Clara Charf: cem anos de militância e memória

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Aos cem anos de vida, Clara Charf morreu nesta segunda-feira (3/11), em São Paulo, de causas naturais. Ela estava hospitalizada havia alguns dias e chegou a ser intubada, segundo nota da Associação Mulheres pela Paz, da qual era fundadora e presidenta. Sua morte marca o fim de uma era de resistência que atravessou a ditadura, o exílio, o feminismo e a persistente luta por justiça social — e, ao mesmo tempo, evidencia o desafio da nossa memória coletiva sobre mulheres e homens que fizeram história fora dos holofotes.

Das origens ao engajamento

Clara nasceu em Maceió (AL), em 17 de julho de 1925, filha mais velha de três irmãos, num lar de imigrantes judeus russos que fugiram da perseguição antissemita na Europa. Com a mãe morta precocemente, a família se mudou para Recife, e Clara cedo se viu diante das dificuldades e das contradições sociais. Ainda jovem dominou inglês, aprendeu piano, foi comissária de bordo e, aos 20 anos, já tinha se mudado para o Rio de Janeiro, onde, em 1946, se filiou ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). No ano seguinte, casou-se com Carlos Marighella — militante, guerrilheiro e símbolo da resistência à ditadura militar — passando a se mover junto à história brasileira.

Militância sob opressão, exílio e retorno

Com o golpe de 1964, Clara, como muitos outros, viu seus direitos cassados, enfrentou perseguição e prisão. Após o assassinato de Marighella em 1969, ela foi à clandestinidade e se exilou em Cuba por cerca de dez anos. Com a anistia de 1979, retornou ao Brasil e dedicou-se ao feminismo, aos direitos humanos e à memória histórica — áreas em que foi pioneira. Em 1982, concorreu a uma vaga de deputada estadual pelo Partido dos Trabalhadores (PT), elegendo-se, de fato, porta-voz de uma geração que insistia em transformar o país.

Legado de luta e visibilidade

Clara presidiou a Associação Mulheres pela Paz, que organizou no Brasil o projeto “1000 Mulheres para o Prêmio Nobel da Paz” em 2005. Seu ativismo incluiu a causa feminina, a equidade de gênero, a reparação histórica e a justiça social. Mesmo com saúde fragilizada, ela manteve presença pública e relevância simbólica. Seu percurso atravessa várias frentes: clandestinidade, exílio, retorno, luta pelas mulheres — e, sobretudo, resistência contínua.

Por que sua morte importa

  1. Memória política ignorada: Clara era um dos poucos nomes femininos da história da militância de esquerda que ainda respiravam. Sua partida sublinha a urgência de registrar e valorizar essas trajetórias, antes que se apaguem.
  2. Interseccionalidade que incomoda: Mulher, de origem judaica, militante comunista, viúva de guerrilheiro — sua própria vida é um entrelaçamento de lutas contra o racismo, o machismo, a ditadura e a injustiça social.
  3. O Brasil que ainda não fez as pazes: O Estado brasileiro ainda reluta em reconhecer plenamente a violência da ditadura, ainda menos as vozes femininas que resistiram. Seu falecimento coloca em evidência essa lacuna.

Se há uma Justiça que permanece por fazer, é a de escutar — de verdade — todas as vozes que resistiram. Clara Charf não foi apenas “companheira de Marighella”; foi protagonista de seu próprio destino político. A sociedade que segue em marcha precisa reconhecer que sem mulheres como ela, a memória da democracia fica incompleta. E que a tarefa da justiça histórica não se esgota em desculpas, mas se manifesta em políticas de memória, educação e reparação.

Clara Charf foi uma mulher que habitou os momentos mais difíceis da história brasileira — perseguição, exílio, luta armada, reconstrução — e nunca se afastou da esperança de um Brasil mais justo. Sua morte exige não só homenagem, mas ação: preservar sua história, ensinar suas batalhas, impulsionar sua agenda. Porque se sua voz se silenciar, a nossa missão permanece: lembrar, lutar, transformar.


Imagem destacada: Recorte da TV Cultura

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Uma resposta

  1. Clara Charf, representa, como ninguém no PT, à militância internacionalista, extremamente solidária e ativa
    Sabia, que não há construção possível sem a solidariedade da maioria, que o exemplo dela construa caminhos amplos pela igualdade das mulheres.

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