Dez Mandamentos para Viver (e Sobreviver) em Condomínios

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Por JORGE BARCELLOS*

“A lógica do condomínio baseia-se na administração do descontentamento. Ela funciona pela indução de uma espécie de descrença calculada das formas de racionalização da vida. Aprendemos com a experiência neurótica que o passo seguinte à montagem de uma fantasia de tal expressão é o estranho sentimento de servidão que nos acorrenta à repetição de uma mesma rotina fantasmática”.  A Lógica do Condomínio ou: o Síndico e seus Descontentes, de  Christian Dunker.

O leitor de RED sabe, graças a meu último ensaio, que estava na minha casa da praia em reformas. Sabe também que, em Porto Alegre, há um prédio ao lado do meu sendo construído. E sabe também, se for um leitor atento, que passo meus perrengues de aposentado por ser condômino. Pois não é que eu voltei para a capital e descobri que, enquanto estive fora, e sem ser avisado, meu vizinho do apartamento de baixo instalou o condensador de seu ar-condicionado na parede de meu apartamento? Quem vive numa cidade capitalista individualista não tem um minuto de paz. E mais: viver em condomínios não é para amadores! Quando vi o aparelho, primeiro veio a raiva. Afinal, meu vizinho tem meu telefone. Ele podia ter ligado e pedido. Era o que no passado era chamado de respeito, que irá, certamente, ser objeto de rememoração quando no futuro as escolas levarem seus alunos ao Museu dos Valores Esquecidos.

Eu olhei o condensador e sabia que precisava respirar e pensar racionalmente sobre o acontecido, mas só posso fazer isso escrevendo. Por isso parto de sua ação não para desabafar ou criticá-lo, pois ele teve suas razões “O muro do prédio vizinho estava subindo, não vi onde estalaram”, e por aí a fora. Mas, parafraseando O Pequeno Principe, “você é responsável por onde instala seu condensador”. Por isso apenas uso seu exemplo como ponto de partida para expor minha visão particular da vida em condomínio. É disso que se trata aqui, uma espécie de sociologia da vida cotidiana em apartamentos. Entendo que posso falar disso porque vivi minha vida inteira em apartamentos, daí que a casa de praia é a fuga desse universo enlouquecedor urbano que construímos com cimento, como descrevo em meu último ensaio.  Entro na internet e descubro que o tema deste ensaio já foi explorado por Cecil Weiss em seu Manual de sobrevivência em condomínio (disponível em https://abre.ai/n0Gh). Se o negócio é a loucura do mundo dos apartamentos, não estou sozinho. Logo na introdução eu já me identifico com o autor quando diz “Morar em condomínio, no papel, parece o auge da civilização: portões automáticos, regras definidas, assembleias democráticas, um síndico eleito pelo povo. Quase um microcosmo da Suíça – pelo menos até o primeiro sábado de manhã, quando a vizinha do 202 resolve colocar um batidão de funk com grave tão forte que seu armário treme mais que gelatina em dia de terremoto. É ali que a ilusão acaba. E a realidade condominial começa”. É uma obra humorística. Não podia fazer descrição melhor.

É possível ser alguém melhor num condomínio?

Concordo com cada palavra de Weiss. Ele continua sua descrição com argumentos inabaláveis, já que “morar em condomínio é viver numa comunidade que você não escolheu. É dividir parede com quem acredita que está numa casa de campo, que exige que você conte com isolamento acústico de bunker em sua casa, já que “dentro do horário permitido” significa “faça o que quiser, como quiser, e se o vizinho reclamar, é ele que está errado.”” Por isso escrevo este ensaio também em tom humorístico, mas revelador, para não surtar. Expondo minha modesta realidade vivida no prédio antigo onde moro no bairro Petrópolis como exemplo desse inferno na terra de que falam pensadores como Arthur Schopenhauer. Aliás, tem gente que diz que a terra é o inferno, mas eu digo que os condomínios são sua antessala. Já disse que depois de velho, além de me tornar um pouco ranzinza, como é natural, comecei a rever alguns dos meus valores cristãos. Por exemplo: se Ele é tão bom e misericordioso como as religiões defendem, por que faria do condomínio nosso inferno de tortura completa na terra? Se Ele nos ama e é perfeito, Ele não suportaria nos enviar para condomínios para suportar problemas de relações de vizinhança inimagináveis. Ele nos enviaria para um condomínio para que pudéssemos, com nossos atos, aprender e crescer para ser um ser humano melhor. Poderíamos até ficar nele para sempre, mesmo que nunca crescêssemos espiritualmente. Ficar num condomínio por toda a eternidade: porque essa imagem me assusta mais do que a do Inferno?

Meu condomínio, meu inferno. Claro nem sempre foi assim, mas no meu recente inferno particular, como no de Dante, há diversos círculos. No meu quinto inferno, o da ira, estão as discussões triviais sobre vazamentos, e agora, ar-condicionado. Parei de contar. Como tantos outros, o condomínio é um mundo monolingüístico: “bom dia” e “boa tarde” são tudo o que se diz. Penso no condomínio como essa espécie de prisão, um tipo de programa de reabilitação de nossas almas, onde os problemas diários são para aprendemos a superar ou não os aspectos mais sombrios de nossas subjetividades para ascender a um nível espiritual em que possamos levar vidas de maneira mais respeitável.

Se somos um produto da reencarnação, como diz a visão espírita, reencarnar em um prédio de apartamentos antigo em Porto Alegre só pode ser como reencarnar em um inferno ou prisão. É como aquele efeito looping em que sua alma está condenada a repetir sua existência num plano que você não controla, como o da série coreana Moebius. Como o detetive do Departamento de Polícia da cidade de Hua’ao, interpretado por Bai Jingting, famoso por resolver todos os casos que aparecem, estou no meu prédio há mais de vinte anos tentando resolver problemas cotidianos. Aqui amei, vivi, e criei meu filho; é o lugar que escolhi para viver meus inconvenientes e falhas, ser um ser humano imperfeito. Exatamente como você. Há muitas obras para mães de primeira viagem, mas não há para condôminos de primeira. Você começa sua vida de apartamento sem manual de instruções. Por isso, enumerar mandamentos de sobrevivência em um condomínio é urgente, e mesmo eu sendo uma das pessoas que conheço com alguma qualificação para entender esse mundo globalizado individualista em que vivemos, sempre sou surpreendido pelo microcosmo particular que é um prédio de apartamentos. Volto a pensar em termos religiosos: que punição melhor Ele nos daria do que esta? Não nos colocar num mundo ameaçado pela catástrofe climática, por enchentes ou inundações? Não, isso é pequeno demais, é fácil demais. Mas sim nos colocar num mundo ainda muito pior ameaçado pela própria catástrofe que é o relacionamento entre pessoas confinadas em um prédio. Se Ele quer nos punir por alguma coisa, não precisa nos colocar num planeta onde somos incapazes de controlar as grandes crises climáticas:  basta nos colocar num modesto prédio de apartamentos para nos enlouquecer pelo simples fato de não conseguirmos controlar o que um vizinho faz em nossa parede.

A vida num condomínio

É que num prédio de apartamentos, não há ninguém para culpar além dos próprios condôminos pela produção de seu próprio sofrimento. Por isso punimos a nós mesmos e aos outros, na nova versão sofisticada do inferno que Deus cria com pouco esforço, já que fazemos todo o trabalho por Ele. É só fazer uma retrospectiva: com o passar do tempo, tudo piorou em meu prédio e ao seu redor. O silêncio da rua deu lugar ao barulho dos carros e as vistas cederam espaço aos novos prédios de apartamentos numa espécie de dança macabra imobiliária. O bate-bate estacas dos novos prédios é o pior e já está por todo o lado. O prédio ficou mais velho e como todos, apareceram os problemas da idade. Somos incompetentes para melhorar como pessoa e nunca seremos o bom vizinho que queremos ser ou o que o outro deseja que sejamos.  Os prédios serão sempre esses lugares onde os outros sempre se acham melhores do que nós, ainda que nós já tenhamos atingido a melhor idade. A diferença de gerações produz conflitos não apenas nas famílias, mas também se faz presente nas faixas etárias dos moradores de nossos prédios. O sinal do fim dos tempos não são as chamas do inferno que vemos na realização das festas particulares de uns que ultrapassam o horário noturno ou no silêncio e no olhar que se produz quando passamos por vizinhos com quem já tivemos atritos. Tudo queima a flor da pele: vimos no ensaio anterior que o próprio material de que é feito meu prédio, o concreto-armado, é produto do fogo, como já foi o Inferno e o próprio planeta, cheio de lava. E vimos como ele, por se corroer com a passagem do tempo, é o espelho das relações sociais, que iniciam, por acaso, em nossos prédios. O inferno também evolui e muda de lugar.

Todo um resumo da sociologia das relações entre condôminos poderia ser extraído da série alemã O assassino zen, disponível na Netflix. Eu sou como Björn Diemel (Tom Schilling) e sinto que preciso fazer o mindfulness que o personagem fez para resolver meus problemas. Sua crítica é a todos que vivem na correria do dia a dia, como minha síndica, que repassou o problema do ar condicionado para o próprio autor, que diz que fará a mudança quando puder. Isso é natural e sei porque já vivi assim na correria dos dias e hoje tenho o privilégio de ser aposentado. O que torna todo o seriado muito engraçado é todo o aprendizado de Diemel para tratar seus problemas com calmaria num mundo que o deixa louco. O meu argumento não é novo: sabemos desde Michel Foucault, passando por Franco Berardi, que o modo como nos organizamos em sociedade é enlouquecedor. No seriado, há um personagem que orienta o protagonista nos seus problemas, e que é essencial pois diz a ele como discernir sobre o que deve fazer para superar o que leva os outros a definirem suas prioridades, exatamente como eu, como condômino, me sinto.

Eu tenho de resolver os problemas dos outros, mas os outros não se sentem responsáveis por resolver os problemas que me causam. Há uma infiltração do apartamento de cima para o meu e por aí afora. Meu vizinho de baixo diz que tirará o condensador quando puder. Tudo bem, uma hora será sanado. Nesse mundo, eu tenho prazos, os outros não. No seriado, Joschka Breitner é o professor de atenção plena de Diemel; isto é, é ele que lhe ensina a capacidade de se concentrar em algo para resolver os problemas. Quando estamos na vida de condomínio, é impossível ter atenção: você tem um problema para resolver com um apartamento, mas em seguida surge outro problema com outro; você tem problemas em casa para resolver, mas sua mente está operando no problema anterior e preparando a próxima estratégia para reagir a um terceiro problema; para o psicanalista do filme, é preciso aprender a bloquear tudo o que não tem relação com um objetivo imediato. “Você bloqueia tudo que não tem a ver com o aqui e o agora”, diz. Parar Dunker, o outro psicanalista, o condomínio é outro lugar em que se manifestam os nossos fantasmas. Por isso ele afirma que, frente aos problemas “a respiração é a principal ferramenta da atenção plena,” pois o objetivo é justamente “reduzir a influência das emoções negativas sobre os dois.” Por isso respirei muito quando vi o ar-condicionado.

Respirar para acalmar o espírito

É que a respiração nos ajuda a acalmar a alma e a concentrar em coisas positivas, o que é, é claro, o fundamento da psicologia positiva já criticada por Eva Ilouz e Edgar Cabanas em Happycracia: fabricando cidadãos felizes (Ubu, 2022). É que a felicidade também é o novo produto de consumo da sociedade neoliberal e dar regras para maximizar nosso bem-estar é apenas outra forma de construir um modelo de felicidade pronto para o consumo e auferir lucros. Por isso, pergunta Diemel, “E isso vai mudar os babacas ao meu redor?”, e ele ouve como resposta: “Não, mas você pode mudar a sua reação a esses babacas. Se alguém no trabalho ou na família te enlouquecer, respire.” Rio do contexto e do vocabulário todo quando penso no meu próprio caso.  A primeira reação de Diemel é de dúvida, mas é preciso lembrar que no filme é ele quem cursa um programa de doze semanas, mais ou menos o que eu imagino deveria ser um treinamento para ser morador de um condomínio. Ninguém deveria vir morar em um prédio de apartamentos sem um curso de relacionamento condominial. Inclusive eu. Ele quer que o protagonista aprenda a criar ilhas de tempo no meio das suas relações sociais e eu penso em como criar elas na minha relação com os demais condôminos de meu próprio prédio.

Ao longo do seriado, o professor enumera várias lições. Ele diz que o estresse que causamos a nós mesmos tem origem em uma visão distorcida da liberdade. Para ele, a ideia de que temos da obrigação de estar fazendo algo o tempo todo sempre é errada, pois não é preciso sempre fazer o que não se quer fazer: “Você só é livre quando você não faz o que você não quer. Por isso você respira, isola os problemas e os resolve, cada um por vez.” Mas há algo a mais na ideia de relacionamento que temos com nossos vizinhos. É a ideia da importância de conviver com as diferenças.  Aqui minha tese é que somente vivendo num condomínio você tem a chance de superar a globalização. É o que diz Byung-Chul Han em A Expulsão do Outro (Relógio d’Agua, 2018). Vivemos num condomínio onde há conflitos exatamente porque as pessoas são diferentes. Mas, no mundo em que vivemos, o desejo secreto do capitalismo é exatamente o contrário, que as diferenças sejam superadas em benefício da criação da única identidade possível, a de consumidor, pois, quanto mais as pessoas forem iguais, mais veloz é a circulação do capital, das mercadorias e da informação. Se o capital quer que todos nós nos tornemos consumidores, o caos condominial é sua primeira barreira, pois é o lugar da diferença. A benção de viver num condomínio é que todos nele são obrigados a aprender a como viver com nossas diferenças. 

O que torna o outro fascinante está sendo corroído por outro mal do capitalismo, o individualismo. Num prédio de apartamentos, não somos amigos, somos vizinhos; não somos o lugar de paz, mas o inferno do outro; não somos o diverso, mas o que consome mais do mesmo: temos todos os nossos carros, a nossa TV, e assistimos todos ao mesmo streaming. A globalização está saindo vitoriosa porque conseguiu impregnar o vírus do individualismo na vida condominial. Quantas receitas poderia compartilhar a vizinha que faz bolos, quantas brincadeiras poderia compartilhar o vizinho que brinca com seu cão às 4 horas da manhã, ou eu mesmo, quantos livros poderia compartilhar de minha biblioteca? E quantos atos ainda de solidariedade condominial poderíamos ter, seja auxiliando a vizinha que já está com problemas de memória e que deixa os produtos das suas compras na escada simplesmente porque as esqueceu entre idas e vindas? Ou quantas dicas o ex-sindico poderia compartilhar por seu hábito de ser minucioso com o que faz no dia a dia? Mas falta aqui ainda um personagem para o qual a vida de condomínio é ainda pior: como diz Dunker, a vida no condomínio não é difícil somente para seus moradores, é também difícil para o sindico que os administra.

O grupo de WhatsApp

Agora, há uma novidade na vida condominial: o grupo de WhatsApp. Diz Weiss que o grupo é “o coliseu digital onde debates triviais viram guerras santas, onde síndico vira alvo, e onde a frase ‘alguém mais está ouvindo um barulho estranho’ é o estopim de um conflito diplomático que faria a ONU suar.”  Não poderia ser uma descrição melhor. É notável que, apesar de meu prédio ter um único grupo para todos, eles se multipliquem à medida que novas agendas surjam no condomínio. Meu prédio antigo tem apenas 12 apartamentos, e eu faço parte de ao menos três grupos: o do prédio propriamente dito, o do meu vazamento, e o do conselho do condomínio. Talvez haverá um dia que haja um grupo para cada apartamento, e aí o grupo de WhatsApp perderá seu sentido. Essa prática diz que nós, condôminos, já nos transformamos numa espécie do Enxame Digital (Relógio D’Agua, 2015) de que fala Byung-Chul Han: somos agora o enxame condominial, essa massa de condôminos isolados em seus apartamentos, que, como a massa digital social, carece de alma e de um sentimento de nós capaz de seguir, como fala Han, em uma única direção. Eu me lembro do tempo em que nesse grupo se discutia o que plantar no jardim, mas isso já foi substituído pela vertigem das contratações neoliberais de mercado, de empresas próprias para cada função. É por isso que é preciso se perguntar o que desaparece a cada contratação de serviço: o que desaparece são as formas tradicionais de relacionamento dos moradores com seus prédios, substituídas pela intromissão dele, do mercado. A limpeza que cada um fazia de seu próprio chão de porta é substituída pela ação das empresas especializadas, da mesma forma que o cuidado do jardim e a vigilância do olhar de cada janela são substituídos pelas câmeras de televisão. O principal, é claro, é a gestão coletiva ou auto gestão substituída pela contratação de uma imobiliária. “Só se ouve o ruído sem sentido e sem coerência”, diz Han.  Mas se somos incapazes de enfrentar o mercado e o espirito neoliberal que toma conta de nossos próprios prédios, como enfrentaremos o poder que ele estabelece na sociedade?

O tema deste ensaio não é, portanto, os meus problemas com o ar condicionado do vizinho.  De certa forma, seu ar é justamente um dos pontos que vincula este ensaio ao anterior, já que, em Concreto, Anselm Jappe lembra que uma das consequências da insuficiência térmica dos imóveis de concreto armado é exigirem a existência, não apenas de isolantes térmicos, como a lã de vidro, mas principalmente o ar-condicionado, “uma das invenções mais inúteis e nocivas da humanidade, e desconhecida ainda no tempo em que se sabia construir” (p. 91). Todos os prédios os têm, é só olhar pela sua janela. Jappe diz que uma das grandes jogadas do capitalismo, depois de ter transformado a água em mercadoria, é ter transformado também o ar.  Compramos aparelhos de ar condicionado para administrarmos o próprio ar que respiramos e Jappe diz que isso é o esforço do capital para jogar no esquecimento todas as demais técnicas tradicionais que permitem modificar a temperatura do ar “desde as propriedades isolantes das coberturas de palha ou de junco até os canais de água refrescante dentro dos palácios árabes,” diz. Ele cita o Paquistão “onde pedaços de tecido fixados nos tetos canalizam o vento no verão para o interior das casas” (p. 92). Jack Challoner, em 1001 invenções que mudaram o mundo (Sextante, 2014) vai mais longe, lembrando que os antigos romanos “tentavam manter frescas as suas casas no verão bombeando água dos aquedutos por entre as paredes. No sudeste Asiático, as pessoas penduravam feixes de capim molhado sobre as janelas para diminuir a temperatura do interior” (p. 517). Estou novamente com aquele sentimento de culpa: tenho 3 aparelhos de ar condicionado em um apartamento de 2 quartos, além de 2 ventiladores; descubro que o ar condicionado que agradecemos por nos refrescar, em memes no verão, foi invenção das industrias Carrier em 1902 e tinha o objetivo de garantir a umidade do papel nas gráficas americanas. Bastou Carrier descobrir seu potencial para edifícios de escritório, hotéis, hospitais e casas para estar até no Senado e na Casa Branca e se transformar num grande negócio.

Os 10 Mandamentos do Manual de Sobrevivência em condomínios

Por isso reúno aqui alguns mandamos para sobreviver em condomínios. Dão como os biblicos, e os imagine escritos em uma tábua. O primeiro mandamento é: Reflita sobre suas estratégias. John-Paul Flintoff, in Como mudar o mundo (Objetiva, 2012), dedica especial capítulo ao tema. Como não posso mudar o mundo, devo ao menos tentar mudar minha relação com o condomínio. Até agora apresentei um relato pessoal de minha visão sobre a vida de apartamento: os problemas cotidianos, seus personagens, suas experiências comuns. Aqui a experiência pessoal conta, e o olhar também. E cada um tem uma visão.  Cada prédio de nossa cidade tem sua população particular e seus problemas específicos. Há problemas gerais que o meu condomínio começou a enfrentar, como no telhado, e eu mesmo, quando síndico, o da rede elétrica. Outros problemas afetam apenas alguns moradores, como vazamentos. E outros, ainda que representem uma ameaça a todos, como a segurança, são sentidos como se afetassem apenas alguns, e é claro, como salienta Flintoff, há os problemas que estão apenas dentro de nossa cabeça. Acho que, por escrever, tenho muitos deles. Conforme os tipos de problema, há uma estratégia. Não é uma receita pronta, ela apenas diz a você que, num condomínio, é preciso dedicar um tempo e espaço para reflexão. Ainda que nem todos no condomínio partilhem ou sintam os mesmos problemas, ele é um grupo de partida importante e é preciso pensar em como agir. Por isso ele é a origem do segundo mandamento.

O segundo mandamento é: Relaciona-te com os outros. Ele é inspirado na obra de Phillipa Perry, Como manter a mente sã (Objetiva, 2012). Estamos enlouquecendo em nossa sociedade exatamente porque cedemos ao individualismo: “pessoas precisam de pessoas”, diz Perry (p. 43). Somos criaturas grupais inclusive no condomínio: o problema é que fazemos mais relações de amizade com alguns vizinhos do que com outros; conseguimos escapar ao bom-dia, boa-tarde, e boa-noite no corredor mais com uns do que com outros. Só podemos nos abrir com os outros com o diálogo. Mas não podemos fechar a porta, inclusive com aqueles para quem torcemos o nariz. Um dia você pode precisar dele e vice-versa – é a política condominial. Ela afirma também que é necessário um pouco de proximidade nos relacionamentos: o que ela denomina de “mentalização” é, para mim, empatia. Confesso que tenho mais empatia por uns condôminos do que por outros, e a definição segue para todos. Mesmo num prédio antigo, os condôminos mudam: apartamentos tem novos proprietários, relacionamentos antigos sobrevivem e novos são incorporados ou não. Um proprietário novo pode ter antipatia ou simpatia por um velho, mas o que importa é saber que relacionar-se com os outros não é apenas uma questão de relação de amizade, é uma relação de aliados.

O terceiro mandato é: Evita o estresse. Como em qualquer condomínio, só nos reunimos para discutirmos problemas comuns. Por isso o grupo de WhatsApp do condomínio é fonte de estresse permanente. Estabeleça horários. Não se pergunta ou responde coisas na madrugada.  Outra fonte de estresse são as reuniões de condomínio, quando a pauta é, via de regra, aumento da mensalidade ou programa de reformas. Felizmente na maioria das vezes são anuais. Por isso é preciso encontrar uma posição na qual, como condômino, somos capazes de tolerar nossos sentimentos e regular nossa emoção. Talvez apenas um certo nível de estresse seja admissível, um estresse moderado, já que, numa reunião de condomínio, é preciso estar em estado de atenção. O fato de reuniões de condôminos serem feitas em apartamentos diferentes reduz o estresse; especialmente se você tem diferenças com algum morador. A descontração colabora quando há problemas importantes para serem definidos: um investimento grande numa reforma do prédio, por exemplo. É preciso mostrar aos novos moradores que os mais velhos têm muito a ensinar sobre a memória do prédio; talvez os mais novos possam agregar a visão mais contemporânea da solução de conflitos e problemas, mas ainda não foi encontrado o substituto para a faca e o garfo em refeições. Ela é a tradição, que aqui, pesa mais que a modernidade e reduz estresse para quem vive mais o prédio.

Faça alianças e marque posição

O quarto mandamento é: Mantenha relacionamentos fluidos. É inspirado na obra de Oliver James, Como desenvolver saúde emocional (Objetiva, 2015). Se não podemos ser felizes num prédio de apartamentos, ao menos lutemos por manter nossa saúde emocional. Partindo da peça “Entre Quatro Paredes”, de Jean-Paul Sartre, que imortalizou a frase “O inferno são os outros,” quase outra definição de vida condominial, James defende, como Han, o mérito de valorizarmos as diferenças pessoais. É preciso cultivar o hábito de saber ouvir e expor os próprios pontos de vista e argumentar com o objetivo de fazer crescer as relações. No mundo do WhatsApp, da velocidade, da aceleração, o desenvolvimento de argumentos é visto como “coisas de velho” a quem cabe “ser resolutivo”. Nada mais doentio que saber que as novas gerações desprezam o conhecimento em nome da praticidade. É esse desespero dos jovens de pular etapas. Ora, para um velho que está no fim da vida, a pressa teria sentido, mas para o jovem, não. Você não tem escolha: precisa, para ter saúde emocional, valorizar o que acredita, a boa argumentação; preservar relações com quem tem história similar, conversar mais no corredor e menos no grupo de WhatsApp e se não tiver escolha neste último, argumente de novo. As redes sociais trabalham pela redução da distância e ensinam as pessoas a perder o respeito; a argumentação estabelece uma distância e repõe o respeito.  Vencer o isolamento é uma tarefa difícil, não para encontrar aliados para a solução de problemas comuns, mas para construir condições de uma boa saúde emocional.  

O quinto mandamento é: Desconecte-se do Whats do condomínio. Com nosso mundo digital, alguns autores começaram a refletir sobre a urgência de nos desconectarmos. O primeiro foi Jaron Lanier em seus Dez argumentos para você deletar agora suas redes sociais (Objetiva, 2018). Alguns de seus argumentos são completamente válidos num condomínio: é a forma de resistir à insanidade do grupo do prédio; as frases curtas e soltas transformam o que você diz em algo sem sentido, e toda tese que escrever será considerada algo difícil ou algo que “não entendi”; não se consegue fazer política condominial nas redes, algo de corpo presente que depende do contato olho no olho. Mas não sejamos tão radicais assim: Tom Chatfield, em Como viver na era digital (Objetiva, 2012), encontrou um meio termo: é preciso viver alguns momentos conectados e outros não. Ficamos conectados demais às redes de WhatsApp, plugados na colmeia do condomínio de que nos fala Han; adotando alguma distância, seu efeito é proteger-nos para termos nossas ideias e vida, sem a necessidade de responder imediatamente às postagens de nossos vizinhos nas redes. Depois que deixei de atender o telefone para as inúmeras ligações de spam, minha vida mudou. Algo similar acontece quando você se distancia das redes do condomínio.

O sexto mandamento é: Separe os espaços. A inspiração é do Pequeno livro de tradições japonesas (Harper Collins, 2022), de Erin Niimi Longhurst. Esse pequeno livro é um manual de Ikigai oriental (razão de ser), e ainda que o filósofo esloveno Slavoj Žižek argumente que tais manuais nada mais fazem do que adaptar com seus ensinamentos o indivíduo às pressões neoliberais, talvez eu esteja procurando formas de sobreviver às pressões condominiais. Nesse sentido, o capítulo que a autora dedica ao “Lar Japonês” nos ensina que é preciso separar os espaços, o “dentro” e o “fora”. Por isso, o hábito dos orientais de colocar o seu uwabaki, ou sapatos de áreas fechadas, ou de retirar os sapatos antes de entrar em um edifício, ou de se curvar ao visitar um santuário e depois se purificar com água. Seu lar, como sua mente, não é espaço de problemas condominiais, você precisa encontrar uma forma de separar os espaços de conflito.

É possível ser feliz num condomínio?

O sétimo mandamento é: Na dúvida, dê porrada. Tiro o título de um capítulo da obra de Michela Murgia, Instruções para se tornar um fascista” (Ayne, 2019). Ela é outra obra de ironia e provocação para criticar o fascismo cotidiano, pois oferece um espelho para criticar o mundo em que vivemos. Se, como diz a autora, a democracia possui contradições com o individualismo, especialmente pela defesa da não violência, os fascistas o exigem como modo de vida. Somos sempre politicamente corretos, e terminamos sendo vítimas de nossa educação. É claro que a defesa do fascismo é uma ironia da autora, com um discurso que o justifica, mas o que me chama a atenção é que certa dose de violência ou inflexão verbal ainda é necessária para se fazer respeitar. Foi o contrário que eu fiz com meu vizinho: solicitei, pedi e implorei para que fizesse a mudança de seu ar, e o que tive foi um sonoro “faço quando bem entender.” Não é o meu fascismo em estado nascente que me preocupa, mas o fato de que o outro já esteja impregnado dele, com seu discurso autoritário e indiferente à minha presença. Por isso fiz algo contra o politicamente correto: pedi solução à imobiliária. A solução não é minha, é de novo, de Joschka Breitner, o professor de atenção plena de Diemel, que lhe disse que, se não puder resolver um problema, terceirize-o! Foi o que fiz: no mundo politicamente correto, onde até o fato de eu implorar se torna insignificante, é preciso impor autoridade: “na dúvida, dê porrada.”

O oitavo mandato é: Tente ser feliz. É possível? Talvez. Juremir Machado da Silva, em Ser feliz é tudo que se quer (Sulina, 2019), diz que o filosofo antigo Pirro duvidava de tudo. Ele também duvidaria da possibilidade de ser feliz em um prédio de apartamentos, já que sempre, desejar traz problemas e o condomínio é sempre o lugar de sobrepor o desejo de um ao desejo de outro. O meu desejo é unicamente um, o desejo de paz.  Para Epicuro, ser feliz em um condomínio é se sentir bem. Sua lição básica é o comedimento, e mesmo quando me irrito com algum problema, respiro e busco uma solução racional: a minha foi deixar o problema com a imobiliária para resolver. Diz Juremir Machado que “Epicuro era feliz escrevendo e conversando. Ele era filho de um gramático e de uma mágica. Acreditava que cada ser humano podia se controlar e administrar sua vida com prudência e sabedoria. A filosofia ajuda a moderar os apetites e a curar os desejos insanos. A duração insignificante da vida, recomenda parcimônia e humildade”. Não podemos nos absorver demais com problemas condominiais porque a vida é curta.

O nono mandamento é: Melhore a conversa de corredor. Ela vem do pequeno livro de Theodore Zeldin, A conversação (Record, 2001). Ele está preocupado com a conversação em reuniões no local de trabalho; eu com as de corredor. Na prática, são muito semelhantes. “Cabe a cada um de nós decidir que tipo de conversa queremos ter” diz, mas ele quer sugerir algo mais, que se aprendemos a conversar de modo diferente mudamos para melhor o espaço que habitamos, o que inclui, é claro, o condomínio. Não é de admirar que falemos pouco no corredor, e o próprio WhatsApp já se transformou num lugar em que falamos por sílabas e frases curtas, digamos assim. Falamos tão pouco que o “não entendi” virou expressão clássica das conversações ali. Precisamos alimentar nossa criatividade na conversação com os demais condôminos, pois precisamos nos preocupar com o tipo de condômino que queremos ser e como queremos participar das discussões. Eu sou como o renascentista citado por Zeldin, diante de um problema eu preciso estudar todas as disciplinas, inclusive a engenharia, para entender o prédio que habito como um todo, e não apenas para ter a visão de meu apartamento. Isso começa quando rompemos a estrutura da vida cotidiana: a vizinha que deixa flores para doação na entrada do prédio, ou a outra que oferece limões de seu sítio para quem quiser, ou um terceiro que ajuda outro fornecendo gentilezas ou lembranças: isto também é uma espécie de “conversa”, pois somos capazes de nos colocar na pele de outra pessoa.

Concluo com o décimo mandamento, que é exatamente esse: Busque o equilíbrio. Ele é o mais difícil, e por isso encerra as lições de Weiss. Nada há nestes mandamentos muito diferente de uma autoajuda qualquer, a novidade é aplicar a um lugar especial: o condomínio. Como diz Weiss: “Morar em condomínio é isso: um eterno equilíbrio entre o direito de cada um e a paciência coletiva. Um lugar onde a porta da frente separa o seu mundo do mundo dos outros, mas as paredes finas garantem que você continue ouvindo tudo. Seja bem-vindo ao mundo onde a guerra é fria, o café é amargo, e a paz depende de fones de ouvido, senso de comunidade e, principalmente, da boa vontade de não ser um chato, ou de ser, mas com argumentos afiados e respostas salvas no bloco de notas. Morar em condomínio é um eterno reality show sem prêmio final. É um big brother sem câmeras – ou pelo menos sem câmeras oficiais, porque sempre tem aquele vizinho que vê tudo, ouve tudo, e comenta com mais detalhes.” E sempre tem um chato que escreve sobre isso.


Publicado originalmente Sler.

*Jorge Barcellos é graduado em História (IFCH/UFRGS) com Mestrado e Doutorado em Educação (PPGEDU/UFRGS). Entre 1997 e 2022 desenvolveu o projeto Educação para Cidadania da Câmara Municipal. É autor de 21  livros disponibilizados gratuitamente em seu site jorgebarcellos.pro.br. Servidor público aposentado, presta serviços de consultoria editorial e ação educativa para escolas e instituições. É casado com a socióloga Denise Barcellos e tem um filho, o advogado Eduardo Machado. http://lattes.cnpq.br/5729306431041524

Foto de capa: Divulgação

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