Por FABIANO ENGELMANN*
A esperança de que o julgamento da tentativa de golpe contribua com um passo adiante para o enterro de mais um ciclo de aventuras autoritárias não pode nos fazer perder de vista os riscos para a democracia de ficar refém do hiper-protagonsimo político do Judiciário. O incremento dos processos de criminalização da política inaugurados nacionalmente no início da década de 2000 com o midiático julgamento do mensalão no STF e os jogos político-judiciais que cercaram a Operação Lava Jato contribuíram significativamente para reascender e atualizar movimentos e culturas anti-políticas ancoradas no reacionarismo. O núcleo mais ativo de combate ao ressurgimento autoritário desaguou novamente nos processos judiciais e no repetido chavão juridista da moralização das práticas políticas em nome de princípios abstratos. Nas disputas de sentido sobre o julgamento de Bolsonaro escapar desse circuito representa um desafio intricado para as forças democráticas.
A controversa e imprecisa noção de “judicialização da política” aparece com mais força na ciência política, desde a segunda metade do século 20 para tentar explicar o crescimento da importância do Judiciário no sistema político. Nesse quadro, o protagonismo judicial em regimes democráticos é incontornável, intrínseco ao “respeito à Constituição”. Antes de significar uma “distorção” do sistema político, o protagonismo firmou, também, um poder contramajoiritário de garantia de direitos contra poderes arbitrários. Entretanto, na prática, ou “nas práticas”; essa tendência de jurisdicização da vida política se articula com a trajetória histórica de cada país e, no Brasil assumiu seu contorno próprio. A aposta internacional dos setores da extrema direita na desqualificação das instituições, da imprensa, do mundo acadêmico, dos movimentos sociais progressistas; alinhou-se, no Brasil, à tradição autoritária da intervenção militar para “arrumar a casa” e, em algum medida, trouxe de volta, como efeito colateral, versões do bacharelismo como guardião da razão. O problema não é a “judicialização da política”, é o quanto forças democráticas podem depender dela.
A simbologia da “supremacia da Constituição” construída nos embates políticos pós-regime militar se estendeu para além do potencial de “mudança social” que a luta pela efetivação de direitos sociais e as “promessas da Constituinte” afirmaram. Ao longo das décadas de 90 e 2000, as recomposições e realinhamentos políticos de diversas categorias de profissionais do direito se entrelaçam com os avanços e recuos do ativismo na jurisdição constitucional. O que aparece como invariável nessa dinâmica é o crescente enredamento da política na forma jurídica e, o efeito colateral que merece atenção é a maior captura do sistema jurisdicional por embates políticos mais radicalizados.
Nessa trajetória mais ampla, o julgamento das práticas golpistas em curso no STF traz alertas para as forças democráticas. A ideia de restaurar a ordem “quase-rompida” criminalizando os golpistas não pode ignorar o efeito bumerangue presente na gestação de propostas estruturais de impeachment de ministros do STF, reformas do sistema de justiça açodadas ou, mesmo, em um enfraquecimento de direitos e garantias contramajoritárias de forma generalizada incluído aí as prerrogativas dos próprios togados. Isso sem considerar efeitos de reações mais conjunturais com a aprovação, ainda no curso do julgamento; de propostas de anistia irrestritas que resultem em fortalecimento simbólico e político dos setores e práticas em julgamento. A ideia de perder no julgamento e ganhar na política precisa ser combatida. A esperança de um passo adiante em direção à consolidação democrática pode depender pouco do STF.
*Fabiano Engelmann é Professor Titular de Ciência Politica, Universidade Federal do Rio Grande do Sul -UFRGS e Bolsista de Produtividade em Pesquisa- CNPq.
Foto de capa: © Fabio Rodrigues-Pozzebom/ Agência Brasil




