Arte e memórias das enchentes do Guaíba – veja as obras

translate

Design sem nome (41)

Por LÉA MARIA AARÃO REIS*

Caos, dor e resistência constituem a essência artística da original exposição adequadamente nomeada de Inventário da Inundação que acaba de ser inaugurada em Porto Alegre. É uma mostra que rastreia o desenrolar dos acontecimentos resultantes da subida sem precedentes do nível do rio Guaíba, em maio de 2024, provocando o assustador colapso do sistema de proteção da capital gaúcha. Nela, são reapresentadas 28 crônicas da atriz, escritora e poeta Nora Prado ilustradas com vídeos  e gravuras de autoria sua mãe, a conhecida gravadora, tapeceira,  designer   e pintora Zorávia Bettiol, constituindo um ambiente de memória que relembra e oferece novo significado à dor e à perplexidade, mas também à capacidade de resistência da população diante da tragédia.

As obras plásticas são produzidas em desenhos realizados com lápis de cor e a nanquim, sublinham aspectos da catástrofe e o apoio e a solidariedade do entorno de modo geral. Nessa afetuosa parceria de mãe e filha, as crônicas de Nora foram escritas à medida  que os acontecimentos diários traziam novos aspectos do desastre. Elas revelam igualmente  crítica política e social e são um testemunho fiel desses dias que abalaram o estado e o país. Agora, elas constituem a narrativa de fundo para músicas e para pinturas e grafites de Zorávia.

A exposição está aberta até 12 de outubro na Galeria Augusto Meyer, do Instituto Estadual de Artes Visuais/IEAVi, na Casa de Cultura Mario Quintana. Em seguida, dia 25 de outubro, será transferida para inaugurar a nova Galeria Zoravia Bettiol, onde permanecerá até o início de  2026.

É ‘’uma oportunidade de transformar a dor em arte e de refletir sobre os tempos sombrios que se aproximam com a possibilidade real das cada vez mais  constantes enchentes e das diversas situações climáticas decorrentes das mudanças da natureza. Mais um motivo para se repensar sobre sustentabilidade e qualidade de vida em tempos de modernidade’’, observam os organizadores da mostra.

Faz parte da exposição um videoarte produzido pela Oito e Meio Filmes, de autoria de Natalia Pimentel e Frederico Restori, e um livro/álbum  será editado com as crônicas de Nora e ilustrações de Zorávia. As gravuras digitais estão disponíveis, à venda, com ou sem moldura e todas as atividades paralelas à exposição são gratuitas com encontros e palestras para estudantes e para a população de modo geral.

Em meio à sua atividade admirável, Zorávia comenta a trajetória profissional, algumas das suas ricas memórias,  relembra o impacto das enchentes do Guaíba e fala a partir dos estudos que fez em Varsóvia, na Polônia, e dos seus avós, paternos e maternos, de origem europeia. Ela diz:

“Sempre  me dediquei em particular às técnicas da gravura, da linoleogravura, monotipia, xilogravura, litografia e, mais recentemente, sem dúvida, da gravura digital que usei na série mais recente que elaborei, a ‘Divina Rima’. A arte têxtil também me envolveu durante muitos anos. Comecei com tapeçaria bidimensional, acabei fazendo muitas séries e trabalho com  formas tecidas e obras tridimensionais’’.

Zorávia se envolveu com política cultural desde seu passado de jovem,  quando estava no Instituto de Belas Artes participando de congressos de estudantes em São Paulo, Rio  e  Salvador. Assim como Ieda Titze, percussora da nova tapeçaria no Rio Grande do Sul, ela participou da 4ª Bienal Internacional de Tapeçaria de Lausanne, no Musée Cantonal de Beaux Arts, e no Mobilier National, em Paris, em 1969.

Seus trabalhos são  o resultado de situações que a emocionaram, ‘’mas como eu estava fazendo a ilustração das 28 crônicas da minha filha, Nora, me baseei nos textos das crônicas dela que são muito ricos e sobre eles eu poderia fazer cinco ou seis ilustrações de cada um’’, ela observa.

Um aspecto que chama a atenção da artista é a resistência e possível recuperação da população dos mais vulneráveis após as enchentes. “ Apesar da solidariedade da população e do auxilio governamental está muito difícil para voltarem a ter a vida normalizada.  Acreditamos que isso demorará alguns anos; eles e elas perderam tudo – parentes, casas, móveis e emprego’’.

E acrescenta: ‘’ A população é profundamente traumatizada e, infelizmente, como os governantes não atacaram com profundidade os problemas, cada chuva que ocorre provoca inundações em muitas áreas de Porto Alegre e de outros municípios também’’.

Moradora do bairro Ipanema, zona sul da capital gaúcha, bastante atingido pelas águas, na sua visão Zorávia resume o saldo positivo e negativo herdado e comenta suas preocupações:

“Temos o registro das enchentes em Porto Alegre nos séculos XIX,  XX e em 2024, e a previsão é que essas catástrofes climáticas serão mais frequentes e cada vez mais devastadoras’’.

Não é preciso dizer mais.

Lembramos também que as obras da artista se encontram em acervos dos principais museus e centros culturais internacionais: Museu Metropolitano, de Nova Iorque; Museu Norueguês de Artes Decorativas e Design, de Oslo; Gabinete de Impressões da Biblioteca Nacional de Paris e Museu de Arte Moderna, de Kyoto.

E aqui, em tempo, reproduzimos abaixo dois trechos de crônicas de Nora Prado, uma amostra desse excelente programa. O primeiro  trecho, com o tema da fantástica e até então improvável situação do cavalo imobilizado, na ponta de um telhado de casa alagada.  A imagem de um emblema que todos lembram e que deu a volta no mundo.

Um Cavalo no Telhado, de Nora Prado.

(…) ‘’Dentre as centenas de imagens da tragédia gaúcha pelas inundações da última semana, uma delas chamou a atenção por ser tão bizarra quanto inesperada. Um cavalo se equilibrando entre as duas folhas de um telhado de zinco estreito e comprido sobre as águas do lago Guaíba. Ora, um cavalo se reconhece  pela sua  força e beleza, pela sua independência e sua liberdade. Um cavalo se reconhece pelo trote sincopado ou pelo galope deslumbrante sobre as campinas e coxilhas do Rio Grande, jamais como se fosse uma galinha empoleirada. O extremo oposto do que mostra a foto, onde vemos um ser amedrontado, preso e acuado, tão vulnerável sobre aquele espaço ínfimo  para o porte de sua majestade momentaneamente ultrajada. Pois essa  imagem emblemática e distópica me parece ser a mais completa tradução do terror vivido pelos gaúchos nos últimos onze dias. Representa todos nós paralisados aguentando estoicamente em meio a total desolação’’.

Um cavalo no telhado – Zoravia Bettiol

E a do Boi no Altar, também de Nora Prado:

(…) ‘’ Um boi sobre um altar de uma igreja inundada. É algo tão inusitado quanto sublime, pois, além de evocar a salvação do animal que encontrou abrigo no púlpito do altar, também remete à vaca sagrada cultuada na Índia, onde esse animal é visto como sagrado. O boi na sua imponência bovina e serena nos transmite uma sensação de tranquila passividade embaixo do crucifixo no centro da nave alagada’’.

Boi no altar – Zoravia Bettiol

Veja, abaixo, uma seleção das obras expostas. Elas podem ser adquiridas diretamente com a artista Zoravia Bettiol pelo telefone (51) 99938-3083 ou pelo e-mail zoravia.bettiol@gmail.com

Gratidão em tempo de imundação – Zoravia Bettiol
Cultura alagada – Zoravia Bettiol
Compasso de espera – Zoravia Bettiol
Garças na Praia de Belas – Zoravia Bettiol
Os amantes do rio – Zoravia Bettiol
Balanço depois de um mês – Zoravia Bettiol
Capivaras na Ipiranga – Zoravia Bettiol
Porções de normalidade – Zoravia Bettiol

Ficha técnica da Mostra Inventário  da Inundação

Produção: Digrapho Produções Culturais

Direção: Carla Pellin D’Ávila

Organização e curadoria: Vera Pellin

Crônicas: Nora Prado

Ilustrações das crônicas: Zorávia Bettiol

Videoarte e vídeo documental:  Oito e Meio Filmes – Natalia Pimentel e Frederico Restori

Design catálogo e programação visual: Vera Pellin

Fotografia: Santolin

Tradução em Libras: Celina Xavier

Divulgação: Bebê Baumgarten


Léa Maria Aarão Reis é jornalista.

lustração de capa: Divulgação

Receba as novidades no seu email

* indica obrigatório

Intuit Mailchimp

Os artigos expressam o pensamento de seus autores e não necessariamente a posição editorial da RED. Se você concorda ou tem um ponto de vista diferente, mande seu texto para redacaoportalred@gmail.com . Ele poderá ser publicado se atender aos critérios de defesa da democracia..

Gostou do texto? Tem críticas, correções ou complementações a fazer? Quer elogiar?

Deixe aqui o seu comentário.

Os comentários não representam a opinião da RED. A responsabilidade é do comentador.

Uma resposta

  1. Muito bom seu artigo Léa Maria, obrigada por compartilhar nosso projeto INVETÁRIO DA INUNDAÇÃO.
    Um projeto selecionado no Edital Sedac nº27/2024 PNAB RS _ Artes Visuais

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

plugins premium WordPress

Gostou do Conteúdo?

Considere apoiar o trabalho da RED para que possamos continuar produzindo

Toda ajuda é bem vinda! Faça uma contribuição única ou doe um valor mensalmente

Informação, Análise e Diálogo no Campo Democrático

Faça Parte do Nosso Grupo de Whatsapp

Fique por dentro das notícias e do debate democrático