De LUIZ RENI MARQUES*
As comoventes imagens de crianças enroladas em bandeiras da Palestina em meio aos escombros causados pelos ataques aéreos à faixa de Gaza que correm o mundo divulgadas pelos mais diversos meios de comunicação puxaram a ponta do véu que cobre esse histórico e, aparentemente, insolúvel conflito árabe-israelense em uma área menor que a do estado de Sergipe. O confronto atual, deflagrado no dia 7 de outubro, deixou até agora mais de 9 mil mortos e 25 mil feridos e um rastro de destruição que colocou abaixo prédios comerciais e residenciais, escolas e hospitais.
Às perdas humanas, somam-se os prejuízos econômicos que envolvem as restrições para o comércio internacional e as dificuldades logísticas para escoar os produtos, com o risco às embarcações que cruzam as águas do Mar Mediterrâneo transportando manufaturados, cereais, minerais, gás e petróleo, que passam a ter custos elevados provocados pela insegurança, como os de seguro, que acabam pesando no bolso dos consumidores de todo o planeta.
O ponto de partida para os choques entre palestinos e israelenses na era contemporânea é marcado pela Declaração Balfour, assinada pelo secretário de Assuntos Estrangeiros do Reino Unido, Arthur Balfour, em 1917, penúltimo ano da 1ª Guerra Mundial, atendendo o banqueiro Lionel Rothchild, que pediu o apoio do Reino Unido à formação de um estado judeu na Palestina, em troca de financiamento para a coroa britânica ressarcir seus gastos nos campos de batalha. O término do conflito no ano seguinte, com a derrota e dissolução do Império Otomano, que controlava praticamente todo o Oriente Médio, levou a recém-criada Liga das Nações a dividir parte da região em dois mandatos, um britânico, que abrangia a área atual de Israel, Palestina e Jordânia e o outro, francês, que correspondia aos territórios que hoje são o Líbano e a Síria. A promessa, chancelada na Downing Street, escritório e residência do 1º ministro britânico, em Londres, exigia que quando fossem instalados, os dois países soberanos respeitariam os direitos dos cidadãos de outras etnias e religiões. E que Jerusalém fosse uma cidade de território internacional.
A partir do acordo de Londres levas de judeus, especialmente da Europa, passaram a se estabelecer na Palestina em um movimento incessante até 1948 quando a ONU (Organização das Nações Unidas), fundada após a 2ª Guerra Mundial, em uma assembleia geral presidida pelo diplomata brasileiro Oswaldo Aranha, decidiu pela criação de dois países nos 20 mil km2 do território, atribuindo 53% aos 700 mil judeus para formar o Estado de Israel e os 47% restantes aos 1,4 milhão de palestinos, que não concordaram com a forma da partilha, o que culminou com o primeiro embate entre as duas partes no mesmo ano da divisão. Desde então os confrontos se sucederam, sem solução. Atualmente, Israel ocupa mais de 70% da área total e os palestinos vivem na Cisjordânia, administrada pela ANP (Autoridade Nacional Palestina, inimiga do Hamas) e que engloba Jerusalém Oriental, a outra parte é governada pelos israelenses, e em Gaza, uma estreita faixa litorânea de 345 km2, controlada pelo grupo Hamas, que está em guerra com Israel.
Os argumentos que levaram à partilha da Palestina e a formação dos dois estados deixo para os analistas políticos avaliarem e vou examinar as questões relativas à logística e ao comércio exterior. A Guerra Rússia/Ucrânia, que se arrasta há mais de 20 meses e, segundo cálculos publicados no New York Times, causou quase 200 mil mortes até agora, e não apont para uma solução à vista, também provocou danos à logística e aos negócios internacionais, afetando à circulação de cereais, minérios e manufaturados e até dinheiro de companhias russas, bloqueado em alguns países. O conflito entre Israel e o Hamas tem dimensão econômica, em um primeiro momento, mais modesta.
Contudo, sua importância geopolítica é grande. O Mediterrâneo, já conturbado pelo confronto no Leste Europeu, ganhou um novo desafio com os riscos à navegação decorrentes do novo conflito. O presidente Joe Biden ordenou o envio de um porta-aviões, quatro destroieres, um cruzador de mísseis e vários caças da Marinha norte-americana, que estão ancorados próximo da costa israelense, deixando apreensivos políticos e empresários de diversos países que temem uma escalada da guerra, com o ingresso direto ou indireto de potencias globais, com consequências imprevisíveis.
Ao contrário dos confrontos anteriores entre Israel, palestinos e eventualmente seus vizinhos, também árabes, nesse não se repetiu a simpatia e o apoio ocidental incondicional a Israel. A repercussão na mídia e junto à opinião pública internacional, recebeu uma cobertura mais neutra e imparcial, equilibrada em relação aos dois lados. A condenação ao ataque do Hamas a alvos israelenses veio acompanhada de críticas à represália do governo ultradireitista do 1º ministro Benjamin Netanyahu, que estava sob bombardeio do eleitorado e da justiça do seu país, acusado de corrupção, fraude e abuso de confiança. Uma visão mais isenta foi adotada desde o início do conflito em redes como a britânica BBC. O governo dos Estados Unidos, que inicialmente se manifestou integralmente a favor de Israel, gradativamente reduziu a ênfase desse apoio, provavelmente constrangido pela repercussão dos ataques indiscriminados e desproporcionais à Palestina nos seus principais veículos de comunicação como o The New York Times. A exceção são o Brasil e alguns outros países onde ainda prevalece uma cobertura baseada majoritariamente em fontes israelenses.
A ameaça de Israel de invadir e destruir Gaza na caça a integrantes do Hamas pode transformar o conflito no Oriente Médio em um atoleiro difícil de sair, e menos ainda de ter um vencedor. Ou seja, uma guerra longa e imprevisível, que, respingaria em todo o mundo, incluindo o Brasil. O comércio exterior entre nosso país, Israel e a Palestina representa traço na balança comercial. Mas, os vizinhos que formam a Liga Árabe e reúne 22 países localizados na Península Arábica e Norte da África, quase todos apoiadores da causa palestina, são parceiros relevantes. No ano passado, as exportações brasileiras para Israel somaram US$ 600 milhões (e vêm caindo ano a ano) e as importações US$ 1,6 bilhão, os volumes para a Palestina foram ainda mais modestos. Enquanto isso as transações com os Emirados Árabes Unidos, Qatar, Egito, Arábia Saudita e outros membros da comunidade árabe alcançaram US$ 17,7 bilhões e cresceram 23% no mesmo período e as importações atingiram US$ 6,9 bilhões, deixando um enorme superávit para o Brasil.
A pauta de produtos vendidos a Israel é composta basicamente de carne bovina, minério de ferro, café, açúcar, cacau, celulose e derivados de petróleo. As importações apresentam valores mais expressivos e incluem produtos farmacêuticos, componentes de alta tecnologia e segurança, química fina, software e fertilizantes. A posição do Itamaraty, o Ministério de Relações Exteriores, é historicamente a de praticar uma diplomacia pragmática, mantendo neutralidade e, se possível, buscando o papel de mediador nos conflitos internacionais. Essa posição foi abandonada no governo do presidente Jair Bolsonaro, aliado incondicional de Israel e do seu chanceler Netanyahu.
O retorno do presidente Luiz Inácio Lula da Silva ao poder em janeiro, marcou também a retomada da estratégia anterior.
Especialistas apostam na expansão dos negócios entre o Brasil e o mundo árabe. Em 2022, as exportações brasileiras para aqueles países envolveram café, açúcar, aves, minério de ferro, milho, soja, derivados bovinos, carrocerias e outros itens. As importações abrangeram principalmente adubos, óleos combustíveis, alumínio e fertilizantes. As perspectivas, segundo os analistas de comércio exterior, são de que a lista de produtos vendidos para lá nos próximos anos aumente num ritmo superior aos negócios com outros países e blocos econômicos, acompanhando o apetite insaciável dos mercados árabes, que crescem de modo acelerado. A presença de empresários, executivos e técnicos brasileiros na região, estabelecidos em Dubai, Doha, Riad e outras cidades árabes negociando contratos e abrindo novos negócios é cada vez mais visível.
Os grandes fundos de investimento e operadores logísticos árabes há um bom tempo participam de modo pesado na economia da Europa, por meio de parcerias, compra de empresas ou criação de novos empreendimentos. A ponta mais visível desse fenômeno é a chegada deles em clubes de futebol, como o Paris Saint Germain, o PSG, que na temporada passada reuniu no seu elenco três dos mais caros atletas do futebol mundial: o melhor jogador da atualidade, Messi, Neymar e Mbappe, e em estádios como o Emirates, do Arsenal e o Etihad, do Manchester City. Mais ousada é a decisão dos sauditas, que esse ano contrataram para atuar em sua liga de futebol, craques como o citado Neymar, Benzema e o incensado Cristiano Ronaldo.
A América Latina tem recebido vultosos recursos árabes, especialmente destinados a obras de infraestrutura, em países como Peru, Colômbia, Equador e Chile, rivalizando com os investimentos chineses na região. A presença árabe também está se expandindo no Brasil, preferencialmente nos setores logísticos. É o caso da DP World, sediada em Dubai, dona de portos, terminais e operadoras logísticas em praticamente todos os continentes, com filial na cidade de Santos. O sultão Ahmed Bin Sulayen, controlador e CEO da companhia, gosta de acompanhar seus negócios em todo o mundo, já esteve no Brasil e manifestou o desejo de expandir os negócios no país. Fundos de investimento como o Qatar Investment Fund, pertencente à família que governa o minúsculo e riquíssimo emirado, contabilizam, juntos, mais de US$ 20 bilhões aplicados no Brasil. Esse valor pode crescer expressivamente nos próximos anos. O pêndulo do poder econômico global já não pende com tanta força para os Estados Unidos, Europa e Japão. A China e os países árabes deixaram de ser emergentes e se tornaram potencias da economia global. É hora do Brasil, sem abrir mão dos seus valores, soberania e cultura, aproveitar os novos ventos que estão soprando e que podem beneficiar toda a sua população.
Quer saber mais sobre o assunto? O autor explora o tema na segunda edição do programa “Logística na sua Vida”, o novo podcast da RED. Confira:
*Estudou Direito e História. Formado em Jornalismo. Foi repórter em Zero Hora, Jornal do Brasil, o Estado de São Paulo, Folha de São Paulo, Senhor e Isto É, e correspondente free lancer da Reuters, entre outros veículos de comunicação. Redator e editor na Rádio Gaúcha, diretor de redação da Revista Mundo, professor de Redação Jornalística na PUCRS e assessor de imprensa na Câmara dos Deputados durante a Assembleia Nacional Constituinte. Atualmente edita blog independente.
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