Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*
A “captura do futuro”, conforme o título do artigo de meu colega do IE-UNICAMP, Eduardo Mairutti, “A captura do futuro? Inteligência artificial e metamorfose da percepção” (Lugar Comum. Rio de Janeiro, n. 70, dezembro de 2024), pode ser entendida como o processo pelo qual a generalização de máquinas perceptivas e sistemas equipados com aprendizado (Inteligência Artificial ou IA) influenciam e moldam nossa percepção e o desenvolvimento do futuro.
A IA, ao se generalizar, não é apenas uma ferramenta externa, mas uma nova combinação entre humanos e máquinas capaz de transformar nossa compreensão de conceitos fundamentais como espaço e tempo, causalidade e determinação. Essa transformação da percepção é central para como o futuro é imaginado e construído.
A generalização da IA tende a reforçar as instituições contemporâneas através do confinamento do futuro em um regime disciplinar preditivo. O futuro está sendo, em certa medida, aprisionado por lógicas preditivas e de controle inerentes a esses sistemas e às instituições perenes.
Mairutti argumenta essas mesmas agências (sistemas de IA) permitirem uma libertação da filosofia autocrática dominante da reflexão sobre a tecnologia e abrirem espaço para uma mudança qualitativa no futuro. Assim, a “captura” não é um processo unidirecional de aprisionamento, mas também um campo de disputa e potencial transformação.
A metáfora da “mente alienígena”, referente à IA, enfatiza a interação com esses sistemas, capazes de combinar humanos, máquinas, instituições e dados, moldar nossa percepção do possível e provável no futuro. Os datasets alimentadores da IA, sendo produtos humanos, refletem e potencialmente perpetuam vieses existentes, influenciando a “captura” do futuro.
A mecanização da razão e a automação da percepção são processos históricos culminantes na IA contemporânea. Contribuem para essa “captura” ao transformar a maneira como percebemos e interagimos com o mundo, incluindo nossas projeções futuras. A forma como a informação é processada e interpretada por máquinas afeta nossa própria capacidade de antecipar e moldar o futuro.
A emergência de um espaço vetorial multidimensional através dessas tecnologias cristaliza nossa percepção e compreensão de objetos e suas relações. Inevitavelmente, influencia a forma como concebemos o futuro e suas possibilidades.
A “captura do futuro”, para Mairutti, envolve a complexa interação entre a generalização da inteligência artificial, a transformação da percepção humana e as dinâmicas de poder institucional. Resulta em uma influência sobre como o futuro é concebido, previsto e potencialmente controlado. Não se trata apenas de prever o futuro, mas de um processo ativo onde a tecnologia e a nossa interação com ela moldam as próprias possibilidades futuras.
Há uma prática comum na previsão econômica. Quando um economista detecta um padrão médio em uma série temporal, ele costuma extrapolar essa tendência para o futuro, sob a hipótese de ausência de mudanças estruturais, ou seja, assume o princípio do ceteris paribus (tudo o mais constante).
Entre as hipóteses implícitas na extrapolação de tendências, há a de persistência das relações observadas. Supõe os padrões passados continuarem no futuro sem alterações significativas nos fundamentos econômicos. Se mantiver a regularidade, o futuro será igual ao passado!
Outra hipótese se refere à ausência de choques exógenos estruturais. Assume não haver mais mudanças bruscas na tecnologia, na política econômica, nos padrões de consumo etc.
Uma terceira hipótese diz respeito à estabilidade estatística. A estrutura da série temporal (média, variância, autocorrelação) permanece inalterada.
Há um sério problema nessa extrapolação simples. O grande risco dessa abordagem é mudanças estruturais poderem ocorrer, tornando as previsões altamente imprecisas.
Por exemplo, súbitas crises financeiras alteram padrões de crescimento econômico. Inovações tecnológicas mudam a produtividade e a demanda por trabalho. Mudanças na política econômica, como reformas tributárias ou políticas monetárias agressivas, modificam trajetórias previamente estáveis.
Daí surgiram alternativas à simples extrapolação. Modelos Estruturais incorporam relações teóricas entre variáveis para capturar mudanças no comportamento dos agentes.
Métodos estatísticos avançados como os Modelos ARIMA, Redes Neurais, Processos de Markov, entre outros, buscam capturar padrões dinâmicos e mudanças não lineares. Análise de regimes alternativos é feita por modelos como o MSVAR (Modelos Vetoriais Autorregressivos com Mudança de Regime) para detectar transições entre diferentes regimes econômicos.
A extrapolação de tendências sob ceteris paribus é útil como recurso teórico, mas uma análise do cenário futuro com base nesse método leva a previsões imprecisas. O uso de abordagens capazes de considerar as mudanças estruturais e modelos mais sofisticados aumenta a probabilidade de acerto das previsões econômicas.
Diante da realidade, um modelo de previsão da evolução futura de O Mercado, se o tratar como um ente sobrenatural ou divino, porque está onipresente, embora não possa ser onisciente e onipotente, ao mesmo tempo, depara-se com essa contradição lógica: se prever determinado cenário, perderá o poder de alterá-lo.
Sem dúvida, há uma contradição lógica ao tratar “O Mercado” como um ente onisciente (capaz de prever o futuro) e onipotente (capaz de alterá-lo). Esse paradoxo é semelhante ao problema filosófico do livre-arbítrio e da predestinação: se um agente anuncia antecipadamente o acontecimento futuro, ele já não tem liberdade para mudar o futuro sem contradizer sua própria previsão.
A contradição na previsão de O Mercado é, se ele é onisciente, já sabe com precisão o que acontecerá. Logo, o futuro já estaria determinado. Isso implicaria ninguém poderia tomar decisões de modo a alterarem esse futuro previsto.
Se O Mercado é onipotente, ele pode intervir e mudar o futuro. Mas se ele muda o futuro, sua previsão original estaria errada. Isso significa, logicamente, ele não era onisciente desde o início!
Essa contradição implica O Mercado não pode ser simultaneamente onisciente e onipotente. Ele pode prever tendências, mas não pode garantir essas previsões serem imutáveis sem perder sua capacidade de influenciar o próprio futuro.
Quais são as implicações dessa carência de onisciência para modelos de previsão econômica?
O investidor George Soros argumenta as expectativas dos agentes influenciarem os próprios fundamentos econômicos, tornando previsões autorrealizáveis ou autodestrutivas. Em sua Teoria da Reflexividade, a metáfora é “o navio arrasta a âncora”, isto é, as cotações determinam os fundamentos…
O economista Frank Knight diferencia risco (mensurável) e incerteza (não mensurável). Certos eventos não podem ser antecipados por nenhum modelo.
Finalmente, há a chamada Crítica de Lucas. Modelos ignoram a reação dos agentes às previsões e falham porque, ao torná-las públicas, os agentes racionais ajustam seu comportamento, alterando o próprio futuro previsto.
Em síntese, O Mercado não pode ser simultaneamente um oráculo perfeito e um agente de mudança absoluto. A economia é um subsistema complexo adaptativo, interativo com outros subsistemas como o político, o social, o psicológico etc., no qual previsões alteram os comportamentos dos agentes, tornando qualquer tentativa de antecipação do futuro sujeita a retroalimentações e ajustes dinâmicos.
A vida dos economistas ao tratar da realidade não é fácil. Mas, se não quisermos ser puramente teóricos ou abstratos, temos de lidar com isso!
*Fernando Nogueira da Costa é professor Titular do Instituto de Economia da UNICAMP. Ex vice-presidente da Caixa Econômica Federal (2003-2007). Obras (Quase) Completas em livros digitais para download gratuito em: https://fernandonogueiracosta.wordpress.com/.
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