Por JORGE BARCELLOS*
Quais imagens do passado significam mais para você? Que cenas você guarda do passado na memória de uma época em que você foi genuinamente feliz? Eu tenho uma que, para mim, me representa despojado da correria do mundo, das obrigações e tarefas do trabalho diário, algo que me dá prazer de recordar e que sempre me acompanhou de alguma forma.
Mas antes de descrevê-la como farei no final, se o leitor tiver paciência, é preciso de um pouco de contexto. A história de minha imagem começa com o filme que marcou definitivamente minha adolescência: Star Wars. Em janeiro de 1978, meses depois da estreia norte-americana, estreou no Brasil o filme que consagrou George Lucas.
Meu mundo era a TV
Eu tinha então treze anos, ia pouco ao cinema, via muitos programas de televisão numa Telefunken de válvulas de 19 polegadas, ainda em preto e branco. Não ia ao cinema porque não tinha dinheiro, só ia quando eu era levado pela escola no ensino fundamental, para ver filmes como Macunaíma, de Joaquim Pedro de Andrade (1968), e Independência ou Morte, de Carlos Coimbra (1972). Mas eu peguei gosto e comecei a insistir com minha mãe para me deixar ir ao cinema, e ela começou a me dar uns trocados que ela obtinha da venda de cosméticos e livros de porta em porta. Graças a isso, meses depois de Star Wars, eu ainda veria na telona filmes como Tubarão e Alien, mas nada se compara à sensação que o filme de George Lucas me provocou. Hoje lamento que o hábito do streaming esteja terminando com o hábito de ir ao cinema.
Eu lembro de que entrei na fila do cinema Cacique, na Rua da Praia, um dos mais famosos da capital do centro de Porto Alegre. Ele funcionou de 1957 a 1994 e eu fui algumas vezes ali. Eu gostava de admirar seu espaço interno e arquitetura típicos daqueles cinemas de época. Fico triste ao passear hoje no centro e ver que ali está um supermercado, no lugar que no passado era conhecido como “O Gigante da Cidade”, com suas 2.400 poltronas, um dos maiores cinemas do Brasil à época. É verdade que ele perdeu parte do glamour quando foi dividido para a construção do cinema Scala, em seu mezanino, mas isso aconteceu também no Cine Baltimore, no bairro Bomfim, quando surgiu o Bristol. Ali vi Blade Runner sob uma tênue névoa provocada pelo fato de que a maior parte da plateia estava fumando maconha. No centro, eu ainda ia ao Cine Imperial, na rua dos Andradas, que hoje aguarda reforma da Caixa Federal, e no Victória, na Av. Borges de Medeiros, transformado em galeria comercial. Há uma famosa foto deste último cinema da estreia do filme Tubarão, de Steven Spielberg.
Eu era um adolescente pobre que morava em um prédio inacabado da rua Ramiro Barcellos. Eu vi extasiado o cruzador espacial atravessar a tela. Eu chorei ao ver Luke contemplar seu lar destruído. Eu vibrei vendo como a Millenium Falcon salvava Luke no final. Afinal, era um grupo de amigos e heróis prontos para salvar o universo das forças do mal. Eu tinha poucos amigos nessa época, mas a identificação com o sentimento de união também existia em mim. Minha mãe era de psicologia difícil, já manifestava também seus problemas psiquiátricos que eu ainda não tinha condições de entender, de modo que as relações de amizade e grupo foram muito importantes para mim. Um amigo morava numa casa antiga, na Rua Bento Figueiredo, neto de um antigo sapateiro que ficou surdo por seu trabalho nos Bombeiros e cujo pátio interior tinha uma parreira de uvas. Outro era de família mais rica, morava na Rua Giordano Bruno, amizade pontuada por bullying vivido por mim à época. Hoje, quando o vejo na rua com um aspecto que indica declínio social, lembro-me de que ele não era dedicado aos estudos. Provavelmente os abandonou. Não se melhora de vida sem educação.
Um lugar para se viver
Havia outra razão para eu gostar de Star Wars e que somente tempos depois compreendi. Era a transparência dos cenários, aquela luz e ambiente tecnológico que sugeria a perfeição do lugar. As espaçonaves eram, por assim dizer, o lar perfeito, a casa perfeita. Eu havia passado por todo o tipo de casa humilde: a casa humilde de madeira na Rua Princesa Isabel na infância; os pequenos apartamentos quitinete da Av. João Pessoa e Ramiro Barcelos viram minha passagem da infância à adolescência. O primeiro e este último eram construções inacabadas, imperfeitas, exatamente o contrário dos cenários do filme: eram como estar em um castelo da série britânica Downton Abbey.
Para quem acredita que Star Wars é mais um produto americano do tipo arrasa-quarteirão, é preciso lembrar que, para a criança que fui e que o assistiu ao menos dez vezes à época, ele também tem um significado político. Na época em que eu o vi, Star Wars encaixava perfeitamente no imaginário dos movimentos sociais da época porque enfatizava a necessidade de rebelião, ou pelo menos, o potencial rebelde, de resistência, como diz Cass S. Sunstein em O Mundo segundo Star Wars (Record, 2017). “Só a ameaça de rebelião impede que muitos no poder façam certas coisas inomináveis”, diz seu criador, George Lucas. Esse ideal de rebelião foi devorado pelo neoliberalismo dos tempos atuais, que cria a autoexploração que atende pelo nome de empreendedorismo. Mas nada disso existia para mim como criança, somente o desejo de mudar o meu mundo. Por isso, entendo que o filme foi importante para o adulto que me tornei, sempre insatisfeito com o mundo que está aí.
Sustein aponta que o tema da saga envolve a política pelo valor dado à rebelião, à virtude da república e os vícios do império. O império rejeita a rebelião, quer a ordem “outra palavra para a ausência de escolha”, afirma Sunstein. Toda a saga é um libelo que afirma a importância de manter atenção no que fazem os líderes políticos, que não devemos abrir mão da liberdade de escolha. O drama de Star Wars é o mesmo da política brasileira atual: encontrar um líder capaz de unir as pessoas e caminhar na direção do bem. Mas eu estava preocupado demais com meus problemas para pensar no mundo ao redor. Eu não tinha liberdade alguma de escolha do material escolar ou roupas para ir à escola, simplesmente porque tinha de aceitar que minha mãe podia comprar somente o que era mais barato. Fui um adepto da Conga, ainda que os colegas tivessem tênis Nike. Por isso, escolher algo sempre foi o desafio, liberdade um valor a conquistar.
É claro que eu me sentia pobre em relação aos colegas de classe, mesmo sendo sempre aluno de escola pública. Nessa época, a distância social se media pela marca de hidrocor que se podia comprar da lista de material escolar da escola. Apontador com detalhe, nem pensar. Eu penso que, de alguma forma, minha condição social encontrou no imaginário do filme as condições para fomentar em minha consciência a crítica social que fiz em minha carreira e ainda faço do capitalismo. Constato agora que fazemos muita crítica às condições sociais que são impostas aos trabalhadores, mas a questão é que as crianças pobres também sofrem com isso. Bernard Lahire, em Infância e Classes Sociais (Seuil, 2019), fala como a “condição social influencia a aprendizagem, a aquisição de competências linguísticas e os códigos culturais, que serão determinantes para o futuro”. É o que o autor chama de “desigualdades de destino”. Ele diz que “todas essas crianças vão para a escola, mas não têm o estado de espírito, o comportamento, a competência e os hábitos de vida que permitirão que se transformem em bons alunos, tranquilos e concentrados. São crianças perturbadas pela sua situação de família e suas próprias condições de vida.” Eu vivi em parte isso, tive de me agarrar à educação para escapar das perturbações de minha condição social e ficaria feliz hoje se, em nosso universo político onde o PSOL, o PT e o PcdoB simbolizam nossa resistência, e suas lideranças nossa versão de personagens como Luke Skywalker, o rebelde, dedicassem algum espaço em seus discursos a como o neoliberalismo afeta as crianças hoje, pois, no passado, não tenho notícia de debate igual. Por isso, assistir ao filme foi imprimir em minha consciência o desejo de lutar contra a injustiça social.
Dualismos por todo o lugar
Para quem, por uma improvável razão, jamais assistiu à saga, o Império é o equivalente do mal, equivalente ao que a Era Bolsonaro significa para nós, enquanto a República, o bem, é exatamente o equivalente da Era Lula se não fossem seus acordos duvidosos para manter o presidencialismo de colisão, motivo pelo qual cientistas políticos já duvidam de sua existência. Claro que, quando vi a saga, eu ainda não tinha a consciência política de hoje para saber da existência, naqueles anos, da oposição entre o regime militar e aqueles que lutavam pela redemocratização. É claro também que há diferenças entre a ficção e a realidade: um dos princípios gerais do regime republicano, a soberania popular, isto é, o poder que é do povo e a quem cabe a decisão final sobre a melhor forma de organização, inexiste no filme. E o principal, a narrativa não dá atenção a personagens comuns. Se hoje sou crítico dessa característica, à época ela não passava pela minha cabeça, pois o mito do herói em que a história se baseava era o que me fazia ver e rever o filme e não a ausência de personagens comuns como eu na saga. É a característica cinematográfica e literária da epopeia se impondo à política: o destino dos heróis é o destino dos povos. Todas as suas ações são justificadas porque elas estão a serviço de um poder superior, do destino, da “Força”. Eu brincava com o gesto de Obi-Wan Kenobi, que usa a Força para distrair policiais em um planeta distante. Os heróis de George Lucas não têm muita escolha a não ser fazer, e fazem, o que é melhor para si mesmos e que é ao mesmo tempo o melhor para o seu grupo. O mundo da saga se expande segundo a subjetividade dos heróis, Lucas Skywalker, Leia Organa e Han Solo, para citar alguns.
Diz Dieter Prokop em seu “Fascinação e Tédio na Comunicação: produtos de monopólio e consciência”, capítulo do livro sobre o autor organizado por Ciro Marcondes Filho (Ática, 1986), que obras como Star Wars, se não determinam o que pensamos, exercem uma grande influência, colaboram na formação de nossa subjetividade, nossos valores e crenças. Em realidade, o campo político por detrás dessa ficção científica é um trabalho superficial sobre a ideia de democracia e de república, mas que ainda assim foi importante para mim. Eu não me dava conta dessa relação, é claro, eu ia para o cinema nos anos 70 enquanto havia militares por toda a cidade, mas eu não tinha consciência deles. Minha mãe, no entanto, era cuidadosa e me mandava sempre sair com a Carteira de Identidade. Ela não queria falar, mas era sua forma de dizer que vivíamos sob o império do mal, o Regime Militar. Eu me lembro de manifestações na UFRGS contra a ditadura e imagens de perseguição, em plena Avenida Salgado Filho.
As aventuras de Luke, a saga dos cavaleiros Jedi, a “Força” – algo que está em tudo e ao redor de tudo no universo e de onde emana o poder dos Jedi – para mim surgiam como a aventura mitológica que suplanta a política. Eu via os jovens que lutavam contra a ditadura e os que lutavam pela preservação de uma árvore na Av. João Pessoa: a saga reforça o mito de sermos marcados por uma herança que nos faz bons ou maus, cavaleiros ou membros do lado escuro da Força. Esse também é o eterno mito sempre buscado pelo homem individual, o da fundação do tempo, que deixa de lado as formas de associação solidária que podemos vir a construir. Por isso, Star Wars – que se passa num passado não muito distante – é a Disneylândia política do futuro que os americanos perseguem, um lugar onde a política é apenas o pano de fundo, exatamente como as histórias de Walt Disney são o pano de fundo da indústria em que a Disneylândia se transformou no mundo de hoje. Eu, que sabia da Disneylândia apenas pela introdução dos filmes de TV, tinha em Star Wars minha Disneylândia particular.
Esta não é de certa forma o desejo oculto de nossos políticos, de que o povo seja apenas o pano de fundo de decisões tomadas pelo capital financeiro? O sonho de império continua no governo Trump, ao mesmo tempo em que Star Wars se transformou em mais uma franquia como Velozes e Furiosos. Se a visão política de Star Wars ainda era limitada, no entanto, ela inspirava a prestar atenção àqueles que tentam chegar ao poder. Talvez por isso, trabalhar com Educação para Cidadania nas escolas pela Câmara Municipal, ensinar jovens de periferia a construir seus critérios de escolha dos candidatos em que devem votar, era a forma que adotei de fazer com que conquistassem algum poder sobre seu destino, e por isso, tenha sido a forma em que pude cumprir a herança que recebi daqueles anos. Mas, à época, para mim, ter poder era sobreviver ao dia a dia da escola: não sabia, mas era um mundo onde o bullying imperava das crianças mais ricas e de classe média para as mais pobres também entre as crianças. Quantas cenas: muito pequeno, sobrevivendo à gozação por tratar piolho com Neocid na cabeça, por andar com cabelo comprido por não ter dinheiro para ir ao cabeleireiro, até por ter boas notas, você é ridicularizado e zoado de novo.
O germe da revolta
Tanto em Star Wars, como em nossa realidade, é a infelicidade que dá o clima geral da população, seja pelas dificuldades econômicas, humilhação ou exploração, e que provoca a rebelião. Ou deveria. E “igualmente claro que as pessoas podem radicalizar diante de certos eventos precipitadores – especialmente quando a tirania bate à porta”, diz Sunstein. Não é exatamente o que acontece com a relação entre crianças na escola, essa tirania do passado que o conceito de bullying atualiza? A revolta popular contra o autoritarismo, eu não via, pois não estava perto de mim, menos ainda a política que comecei a familiarizar-me somente na faculdade. Mas eu via a tirania das crianças na infância, daqueles meninos de classe média que não respeitavam ninguém, menos ainda alguém pobre como eu na sala de aula. Isso acontecia porque eles tinham tudo em sua volta e eu não, talvez a pobreza tivesse desenvolvido meu ego mais rápido do que o deles ou talvez, enquanto meu princípio de realidade estava ajustado ao ambiente em que vivia, o Id deles não.
Eu saía da sala de aula e não via problemas na República Galáctica, república porque era um regime de responsabilidade em que os bons cidadãos colocam o interesse coletivo acima do individual, mas por ser, ao contrário, ocupada por interesses individuais com os quais eu me identificava: Han Solo e seu interesse para participar das missões da Aliança; os dramas familiares que cada personagem carrega em busca de sua solução, como a necessidade de Luke redimir o seu pai. Eu estava na mesma posição: filho adulterino de militar, meu pai nunca conviveu comigo, mas de alguma forma, havia o reconhecimento de que ele ajudava minha mãe, mesmo que fosse com trocados, o que era o equivalente da posição de Luke.
É preciso lembrar que todas estas discussões sobre a natureza do filme querem introduzir os efeitos de categorias políticas numa consciência adolescente. Na linha de Prokop, mesmo com originalidade, a saga é um produto da indústria cinematográfica para atendimento das necessidades de camadas amplas de público. Neste universo, eu era o consumidor ideal, fascinado por aquele universo. O primeiro álbum de figurinhas, que fiz bravamente, foi o de Star Wars, prova de que o filme é atravessado pelas exigências de consumo do capitalismo tardio e de todos os produtos oriundos do filme que eu não podia acessar, como brinquedos, máscaras, armas de brinquedo que o transformavam num meio de promoção de mercadorias e não de ideologias políticas. Mas eu, é claro, nunca vi isso, apenas constatei na idade adulta: eu apenas consumia o filme na época de seu lançamento. Não estava sozinho.
Ver demais
Aquele mundo de Star Wars era um mundo em que eu queria viver, pois o mundo em que eu vivia era difícil de viver. Por isso vi o filme dez vezes seguidas. Fui dois ou três dias seguidos. Via três sessões por dia. Era minha dopamina. Isso era possível pois descobri que o lanterninha não retirava ninguém entre as sessões. Se você quisesse, podia ver sessões seguidas, era só não sair da sala. Por isso o filme ficou gravado na memória. Eu o vejo hoje no streaming com o mesmo entusiasmo. Por isso, de alguma forma, as questões subliminares do filme ficaram lá, no meu inconsciente adolescente, aguardando aflorar no adulto universitário. Por isso, a opção pela esquerda, nos anos 80, no curso de História, era natural. Era ser revolucionário. Era ser Jedi, mas com um ar local. Na infância, tudo que podia fazer era pedir cartolina para minha mãe para fazer pequenos brinquedos que imitassem espaçonaves. Cheguei a fazer a Millenium Falcon, as naves auxiliares de Star Trek, as “shuttlecrafts”, que aparecem no episódio Galileo 7 do seriado antigo. Aprendi a fazê-las porque minha mãe me dava a antiga revista Recreio, que era barata, para me entreter, o que era mais em conta do que brinquedos. Eu recortava e colava, e assim aprendi, de certa forma, a trabalhar com o tridimensional. Um dia, um amigo de escola viu um desses brinquedos de papel que eu fazia, que imitavam espaçonaves e, claro, mais rico, me encomendou uma. Ele queria fazer do jeito dele, eu queria fazer do meu jeito. Ele queria colocar papel laminado, eu não queria porque não sabia fazer isso. Acho que ficou horrível, mas ele gostou. Ele deu todo o material, o capital, e eu, a mão de obra. Pronto, já estava inserido no universo capitalista da exploração do trabalho.
Eu gostava daquelas gigantescas espaçonaves como um lugar. Eu ficava pensando onde seus soldados ficavam, dormiam, se tinham um espaço próprio, um quarto. Isso era mais fácil de ver na série Jornada nas Estrelas, que também me fascinava, mas não num cruzador imperial. Claro que isto era devido ao fato de que vivi a infância em quitinetes e nunca tive um quarto meu. Aqueles que perderam tudo com a enchente também procuram um lugar. Hoje, há livros extensos que detalham o universo Star Wars, mas naquela época, somente o amigo que eu tinha, no prédio da Ramiro Barcelos, sabia disso, dos meandros daquele universo. Eu o conheci porque ele era casado com uma amiga de minha mãe, que tinha depressão. Ele era técnico da UFRGS e amava ficção científica. Trabalhava na gráfica da faculdade e adquiria revistas estrangeiras e livros de ficção científica. Ele me deu uma vez um livro do filme Império Contra-ataca, que terminei emprestando para meu amigo viajante. Ele tinha também, embaixo dessas revistas, em seu roupeiro, uma série de revistas pornográficas, mas isso é outra história.
Enfim, a cena
Conversávamos muito sobre ficção científica. Eu também aprendia muito com ele sobre cinema, não era somente sobre o que se vê, as histórias, mas como era construído, os efeitos especiais, o que está por detrás das cenas. Isso me deu, anos depois, condições de ver a análise dialética de esquerda, o que está escondido no subtexto da realidade capitalista, os interesses de classe social. Também discutíamos a trilha sonora desses filmes por horas, o que aguçou minha sensibilidade e talvez por isso tenha tanta dificuldade de aceitar o sertanejo universitário. Na mesma época, também havia estreado nos cinemas Superman, e ambos tinham trilha sonora de John Williams. Eu ainda tinha quatorze anos. Estava na oitava série do colégio Roque Callage. Vieram as sequências dos filmes, e eu as acompanhei, já estava no ensino médio, no colégio Júlio de Castilhos, tinha novos amigos com quem ia ao cinema, um seguiu carreira na Caixa Federal e outro no Lafergs, mas naquela época, durante as noites de final de semana, passeávamos de bar em bar do Bom Fim onde liamos o jornal Folha de São Paulo inteiro porque não tínhamos namoradas. Bem, quando dava para ler.
Eu frequentava a Biblioteca do Instituto Cultural Brasil-Alemão, na 24 de Outubro, a do Americano, na Riachuelo, e a do Consulado Francês, no Centro de Porto Alegre. Não lembro como as descobria, mas lembro de ir lá para ler revistas, pegar discos de música clássica emprestados para ouvir em casa e livros de filosofia para ler no ensino médio. Gratuitamente. No Goethe, conheci meu amigo viajante que me levou ao Taimbezinho, o que já relatei nas páginas de Sler. Ia à casa dele, ali na Henrique Dias, no Bom Fim. A irmã nos mostrava discos dos Beatles e eis a cena que não me sai da memória: brincávamos de cavaleiros jedis, com cabos de vassoura e imitávamos os sons dos lasers disparando. Não importava quem era Luke ou Darth Vader, importava a sensação lúdica que a brincadeira proporcionava. Nos termos do filósofo Walter Benjamin, era uma forma de libertação da minha realidade, muitas vezes opressora, que terminava ali, na liberdade e fantasia proporcionada por um filme. Eu criava meu mundo, experimentava, reinventava minha realidade, tinha uma experiência singular enquanto imitava gestos e sons de luta de um sabre de luz. Interagia, pois estava entre amigos, produzia minha memória de afetos. Entendo que ajudou a formar minha identidade em relação ao mundo.
A conclusão é que a forma de brincar do passado era bem diferente de como as crianças brincam hoje, enjauladas em seus celulares. Nada de “Mekorama”, “Crossy Road” e “Candy Crush Saga”. Sabemos que seu uso leva à ansiedade, depressão, distúrbios de atenção, atraso no desenvolvimento cognitivo e da linguagem, miopia, sobrepeso, entre outros problemas, efeitos comuns do vício em jogos eletrônicos, mas ainda assim, toleramos que nossas crianças abusem deles. Os jovens que hoje brincam com seus celulares têm uma experiência individual de mundo; os da minha geração, que brincavam de Jedi, tinham uma experiência coletiva. Talvez seja essa a forma de resistência que a brincadeira significava para Benjamim que falta na atual geração de crianças para resistirem, no futuro, à experiência de desagregação do capital; talvez ela já tenha faltado nos adultos que hoje se submetem à precarização, geração posterior à minha, pois perdemos o sentido de estabelecer relações com os outros, a experiência de grupo, coletiva. Quem brinca questiona, experimenta e transforma o mundo; quem não brinca, é submisso a ele. Por isso também entendo a força da ironia política contemporânea, seja à direita ou à esquerda, pois é capaz de falar com essa dimensão lúdica do ser humano. Se queremos revolução, como agora as medidas de Trump exigem, precisamos rir dele, exatamente como o novo hino patriótico de Marcelo Adnet faz.
Poucas imagens ficaram tão gravadas na minha consciência como brincar de Jedi. Essa é a cena de infância de um mundo lúdico, sem preocupações sobre onde morar, sem preocupações com o mundo político que me cercava, sem dificuldades de alimentação, de comprar roupas, sem se preocupar com nada. Brincar de Jedi. Muitas crianças faziam isso naquela época, não sei se fazem hoje. Imaginar-se poderoso é tudo que falta à geração atual para fazer a revolução. Somos submissos demais porque esquecemos a socialidade que a brincadeira promove, ficamos sem imaginar novos mundos e isso é fundamental para sermos agentes de transformação social. Agora, na verdade, lembro de mais uma cena que envolve minhas primas, mas esta é outra história.
Publicado originalmente Sler.
*Jorge Barcellos é graduado em História (IFCH/UFRGS) com Mestrado e Doutorado em Educação (PPGEDU/UFRGS). Entre 1997 e 2022 desenvolveu o projeto Educação para Cidadania da Câmara Municipal. É autor de 21 livros disponibilizados gratuitamente em seu site jorgebarcellos.pro.br. Servidor público aposentado, presta serviços de consultoria editorial e ação educativa para escolas e instituições. É casado com a socióloga Denise Barcellos e tem um filho, o advogado Eduardo Machado. http://lattes.cnpq.br/5729306431041524
Foto de capa: Gerada por IA
Respostas de 2
Grande texto como são todos os do Jorge. Parabéns.
De fato, as crianças e pré-adolescentes de hoje brincam pouco, interagem demais no celular/ internet e muito pouco na vida real! Isso acarreta sérios problemas na postura física e na visão, além de privá-las da alegria, socialidade, importância de acordos e regras, que a brincadeira real promove.