Por LÉA MARIA AARÃO REIS*
A importância da preservação da memória política brasileira continua sendo um dos grandes temas discutidos, debatidos e estudados em diversos segmentos da população, em particular de cinéfilos, neste começo de ano de 2025. E quando um desses filmes que abordam o assunto – com frequência se trata de um documentário –, ainda não estreou no circuito dos cinemas, é sempre um cartaz cercado de expectativa por parte do público.
Esse é o caso do mais recente trabalho do cineasta Silvio Tendler, concluído no final do ano passado. Brizola – Anotações para uma História vem sendo apresentado em sessões esporádicas e gratuitas organizadas por instituições ligadas às atividades políticas, a universidades e comunidades populares. As sessões são acompanhadas de debates com Tendler, a presença de pesquisadores, cientistas sociais e/ou jornalistas. Uma estratégia que cria justa expectativa para a estreia formal na tela grande e é um programa generoso porque facilita o acesso ao conhecimento e à arte cinematográfica, procurando sedimentar e estimular o hábito de frequentar cinemas e estudar a chamada sétima arte.
As preciosas ‘anotações’ cinematográficas de Silvio Tendler sobre um dos mais admirados e estimados ícones políticos da nossa história já foram mostradas em sessão realizada em novembro passado, no Theatro São Pedro, em Porto Alegre, iniciativa do Movimento de Justiça e Direitos Humanos, da Fundação Caminho da Soberania, da Associação de Ex-Presos e Perseguidos Políticos e da Fundação Theatro São Pedro. Em São Paulo, o documentário foi exibido esta semana, com entrada gratuita no Cine Sesc e seguido de debate com o diretor, com Amir Labaki e com Ricardo Lessa.
A ênfase da leitura de Tendler sobre a atuação de Leonel de Moura Brizola desenvolve o impacto do legado deixado pelo político gaúcho na vida nacional. Ressalta a sua luta pela educação gratuita para todos e todas, definida por ele como ‘educação libertadora’, além da sua contribuição, com a Campanha da Legalidade, na tentativa de neutralizar o infame golpe militar contra a democracia no Brasil, em 1964. O filme também destaca a persistência de Brizola na construção de um sentimento nacionalista, democrata e pela justiça social, e o seu protagonismo como o principal artífice do movimento organizado do trabalhismo no país que resultou no PTB, o Partido Trabalhista Brasileiro.
Nesse trabalho de Tendler, a narrativa é iniciada com uma dinâmica sucessão de imagens, observações e frases de Brizola, de momentos dele em entrevistas, e segue com a história da sua infância modesta no interior do Rio Grande do Sul, em Carazinho, o ambiente local dos caudilhos, dos peões, dos mascates errantes e, na dimensão nacional, da então nova casta que ia se instalando na política: Borges de Medeiros, Júlio Prestes, Getúlio, Jango.
A mãe de Brizola foi quem alfabetizou o filho e o incentivou no impulso do garoto de estudar. Ele acabou pegando um trem na direção de Porto Alegre, sozinho, aos 13 anos de idade, e lá começou a trabalhar como boy, ainda sem documentos, para se sustentar. Em seguida, tirou sua identidade – Leonel de Moura Brizola –, e mais adiante entrou para a Faculdade de Engenharia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como era o seu sonho.
Na época em que Getúlio Vargas era a mais notória personalidade política do país, o jovem Brizola entra para o recém-criado Partido Trabalhista Brasileiro, o PTB, conhece e casa com Neusa, irmã de João Goulart. Passo a passo, Tendler acompanha a consolidação da sua presença como um dos principais nomes do trabalhismo. Em 1947, foi eleito deputado estadual e reeleito em 1950. Em 1954, já é deputado federal com recorde de votos, e dois anos depois, como prefeito de Porto Alegre, criou o slogan “Nenhuma criança sem escola”. Sua simpatia pelo recém-criado Movimento dos Sem Terra levou-o a comentar a sua familiaridade com o meio rural: “Eu aprendi a ler nesse ambiente”, dizia. “Nada mais justo para uma família possuir uma terra para morar, uma terra para trabalhar e para produzir, mãos calejadas, direito a uma granja…”.
Mais adiante do documentário, ele se refere à criação dos Cieps e replica a observação de Fernando Henrique Cardoso em uma entrevista, sobre os altos custos necessários para construir uma educação pública integral: “Os tecnocratas sempre consideram ‘muito caras’ as obras relativas à educação. O que custa caro é a ignorância. O que custa a ignorância no capitalismo?”.
O documentário oferece uma visão panorâmica, mas minuciosa, da atuação política do líder gaúcho, a força do seu legado na formação do PDT, na conclusão de um sistema de educação pública gratuita com a colaboração fundamental de Darcy Ribeiro nos Cieps, no enfrentamento à ditadura de 1964 e na construção do movimento das Diretas Já. A atualidade do filme é forte, considerando as manobras, artimanhas e traições de civis e de militares, na época, na construção do golpe político que urdiram contra o presidente João Goulart. O mesmo modelo de hoje.
No retrato humano, a empatia de Brizola no contato com as multidões e a simplicidade autêntica estão no documentário. No Rio de Janeiro, era amado como governador, morando em um apartamento na Avenida Atlântica, com a família. E sua fina ironia, como, por exemplo, ao ser comunicado pelo governo do Uruguai, no início dos dez anos de seu exílio no país vizinho, que só teria direito a viver e se locomover no território até 300 quilômetros distante da fronteira com o Brasil. Reação de Brizola: “Trezentos quilômetros em linha reta”?
O filme faz uma imersão de duas horas na ‘profundidade do Brasil profundo’, como observam alguns que já assistiram à iluminada produção de Tendler sobre a coragem e paixão de Brizola. Uma bela empreitada cinematográfica na qual ele contou com Lilia Souza Diniz, Eduardo Tornaghi e Bernadete Duarte como assistentes de direção, mais uma turma de pesquisadores profissionais e de eficientes montadores, e de comentários e entrevistas de companheiros, alguns ainda vivos e outros já partidos, do político de Carazinho. Um dos mais emblemáticos da nossa história, alguém que ainda tem muito a oferecer como inspiração e exemplo às gerações mais jovens.
Há muito mais a relatar sobre esse filme, além de singelas ‘anotações’. Fica para mais adiante, quando da estreia que deve se dar ainda este ano. Por enquanto, a ‘anotação’ de Silvio Tendler é a de que Brizola é uma presença permanente. Alguém que demonstra que os golpistas são sempre os mesmos, apesar dos nomes diversos. “Os golpistas de 64 eram os mesmos que tentaram o golpe em 1961, que por sua vez eram os mesmos que, anos antes, tentaram também golpear Getúlio Vargas”, ele nos alerta.
Publicado originalmente no Fórum 21.
*Léa Maria Aarão Reis é jornalista.
Foto de capa: Reprodução
Uma resposta
Boa tarde , desejo saber como pôde-se requisitar o filme para assar em lugar público . Agradeço a informação.