Por LÉA MARIA AARÃO REIS*
Caos, dor e resistência constituem a essência artística da original exposição adequadamente nomeada de Inventário da Inundação que acaba de ser inaugurada em Porto Alegre. É uma mostra que rastreia o desenrolar dos acontecimentos resultantes da subida sem precedentes do nível do rio Guaíba, em maio de 2024, provocando o assustador colapso do sistema de proteção da capital gaúcha. Nela, são reapresentadas 28 crônicas da atriz, escritora e poeta Nora Prado ilustradas com vídeos e gravuras de autoria sua mãe, a conhecida gravadora, tapeceira, designer e pintora Zorávia Bettiol, constituindo um ambiente de memória que relembra e oferece novo significado à dor e à perplexidade, mas também à capacidade de resistência da população diante da tragédia.
As obras plásticas são produzidas em desenhos realizados com lápis de cor e a nanquim, sublinham aspectos da catástrofe e o apoio e a solidariedade do entorno de modo geral. Nessa afetuosa parceria de mãe e filha, as crônicas de Nora foram escritas à medida que os acontecimentos diários traziam novos aspectos do desastre. Elas revelam igualmente crítica política e social e são um testemunho fiel desses dias que abalaram o estado e o país. Agora, elas constituem a narrativa de fundo para músicas e para pinturas e grafites de Zorávia.
A exposição está aberta até 12 de outubro na Galeria Augusto Meyer, do Instituto Estadual de Artes Visuais/IEAVi, na Casa de Cultura Mario Quintana. Em seguida, dia 25 de outubro, será transferida para inaugurar a nova Galeria Zoravia Bettiol, onde permanecerá até o início de 2026.
É ‘’uma oportunidade de transformar a dor em arte e de refletir sobre os tempos sombrios que se aproximam com a possibilidade real das cada vez mais constantes enchentes e das diversas situações climáticas decorrentes das mudanças da natureza. Mais um motivo para se repensar sobre sustentabilidade e qualidade de vida em tempos de modernidade’’, observam os organizadores da mostra.
Faz parte da exposição um videoarte produzido pela Oito e Meio Filmes, de autoria de Natalia Pimentel e Frederico Restori, e um livro/álbum será editado com as crônicas de Nora e ilustrações de Zorávia. As gravuras digitais estão disponíveis, à venda, com ou sem moldura e todas as atividades paralelas à exposição são gratuitas com encontros e palestras para estudantes e para a população de modo geral.
Em meio à sua atividade admirável, Zorávia comenta a trajetória profissional, algumas das suas ricas memórias, relembra o impacto das enchentes do Guaíba e fala a partir dos estudos que fez em Varsóvia, na Polônia, e dos seus avós, paternos e maternos, de origem europeia. Ela diz:
“Sempre me dediquei em particular às técnicas da gravura, da linoleogravura, monotipia, xilogravura, litografia e, mais recentemente, sem dúvida, da gravura digital que usei na série mais recente que elaborei, a ‘Divina Rima’. A arte têxtil também me envolveu durante muitos anos. Comecei com tapeçaria bidimensional, acabei fazendo muitas séries e trabalho com formas tecidas e obras tridimensionais’’.
Zorávia se envolveu com política cultural desde seu passado de jovem, quando estava no Instituto de Belas Artes participando de congressos de estudantes em São Paulo, Rio e Salvador. Assim como Ieda Titze, percussora da nova tapeçaria no Rio Grande do Sul, ela participou da 4ª Bienal Internacional de Tapeçaria de Lausanne, no Musée Cantonal de Beaux Arts, e no Mobilier National, em Paris, em 1969.
Seus trabalhos são o resultado de situações que a emocionaram, ‘’mas como eu estava fazendo a ilustração das 28 crônicas da minha filha, Nora, me baseei nos textos das crônicas dela que são muito ricos e sobre eles eu poderia fazer cinco ou seis ilustrações de cada um’’, ela observa.
Um aspecto que chama a atenção da artista é a resistência e possível recuperação da população dos mais vulneráveis após as enchentes. “ Apesar da solidariedade da população e do auxilio governamental está muito difícil para voltarem a ter a vida normalizada. Acreditamos que isso demorará alguns anos; eles e elas perderam tudo – parentes, casas, móveis e emprego’’.
E acrescenta: ‘’ A população é profundamente traumatizada e, infelizmente, como os governantes não atacaram com profundidade os problemas, cada chuva que ocorre provoca inundações em muitas áreas de Porto Alegre e de outros municípios também’’.
Moradora do bairro Ipanema, zona sul da capital gaúcha, bastante atingido pelas águas, na sua visão Zorávia resume o saldo positivo e negativo herdado e comenta suas preocupações:
“Temos o registro das enchentes em Porto Alegre nos séculos XIX, XX e em 2024, e a previsão é que essas catástrofes climáticas serão mais frequentes e cada vez mais devastadoras’’.
Não é preciso dizer mais.
Lembramos também que as obras da artista se encontram em acervos dos principais museus e centros culturais internacionais: Museu Metropolitano, de Nova Iorque; Museu Norueguês de Artes Decorativas e Design, de Oslo; Gabinete de Impressões da Biblioteca Nacional de Paris e Museu de Arte Moderna, de Kyoto.
E aqui, em tempo, reproduzimos abaixo dois trechos de crônicas de Nora Prado, uma amostra desse excelente programa. O primeiro trecho, com o tema da fantástica e até então improvável situação do cavalo imobilizado, na ponta de um telhado de casa alagada. A imagem de um emblema que todos lembram e que deu a volta no mundo.
Um Cavalo no Telhado, de Nora Prado.
(…) ‘’Dentre as centenas de imagens da tragédia gaúcha pelas inundações da última semana, uma delas chamou a atenção por ser tão bizarra quanto inesperada. Um cavalo se equilibrando entre as duas folhas de um telhado de zinco estreito e comprido sobre as águas do lago Guaíba. Ora, um cavalo se reconhece pela sua força e beleza, pela sua independência e sua liberdade. Um cavalo se reconhece pelo trote sincopado ou pelo galope deslumbrante sobre as campinas e coxilhas do Rio Grande, jamais como se fosse uma galinha empoleirada. O extremo oposto do que mostra a foto, onde vemos um ser amedrontado, preso e acuado, tão vulnerável sobre aquele espaço ínfimo para o porte de sua majestade momentaneamente ultrajada. Pois essa imagem emblemática e distópica me parece ser a mais completa tradução do terror vivido pelos gaúchos nos últimos onze dias. Representa todos nós paralisados aguentando estoicamente em meio a total desolação’’.

E a do Boi no Altar, também de Nora Prado:
(…) ‘’ Um boi sobre um altar de uma igreja inundada. É algo tão inusitado quanto sublime, pois, além de evocar a salvação do animal que encontrou abrigo no púlpito do altar, também remete à vaca sagrada cultuada na Índia, onde esse animal é visto como sagrado. O boi na sua imponência bovina e serena nos transmite uma sensação de tranquila passividade embaixo do crucifixo no centro da nave alagada’’.

Veja, abaixo, uma seleção das obras expostas. Elas podem ser adquiridas diretamente com a artista Zoravia Bettiol pelo telefone (51) 99938-3083 ou pelo e-mail zoravia.bettiol@gmail.com








Ficha técnica da Mostra Inventário da Inundação
Produção: Digrapho Produções Culturais
Direção: Carla Pellin D’Ávila
Organização e curadoria: Vera Pellin
Crônicas: Nora Prado
Ilustrações das crônicas: Zorávia Bettiol
Videoarte e vídeo documental: Oito e Meio Filmes – Natalia Pimentel e Frederico Restori
Design catálogo e programação visual: Vera Pellin
Fotografia: Santolin
Tradução em Libras: Celina Xavier
Divulgação: Bebê Baumgarten
Léa Maria Aarão Reis é jornalista.
lustração de capa: Divulgação





Uma resposta
Muito bom seu artigo Léa Maria, obrigada por compartilhar nosso projeto INVETÁRIO DA INUNDAÇÃO.
Um projeto selecionado no Edital Sedac nº27/2024 PNAB RS _ Artes Visuais