Por BENEDITO TADEU CÉSARA*
Defesas de Bolsonaro e Heleno se contradizem no STF: negação total de um, admissão parcial de outro
No centro do julgamento da tentativa de golpe de Estado que marcou a transição presidencial de 2022 para 2023, as defesas de Jair Bolsonaro e Augusto Heleno, apresentadas ao Supremo Tribunal Federal (STF), revelam uma contradição estratégica que expõe fissuras entre dois dos principais personagens do núcleo político-militar do bolsonarismo.
Enquanto o ex-presidente nega de forma categórica qualquer envolvimento com a conspiração golpista, o general da reserva — que chefiou o Gabinete de Segurança Institucional — reconhece que o plano existiu, mas afirma ter tido um papel “periférico”. O contraste entre as versões não apenas levanta dúvidas sobre a coerência das estratégias de defesa, como fragiliza os argumentos apresentados por ambos diante das provas já conhecidas.
Bolsonaro: a negação que reconhece
A defesa de Jair Bolsonaro, entregue ao STF no dia 13 de agosto, reitera a linha adotada desde o início da investigação: negação absoluta das acusações. Segundo seus advogados, não há provas de que ele tenha integrado qualquer organização criminosa ou participado de uma trama para impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva. Os documentos encontrados, incluindo a chamada “minuta do golpe”, são classificados como apócrifos. E o delator Mauro Cid, ex-ajudante de ordens da Presidência, é descrito como alguém sem credibilidade.
“O ex-presidente jamais praticou qualquer ato que se amolde a crimes imputados na denúncia. Pelo contrário, evitou confrontos, assegurou uma transição pacífica e respeitou a Constituição”, afirma a defesa.
No entanto, o próprio depoimento de Bolsonaro ao STF enfraquece a tese de inocência absoluta. Ele admitiu ter discutido com comandantes militares, em dezembro de 2022, a elaboração de uma minuta que previa medidas excepcionais — incluindo questionamento da eleição e possível intervenção no Tribunal Superior Eleitoral. Disse que a minuta “foi projetada de forma rápida”, mas que não a redigiu nem assinou. Ainda assim, reconheceu: “Discutimos possibilidades dentro da Constituição”.
Ao afirmar que as “possibilidades” foram discutidas, Bolsonaro admite que havia ao menos o esboço de uma alternativa institucional fora do curso democrático — o que contradiz a tese de que nunca houve conspiração. A própria referência à minuta, já identificada como proposta golpista pela PF, coloca Bolsonaro numa posição ambígua: nega o golpe, mas confirma a sua gestação.
Heleno: reconhecimento seletivo e pedido de clemência
A defesa de Augusto Heleno adotou outro caminho. Em vez de negar a existência de um plano, os advogados afirmam que, se houve participação, ela foi “acessória e periférica”. Tentam dissociar o general de qualquer papel de liderança ou comando e sustentam que ele não redigiu documentos, não coordenou ações e não participou de decisões estratégicas.
Essa narrativa busca afastá-lo do núcleo duro da articulação golpista, mesmo diante das evidências encontradas em sua residência, como a caderneta com anotações sobre “Lula preso” e “ação militar”, além da gravação em que ele afirma que era necessário “virar a mesa”.
Questionado sobre essas declarações, Heleno alegou que foram “expressões mal interpretadas” e que, após a confirmação da vitória de Lula, aceitou o resultado: “Não havia outra solução”, afirmou.
Diferentemente da linha adotada por Bolsonaro, a estratégia do general parte de uma tentativa de amenizar os efeitos de uma eventual condenação — e não de negá-la por completo. Ao reconhecer a existência do plano, mesmo que de forma sutil, Heleno busca preservar sua imagem e, ao mesmo tempo, evitar penas mais severas.
Estratégias em choque
As duas defesas colidem em pontos centrais. Se Heleno reconhece que havia um plano golpista, ainda que com participação lateral, a tese de que tudo não passou de uma invenção da oposição — como alega Bolsonaro — perde força. Por outro lado, a negação absoluta de Bolsonaro compromete a credibilidade da narrativa de Heleno, sugerindo que ambos não compartilham da mesma versão dos fatos.
Especialistas ouvidos pela imprensa indicam que esse descompasso pode enfraquecer ambas as defesas. A tentativa de Bolsonaro de se desvencilhar por completo das articulações é confrontada não apenas por provas documentais e delações, mas também pelas declarações do próprio Heleno — e por trechos de seu próprio depoimento. Já a estratégia de Heleno pode ser interpretada como uma tentativa de cooperação tardia, com peso reduzido no julgamento.
Justiça e história
O julgamento do STF vai além da análise jurídica das condutas individuais. Está em jogo a responsabilização de uma tentativa concreta de ruptura democrática, articulada desde o interior do próprio Estado. O contraste entre as versões apresentadas por dois dos principais nomes do governo Bolsonaro revela não apenas estratégias distintas, mas também a dificuldade de sustentar uma narrativa comum diante das evidências acumuladas.
Enquanto um insiste na negação até o fim, o outro reconhece, de forma contida, que o plano existiu — e que estava, mesmo que nas bordas, dentro dele. O STF terá de julgar com base nas provas. A história, no entanto, já começa a registrar as contradições.
*Benedito Tadeu César é cientista político e professor aposentado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Especialista em democracia, poder e soberania, integra a Coordenação do Comitê em Defesa da Democracia e do Estado Democrático de Direito e é diretor da RED.
Foto da capa: Jair Bolsonaro e Augusto Heleno – Sergio Lima/Reprodução.
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