Por TARSO GENRO*
Na página de abertura do excelente livro de Bernard Michal “Os julgamentos de Nuremberg” (Ed. Desassossego,2019) está o seguinte texto: “Perante os Tribunais Criminais, onde os homens são levados a julgamento por terem infringido as leis internas, acontece frequentemente que, num grupo sentado no banco dos réus, haja um deles que é o espírito superior, a personalidade dominante. Mas o fato de dizer “Eu roubei porque me disseram para roubar” não desculpa o ladrão tal como não desculpa o assassino que diz: “Matei porque me pediram para matar.”
Os processos de Nuremberg não podem ser comparados, moral e tecnicamente, com os processos em curso sobre a tentativa de golpe de 8 de janeiro. Nem a tentativa de “golpe continuado”, ainda em andamento, pode ser comparada com a barbárie nazista. Há, todavia, uma pertinência alegórica entre as atitudes dos réus, em ambos os processos, que podem iluminar o que estamos vendo nos julgamentos do STF. Um processo judicial é um jogo regrado, que conecta “fatos e normas”, no qual seus protagonistas se propõe a formar verdades fictas, que aproximem os julgadores do que pensam (ou querem) que seja a verdade real, conectando-a com as normas pertinentes ao caso concreto.
Em grandes julgamentos de crimes políticos ou de crimes contra a Humanidade aparecem depoimentos dos que “só cumpriam ordens”, dos que “não sabiam de nada”, dos que estavam “dentro” – supostamente para demover o crime em processo – dos que estavam nele “sem querer”, com uma diferença essencial, porém, daqueles asseclas de Hitler que afirmaram estar com “Führer”, para defender uma causa: nenhum dos bolsonaristas processados defendeu ou exibiu o programa do seu Chefe, desprezando-o, continuamente, apenas com palavras e atos de negação e com o reconhecimento atenuado de conspiratas pela extinção do Estado de Direito.
A movimentação concertada das forças políticas de extrema direita pela “anistia”, que opera sem nenhum tipo de preocupação com revides imediatos do Estado – tanto no plano simbólico como no plano institucional – mostra ao mundo que as técnicas antigas para golpear as instituições democráticas na democracia liberal representativa, mudaram completamente de rumo.
Aquelas antigas técnicas, pelo menos nas experiências mais recentes, uniam num só grupo dirigente, políticos “respeitáveis” da sociedade civil – à época motivados por uma submissão incondicional aos Estados Unidos diante da “guerra fria”, aos grupos de oficiais-militares mais politizados, para quem defender o país da “agressão comunista” levava a um alinhamento automático com os Estados Unidos.
Não estamos mais na época dos manifestos encomendados pelo Departamento de Estado, mas num tempo de minigolpes sequenciais e difusos, com ações políticas baseadas na força bruta que, junto com as difamações nas redes, estimulam a subjetividade popular das camadas sociais mais “desiludidas” a desprezar a democracia e a aceitarem um sentido político de anarquia fascista como rotina, para bloquear a vida comum na democracia republicana.
Ao encetar uma sucessão, em série, de atos de agressão política ao Estado de Direito – dentre os quais se destacou, recentemente, a operação selvagem da tomada da “mesa” do Parlamento, a extrema direita demonstrou que, na realidade do país, já ocorreu uma transformação profunda nas estruturas de poder institucional que padecem, não se sabe se de forma definitiva, de um parlamentarismo de perversão gerado pelo ninho da fisiologia e da corrupção.
A experiência brasileira do poder total, através das tentativas do bolsonarismo, está mais ancorada na situação que precedeu Mussolini no poder, do que na experiencia hitlerista do nazismo. O que vivemos hoje é a corrosão da democracia por dentro do Estado, com a desmoralização permanente das instituições, estimulada na anarquia destrutiva da extrema direita – ao contrário do que ocorreu na experiencia do nazismo – tanto por dentro do próprio Estado, como fora dele, para o nazismo ocupar o poder total através de uma ditadura de partido único.
No protagonismo nazista, o Estado Total foi estruturado para uniformizar a sociedade e se opor à “anarquia” socialdemocrata, segundo os interesses prévios do programa nazista que se apresentava, ao mesmo tempo, como “cristão”, patriótico, nacional, militarista e racista. O programa começou a ser aplicado imediatamente após a tomada do poder por Hitler, sufocando os dissensos internos no próprio partido e unificando o país, para resgatar a honra nacional, destruída pelas derrotas alemãs na Primeira Guerra Mundial.
Ao fazer das agressões ao Estado de Direito uma catarse anárquica, que desorientou a vida comum, usando também da violência física dispersa e seletiva, Bolsonaro despersonalizou as Forças Armadas do país. Deixou de oferecer a elas uma nova função estratégica para a corporação, ao contrário do que fez Hitler, que ofereceu às Forças Armadas alemãs uma ideia de resgate da nação, então expressa numa nova função estatal: promover a pureza racial a partir do Estado, para compor a nova ideia “superior” de nação, na qual o estado monopoliza o crime em todos os níveis, dos genocídios aos assassinatos coletivos
O sentido histórico, político e moral das nossas Forças Armadas, que fora até então a defesa da ordem da segurança nacional (que segundo estas interessaria à nação) então desmanchou-se no espaço sociopático dos celulares na cabeça. Ali, a “ordem” do bolsonarismo passou claramente a ser a ordem cortejada para o poder pessoal do Presidente fracassado, bem como do seu grupo de primatas, que não respeitavam nem as regras hierárquicas da corporação, nem a dignidade da sua própria instituição.
A violência física dispersa ou (simbólica) dos novos rumos do golpismo, assumidas pelas elites nacionais e globais da extrema direita, produzem, hoje, golpes em processo, mascarados de “retorno à democracia”. Propõem a recuperação da moralidade pública e dos protocolos da família tradicional, inclusive assumindo o negacionismo genocida dentro de uma pandemia, assim cometendo crimes bárbaros, sem despertar qualquer repulsa significativa na maioria das lideranças políticas conservadoras do país. Ainda poderiam se recuperar bloqueando a anistia inconstitucional que veio para dar continuidade ao golpismo. Mas não o farão. O país só poderá se salvar de uma crise política maior do que aquela que o bolsonarismo nos levou, se nos unirmos em torno da democracia e da república.
*Tarso Genro é ex-governador do RS, ex-Prefeito de Porto Alegre, advogado, professor universitário, ensaísta, poeta. Foi Ministro da Educação, das Relações Institucionais e da Justiça.
Foto de capa: Fellipe Sampaio/STF





Respostas de 2
Tarso Genro nos dá uma análise fina sobre “catarse anárquica” do bolsonarismo e quais suas consequências sobre o papel das Forças Armadas, o novo golpismo da direita civil militarizada, o senso de moralidade pública deturpado, o repúdio à dignidade democrática das instituições…um cenário de horror!
Sim, Tarso, todos juntos na luta por Democracia e República!
A nossa preocupação é com as denúncias do Tagliaferro