Dick Vigarista e a Fórmula 1

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De SOLON SALDANHA*

A maioria de nós deve ter visto, pelo menos uma vez, o desenho animado Corrida Maluca, na televisão. Em cada episódio havia uma competição entre “carros temáticos”, de personagens fixos que ao final se revezavam na obtenção da vitória. A gente nunca sabia qual deles iria vencer, mas sabia de um que jamais conseguiria: Dick Vigarista. Mesmo sendo aparentemente um bom piloto, pois como parava no caminho para preparar armadilhas para os demais, se pode supor que na maior parte das vezes estivesse inclusive na liderança. Mas ele sempre se dava mal e se tornava vítima das suas próprias armações.

Na vida real, temos em nosso país um piloto – na verdade um ex-piloto há muitos anos – que, mesmo com uma carreira vitoriosa, possui várias das características do personagem citado no parágrafo anterior. Falo de Nelson Piquet e sua personalidade difícil, sempre agressivo ao ponto de ser corriqueiramente grosseiro e deselegante. Convencido e arrogante, ele acumulou ao longo da trajetória muito mais desafetos e polêmicas do que poles e conquistas.

Depois de ter obtido três títulos mundiais, em 1981, 1983 e 1987, ele viu chegar à Fórmula 1 um outro piloto brasileiro, com muito maior talento e carisma. Ayrton Senna venceu em 1988, 1990 e 1991, tendo passado a sofrer perseguição por causa disso. O veterano não suportava a ideia de estar sendo substituído na preferência dos fãs. De tal forma que não teve como esconder a sua felicidade quando uma manobra de bastidores tirou o título do Senna em 1989 – ele teria sido tetracampeão antes de sua morte trágica. Outro recurso que era usado por Piquet sem constrangimento algum era questionar a masculinidade do adversário. Mas fazia de tudo para agredir até mesmo seu companheiro na equipe Williams em 1986 e 1987, Nigel Mansell, a quem chamava de “idiota veloz” e acusava de “gostar apenas de mulher feia”.

Entrevistas com asneiras são tantas que não vale a pena reproduzir aqui. Boa parte é localizada na internet sem maiores esforços. Entretanto, outras histórias ainda podem ser lembradas. Quando deu um soco no piloto chileno Eliseo Salazar, por exemplo, em um GP da Alemanha. Ou, pior ainda, quando acabou desclassificado depois de vencer o GP do Brasil, em 1982, quando descobriram que ele equipara seu carro com um tanque de água, para burlar a pesagem oficial, indo após esvaziando o conteúdo aos poucos durante a corrida.

Depois que largou as pistas, Nelson Piquet – que não compareceu ao sepultamento de Senna – tentou a sorte com uma rede de lojas de pneus. Não deu certo e ele vendeu. Abriu uma revenda da BMW, que também passou adiante. Outra vez no esporte sobre rodas, buscou criar uma nova categoria, sem repercussão. Depois, se desentendeu com a Confederação Brasileira de Automobilismo e achou que poderia fundar uma entidade paralela, a Liga Independente de Automobilismo. Não teve aceitação mínima. O que ele ainda possui é uma empresa de monitoramento de caminhões de carga, mas não se sabe se sozinho ou com algum sócio.

Em meados dos anos 2000 passou a gerenciar a carreira do filho Nelson Ângelo Piquet, que também como o pai chegou à Fórmula 1. Mas a família se envolveu num dos maiores escândalos de toda a história da categoria, quando Nelsinho bateu propositalmente o seu carro, no GP de Singapura, para facilitar a vida de seu companheiro de equipe, Fernando Alonso, na Renault. Na época o reabastecimento era obrigatório e Alonso fez isso antes dos demais – e antes do “acidente”, lógico –, que ficaram depois prejudicados com a entrada do safety car. Quem saiu perdendo ainda mais foi Felipe Massa, que até então liderava com folga e perdeu dois minutos e a prova. Estes pontos tiraram dele o título de campeão, mais adiante.

No dia 7 de setembro de 2021, data comemorativa da Independência do Brasil e oportunidade na qual Jair Bolsonaro ameaçava dar um golpe, apoiado por militares, Piquet dirigiu o Rolls-Royce que conduziu o então presidente e sua esposa para a cerimônia. Não se arriscou a conduzir nenhum dos tanques fumacentos que desfilaram na ocasião. E em 2 de novembro de 2022, indignado com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva nas eleições presidenciais, alcançando a maior votação já obtida por um candidato na história do Brasil, ele se associou ao movimento golpista e pediu, com todas as letras, que Lula fosse conduzido não para o Palácio do Planalto, mas para um cemitério.

Convém acrescentar aqui que a empresa de Piquet, citada parágrafos acima, tinha um contrato assinado sem licitação com o Ministério da Agricultura, ainda em 2019. E que em agosto do ano passado este recebeu um aditivo de R$ 6,6 milhões, apesar de existir uma dívida de impostos não quitados. Logo após, o ex-piloto fez uma doação de R$ 501 mil para a campanha à reeleição de Jair Bolsonaro, o que o transformou no maior doador pessoa física, na ocasião.

Dias atrás Piquet voltou a ser assunto na imprensa por dois motivos. O primeiro deles é que foi condenado pela Justiça a indenizar o piloto inglês Lewis Hamilton, devido a manifestações racistas feitas contra ele em vídeo de 2021, que teve enorme repercussão nas redes sociais. Terá que tirar do seu bolso uma quantia próxima de R$ 5 milhões. O segundo é que foi descoberto que objetos caros e públicos que Bolsonaro levou consigo indevidamente, ao se retirar da presidência da República, foram “guardados” em uma fazenda que é propriedade do ex-piloto, em Brasília. Várias caixas fechadas foram enviadas para este endereço às 9 horas da manhã da terça-feira, 20 de dezembro de 2022.

Voltando à Corrida Maluca, com certeza Piquet jamais aceitaria uma comparação com Dick Vigarista. Ele se imaginaria no carro 9, pilotado por Peter Perfeito, um galã que se considerava irresistível. Mas, se a proximidade ideológica fosse razão de escolha, talvez ele gostasse muito do carro 10, de Rufus Lenhador, chegado a um desmatamento básico; do número 6, uma mistura de tanque do Exército com jipe, cujo piloto era o Soldado Meekley, que obedecia ordens do Sargento Bombarda; ou ainda o carro 7, pertencente à Quadrilha de Morte.


bônus musical do autor é Formula 1 Theme, com o compositor, maestro, arranjador e produtor norte-americano Brian Theodore Tyler. Ele é mundialmente conhecido pela qualidade de trilhas sonoras que compôs para filmes, programas de televisão e videogames. Esta apresentação ocorreu no Royal Festival Hall, com a Philharmonia Orchestra of London (que foi fundada em 1945), sendo uma homenagem a Lewis Hamilton.


*Jornalista e blogueiro. Apresentador do programa Espaço Plural – Debates e Entrevistas, da RED.

Texto publicado originalmente no Blog Virtualidades.

Ilustração de Miguel Paiva.

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