De LINCOLN PENNA*
Em homenagem a Hebe Bonafini, líder das “Mães da Plaza de Mayo”.
No dia 21 de novembro de 1985 a Arquidiocese de São Paulo lançou o livro Brasil: Nunca Mais, no qual foram listados 444 torturadores. A Anistia de agosto de 1979, ainda na ditadura, acabaria por integrá-los no decreto que anistiou os que se opuseram ao regime militar e empresarial e, evidentemente, poupo-os de processos de crime de lesa humanidade.
A longa transição que durou dez anos, de 1979 a 1989, portanto desde a primeira lei da Anistia até a eleição direta de presidente da República depois de 29 anos, em momento algum colocou em cheque as atividades promovidas ilegalmente por alguns representantes das Forças Armadas. Ao contrário, os militares interferiram na elaboração da Constituição promulgada em 1988 ao incluírem mediante influência junto a alguns constituintes a redação do artigo 142 de nossa Carta Magna.
Até aí, prevaleceu a conciliação, que em certas ocasiões poderia ser definida como uma tratativa resultante de um consenso mínimo. Dependendo das circunstâncias esses consensos representam articulações necessárias para fazer valer medidas emergenciais ou para evitar rupturas com implicações para o curso da democracia.
Reconquistadas as liberdades democráticas, que acabaram confluindo as demandas represadas, os velhos e novos desafios até então não lograram avanços significativos. O que ocorreu, principalmente nos governos que sucederam a transição foi a adoção de políticas assistencialistas. Com isso, houve um grau não desprezível de aquisição de renda mínima, embora nem sempre suficiente, que retirou da pobreza crônica um conjunto de cidadãos até então marginalizados socialmente.
Quanto aos torturadores anistiados, muitos foram reincorporados ao serviço público, o que simboliza de fato a continuidade de uma comunidade de segurança. Esta logrou alcançar uma autonomia com a única diferença: o comando formal foi delegado aos civis. Os militares, no entanto, permaneceram na posse de um poder de mando manifestado a toda hora que julgam necessário explicitá-lo, e têm nesse contingente oriundo do porão da ditadura um instrumento paralelo pronto para entrar em ação.
Há quem considere que o próximo governo Lula não deve mexer com esse vespeiro. É preciso prioritariamente construir um autêntico consenso mínimo para governar com uma margem de segurança, de modo a poder mais adiante avançar na perspectiva de um acerto de contas com esse passado que não passou. É preciso que não se confunda a frente ampla eleitoral com as pautas progressistas de uma corrente de opinião que dera já no primeiro turno das eleições endosso para essas pautas sociais, largamente conhecidas e alvo da oposição a Lula e as esquerdas em geral.
Antes mesmo da posse de Lula começaram as tentativas de conter a adoção de medidas mais conseqüentes no que se refere aos programas sociais de maior porte. Não somente a reedição da Bolsa Família, mas o combate aos obstáculos que impedem uma real libertação das mazelas encravadas no estado brasileiro. A começar com a reação do mercado, da bolsa, e dos pregadores do apocalipse sobre o “perigo” de uma escalada dos juros e do processo inflacionário.
Esses mesmos críticos que se manifestam antes mesmo da posse do presidente eleito são os mesmos que minimizam o enorme rombo do orçamento produzido pelo governo Bolsonaro, em valores muito maiores do que o da PEC da transição, além de entregar ao presidente da Câmara, Arthur Lira, o montante do justamente denominado “orçamento secreto”, isto num regime republicano, o que é um escárnio.
Assim, ao desmontar o estado nacional e fragilizar suas instituições, o governo Bolsonaro deixa um imenso passivo que se estende desde os gastos exorbitantes das Forças Armadas passando pela contenção criminosa dos gastos para as áreas sociais, de educação e saúde. Esta última inteiramente desassistida durante pelo menos os primeiros momentos mais agudos da pandemia, haja vista o que ocorreu no Estado do Amazonas com inúmeras mortes por falta de oxigênio.
Há quem se apresse em encaminhar denúncias criminalizando o presidente Bolsonaro junto ao Tribunal Penal Internacional, mais conhecido como Tribunal de Haia, pelo genocídio, termo que não tem outro para caracterizar a desídia de um governo que apostou em medicamentos fartamente avaliados como inoperantes para o tratamento da covid-19 e suas variantes. A réplica do presidente em final de mandato tenta se justificar ao dizer que a pandemia, com o tal, aconteceu em todo o mundo. Mas, ao contrário de boa parte do mundo não houve aqui providências para impedir a proliferação do vírus, principalmente nas áreas mais vulneráveis.
Ao conjugar as torturas dos tempos da ditadura com os casos de negligência no que diz respeito ao não enfrentamento da pandemia por parte do governo Bolsonaro se está a tratar de problemas que dizem respeito ao povo brasileiro, especialmente à preservação da memória nacional. Desprezá-la é entregar a nossa história aos que cometem reiteradamente a negação da coisa pública, portanto do que temos de resquício de um regime republicano possível.
Mas, antes mesmo que se apure e se julguem esses casos de abandono do papel a assumir como primeiro mandatário do país chegou o momento de se reescrever o nosso passado recente, já que não é tão remoto assim em função das cicatrizes que temos, e no qual um contingente de brasileiros sofreu e experimentou a dor das torturas que contra eles os seus algozes cometeram a mando de seus superiores? Não dá mais para naturalizar essas dores, sejam elas decorrentes de atos provenientes dos crimes aos que se opuseram à ditadura, ou aos que foram entregues à própria sorte por ocasião da pandemia tida pelo presidente que sai como uma gripezinha.
O suplício dos que se bateram heroicamente contra a ditadura ainda arde no corpo de alguns e, sobretudo, na memória de muitos que de alguma forma testemunharam essas perdas sob o tacão e a batuta de comandos a serviço de uma ideologia tresloucada à cata de subversivos. Mal sabem muitos que sustentaram aquele terror instalado no poder político do estado brasileiro que subversivos eram exatamente os que orientavam as práticas criminosas que precisam ser julgadas e sentenciadas.
Não basta mais simplesmente registrar esses fatos. É tempo de por nos tribunais os operadores do porão da ditadura. Os mandantes e os executores estejam eles mortos ou vivos porque a justiça precisa ser feita ainda que tardia para que nunca mais, como diz o título do livro da Diocese de São Paulo, tenhamos fatos como esses. E aos que perderam seus entes queridos com a pandemia, que sejam apuradas as responsabilidades de autoridades durante o surto mais intenso da crise sanitária.
Essas providências nada têm de vinganças ou de ações persecutórias, mas sim de republicanismo. Ou então, é preferível decretar o fim da República entre nós.
*Doutor em História Social, conferencista honorário do Real Gabinete Português de Leitura, professor aposentado da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Foto de Hebe Bonafini – Romina Santarelli/Ministerio de Cultura de la Nación, disponível em Fotos Públicas.
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