adota a estratégia de “dupla circulação”, isto é, fortalecer o mercado interno como pilar da resiliência nacional.
Como o grau de abertura externa se insere nisso? Economias com baixa abertura (EUA, Brasil, China, Índia, Japão) possuem escala de mercado interno para implementar políticas industriais sem quebrar acordos internacionais. Têm mais capacidade de relocalizar produção sem desorganizar totalmente sua economia. São capazes de planejar transições estratégicas (tecnológica, energética) com maior margem de manobra.
Economias com alta abertura (Alemanha, França, Coreia) estão mais expostas à instabilidade externa. A relocalização global talvez signifique perda de vantagens comparativas ou cadeias já estabelecidas. Precisam negociar maior autonomia estratégica com menos poder de barganha, caso não se articulem em blocos comerciais e/ou de poder geopolítico e geoeconômico.
Esquema Integrador
Elemento |
Grau de Abertura |
Estratégia dominante |
Vulnerabilidade externa |
Capacidade de autonomia estratégica |
Inserção na multipolaridade |
Papel geopolítico |
Economias Centrais com Baixa Abertura |
Baixo |
Relocalização / consumo interno |
Menor |
Alta |
Competição hegemônica |
Redesenho de esferas de influência |
Economias Exportadoras com Alta Abertura |
Alto |
Defesa de comércio aberto |
Maior |
Condicionada |
Busca por novos pactos multilaterais |
Readequação ou alianças (Sul Global, BRICS) |
A atual disputa pela hegemonia global não se dá apenas pela força militar ou tecnológica, mas também pela capacidade de sustentar o metabolismo econômico de forma soberana. Nesse contexto, reduzir a abertura externa deve ser visto não como protecionismo, mas como condição para autonomia e resiliência.
A multipolaridade só será emancipadora se incluir também modelos alternativos de desenvolvimento, e não apenas novos centros capazes de replicar a lógica extrativista e dependente.
*Fernando Nogueira da Costa é professor Titular do Instituto de Economia da UNICAMP. Ex vice-presidente da Caixa Econômica Federal (2003-2007). Obras (Quase) Completas em livros digitais para download gratuito em: https://fernandonogueiracosta.wordpress.com/.
Foto de capa: Reprodução
Uma resposta
Excelente artigo. Parabéns! Tenho aprendido muito com os artigos aqui publicados.