Como Ser de Esquerda sem Ser Autoritário: Sugestões de um (maldito?) homem branco, cis, de classe média, corinthiano, gordinho e de óculos

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Por JOSÉ RODRIGO RODRIGUEZ*

Para Lisa Simpson, Mafalda, Charlie Brown, Calvin, Doutor Sócrates e Sócrates

A existência de pessoas singulares não é apenas um fato da natureza, mas também uma construção social.

O surgimento de comportamentos individuais que, por exemplo, são capazes de resistir a coletividades sectárias (de todos os matizes ideológicos), autoritárias (idem), preconceituosas (ibidem), nacionalistas, racistas, sexistas, ou, ainda, comportamentos que produzem obras de arte fora de série e invenções que fazem avançar as fronteiras do saber, também resultam projetos de sociedade.

A originalidade, a coragem individual, a ousadia filosófica e o destemor científico não nascem em árvores. O que está em jogo, em todos esses casos, é uma relação, que precisa ser tensa, entre indivíduo, autoridade e normas estabelecidas.

Alguém muito estudioso e inteligente, provavelmente sua única qualidade, gordinho e de óculos, chamou esse fenômeno de “comportamento crítico”, o comportamento que consiste em estabelecer uma relação reflexiva com as normas que constituem a nossa própria identidade, ou seja, a capacidade de percebe-las como uma construção intersubjetiva que pode ser modificada intersubjetivamente.

Importante dizer que precisamos do comportamento crítico para construir uma sociedade melhor porque, de um lado, sem aprendermos as normas que organizam nossa sociedade seremos incapazes de viver nela; mas, de outro lado, se nos tornarmos adaptados demais a tais normas, nos tornarmos incapazes de transformá-la e avançar no sentido de diminuir o sofrimento social.

Vale lembrar que a tendência de nos conformarmos às normas do grupo é uma herança da evolução humana. Dizem os psicólogos evolutivos que esse é um comportamento que tendemos a reproduzir de forma natural, justamente, porque ele, um dia, favoreceu a sobrevivência das espécies.

Favoreceu o comportamento das espécies e da especie humana enquanto não vivíamos em um mundo simbólico, ou seja enquanto a humanidade ainda não era humana. Hoje em dia, tal o comportamento deve ser tratado como um viés cognitivo, relativamente mal adaptado ao mundo contemporâneo. Explico

No mundo animal, os indivíduos estão em competição entre si e também se organizam em grupos para favorecer a sua sobrevivência. Os estudos de evolução mostram, assim, que há tanto competição entre individuos, quanto colaboração entre eles para formarem grupos, os quais, por sua vez, também competentem entre si.

A evolução humana, portanto, revela tendências colaborativas e competitivas, como já sabia Kropotkin, célebre anarquista e um dos primeiros estudiosos do darwinismo, autor do livro “Ajuda Mútua”. Uma nova edição do seu livro conta com o prefácio de Stephen Jay Gould, biólogo importante e divulgador da ciência, atestando sua atualidade.

No entanto, a colaboração entre grupos está longe de ser um comportamento, digamos assim, natural. Duas guerras mundiais mostram isso com toda a clareza. O mesmo vale para o processo de criação de novas normas, de novos indivíduos singulares, portanto de novas identidades e de novos grupos. A tendência, digamos assim, natural, é de conformação, não de insurreição.

A variação biológica responsável pela adaptação das espécies a um mundo em transformação se dá, digamos assim, automaticamente, por meio de mutações genéricas que vão sendo testadas ao longo do tempo. Mutações genéticas que também são estimuladas pelas transformações do meio.

O problema é que a espécie humana não vive mais no mundo natural, mas em um mundo simbólico no qual a natureza tem um papel que não é mais normativo. Como disse o velho barbudo, vivemos, sob o capitalismo, em sociedade, em uma “segunda natureza”, organizada em função de atos de vontade humana.

Uma natureza para qual as “leis da natureza”, ou seja, as leis da “natureza natural”, não se aplicam diretamente.

O maior mérito do marxismo foi, justamente, construir a ideia de comportamento crítico a partir reflexão sobre a atuação dos trabalhadores os melhores condições de trabalho, uma reflexão que foi capaz de revelar que o capitalismo não é natural, mas sim uma construção humana.

Isso era particularmente importante para explicar a imensa concentração de riqueza na mãos dos proprietários dos meios de produção, fenômeno responsável por jornadas de trabalhos tenuantes em que, inclusive, crianças eram privadas das condições materiais para realizar qualquer tipo de escolha autônoma.

Pois quem trabalha 14 horas, por exemplo, quem permanece 14 horas sob a direção de alguém ou submetido a uma disciplina ditada pelo trabalho, não terá tempo útil durante os seus dias para realizar escolhas simples como o momento em que deseja comer ou fazer carinho em alguém.

É verdade que Marx um dia sonhou que o mundo simbólico também poderia ser movido por leis análogas às leis da natureza. Mas, a meu ver, apesar de em algumas passagens o velho barbudo soar mecanicista, prevalece na obra dele a categoria de “tendência” e não a de “causalidade”. Mas esse é outro assunto.

Diante dessa reflexão, eu fico me perguntando se não estamos caminhando no sentido de naturalizar a nossa vida social quando incentivamos apenas comportamentos de grupo e não comportamentos singulares.

Quando assistimos, tanto a extrema esquerda quanto a extrema direita, trabalharem o tempo todo com estereótipos do adversário/inimigo para, supostamente, reforçar a sua luta, a identidade do seu grupo que, no limite, acaba apenas incentivando a competição entre grupos e não a construção de coalisões pela via da reflexão crítica.

No limite, se não fomos capazes de olhar nos olhos de um extremista político e imaginar que aquele indivíduo possa ser capaz de um comportamento diferente, em algum momento, que ele possa ser capaz de romper com o automatismo do comportamento em grupo e tomar uma atitude singular, o horizonte de emancipação vai se estreitando.

E a identidade dos grupos que já existem tende a se tornar parte da natureza, uma natureza que nasce da falta de imaginação, do truncamento do desejo, da negação da autonomia humana individual.

É claro que essa naturalização é interessante do ponto de vista da política prática. As lideranças de esquerda e de direita querem aumentar o tamanho de seus grupos e não ver a sua identidade em risco. A luta da autoridade, seja ela uma autoridade social ou que ocupe um cargo no Estado, é por aumentar o tamanho do seu rebanho e não necessariamente por diminuir o sofrimento da sociedade como um todo.

Nasce dessa contradição, por exemplo, as inúmeras tensões entre parte do feminismo e teoria queer, entre ativismo feminista e ativismo trans, também a leitura muito tímida e pouco produtiva que uma boa parte do feminismo faz dessa pessoa inteligente que muito contribuiu para a ideia de “comportamento crítico”, Judith Butler.

Aqui eu entro em um terreno um pouco mais pantanoso, ao menos para mim, pois não sou especialista nesse tema, mas arrisco dizer que a contradição entre política prática e comportamento crítico também explica uma série de conflitos que estão ocorrendo em torno das categorias “negro” e “pardo” e a imensa dificuldade de construir, de fato, uma ação política interseccional.

Até porque a ideia de “intersecção” expressa muito mais um cruzamento – como no cruzamento de duas vias que, depois da intersecção, seguem o seu caminho – do que uma real intersubjetividade que exige, e eu serei obrigado a dizer algo que tem conotação sexual, o que, na verdade muito me agrada muito, uma real interpenetração entre subjetividades que tenderão a produzir outras identidades para além ou a par das identidades estabelecidasas.

Historicamente sabemos que essas novas identidades podem existir ao lado das antigas. Não há nenhum problema, por exemplo, em nos sentimos parte de um determinado grupo e também nos sentimos pessoas de direito, ou seja, iguais em direitos.

E o direito não precisa, necessariamente, diluir todas as identidades, como já demonstraram as leis que protegem trabalhadores, mulheres, povos originários, pessoas negras etc. É possível conceber o direito como um espaço de luta em que diversos grupos disputam o conteúdo das normas jurídicas que pode reproduzir ou, até mesmo, contribuir para transformar as identidades sociais em interação.

Há um exemplo prático disso: estatisticamente a população brasileira de indígenas e povos originários em geral cresceu, justamente, porque pessoas que antes não se identificavam como tal passaram a se autodeclarar indígenas ou quilombolas em razão da proteção conferida a essa categoria de pessoas pela Constituição de 1988.

Tal fenômeno está documentado em diversos trabalhos acadêmicos: o formalismo do direito também é capaz de participar da constituição de identidades insurgentes. Abstração das normas também é capaz de fecundar a sociedade de subjetividades instituintes.

Seja como for, eu ando muito preocupado com esses problemas que, para mim, podem ser formulado assim: precisamos proteger a singularidade, a fonte de todo o comportamento crítico. Isso se faz criando oportunidades para que tais singularidades possam se manifestar, ou seja, é preciso construir normas sociais, instituições sociais, que abram espaço para isso, desde a mais tenra infância.

A alternativa é, ao lado, em aliança com a extrema direita, apostar em uma espécie de retorno ao biológico, ao mundo anterior a nossa capacidade de criar símbolos, apostando no fortalecimento das identidades já estabelecidas e dos grupos políticos que já se encontram em pleno funcionamento.

Também no campo da esquerda, a meu ver, agir desta maneira significa trabalhar a favor da autoridade e não da transformação social com o objetivo de diminuir o sofrimento humano. Ou será que tudo que foi escrito aqui não passa da visão equivocada de um maldito homem, branco, CIS, corinthiano, gordinho e de óculos?


*José Rodrigo Rodriguez é Professor da UNISINOS e Pesquisador do CEBRAP.

Foto de capa: IA

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