Por SÍLVIA MARCUZZO*
Em Porto Alegre, a experiência do percurso de ida e volta à apresentação de Bethânia e Caetano rende reflexões e aprendizados.
O que envolve ir a um show em Porto Alegre? Ou melhor, o que significa ir a um espetáculo na Arena, que dizem que é do Grêmio, no bairro Humaitá? Mais específico ainda: o que requer conseguir chegar lá e voltar para casa? Faço essas indagações porque a ida e a volta ao magnífico show da Maria Bethânia e do Caetano Veloso me acendeu uma série de desconfortos.
Ter conseguido chegar ali, sem ter sido tocado pelo contexto, não é coisa para qualquer um. E se você acha que é exagero, é porque talvez você seja de uma ala que não se abala por determinados desafios de viver em uma grande capital que ainda expõe cicatrizes de uma enchente avassaladora.
Os obstáculos começaram antes mesmo de pegar o caminho ao estádio. Para conseguir comprar o ingresso, tive que fazer florescer em mim a bruta flor do querer de estar lá. Tinha certeza de que tinha comprado os ingressos em dezembro, mas ou minha memória me pregou uma peça ou algum problema aconteceu no site que não apareceu a compra. Chegou no dia do evento, tive que passar por uma romaria digital e ser obrigada a baixar um novo aplicativo para mostrar os tickets, exclusivamente digitais.
Conheço histórias de gente que comprou, não conseguiu localizar a entrada e perdeu o show. Ou que pagou mais, mas não recebeu por um site de venda de ingressos. E, quem pagou, já sabe que precisaria dispor de uma grana para outros gastos. Tudo lá dentro do estádio era caro. Para quem é acostumado, é normal. Uma água a 10 reais, o líquido mais barato. Esse é o preço e ninguém discute.
Alguma coisa aconteceu no meu coração quando pegamos um engarrafamento desde o túnel da Conceição. Conseguimos sair de casa um pouco antes das 19h. E muitos carros, boa parte de motoristas de aplicativo, estavam se encaminhando para o Humaitá.
O que não deu pra segurar, explodiu meu coração, foi ver de perto tanta gente em condições mega precárias na Vila Teodora. Nenhuma novidade. Isso já era realidade antes de as águas terem varrido aquelas pessoas de lá. Mas elas voltaram. Só que gente é pra brilhar, não para morrer de fome! Faces do Brasil desigual, mas alguma coisa aconteceu no meu coração. Sentimento de impotência.
Estava incomodada também porque estava indo de carro com lugares sobrando. Tentei agilizar caronas para amigas que iam, mas nenhuma deu certo. Como já estive em muitas situações na condição de caroneira, sempre penso naquelas pessoas que não têm como se deslocar. Em tempos de congestionamento e excesso de emissão de gases de efeito estufa, o uso racional de um veículo deveria ser uma preocupação pulsante de todos.
Na hora da chegada, deixamos o carro na rua e na via em direção ao sentido centro. Meu marido é acostumado a estacionar naquela região. Já ficou muito tempo trancado em estacionamento que foi pouco pensado em como seria o escoamento naquela região. Confesso que tenho saudade de shows no Olímpico. Ele garante que a comunidade do entorno se envolva para que nada aconteça com os veículos. Afinal, é uma possibilidade de renda excelente. E, ao contrário da região do Beira Rio, o pessoal que cuida dos carros é da própria comunidade. Cada família tem sua área definida, diferente do estádio do Inter em que os cuidadores não moram perto.
Estacionamos e chegou uma senhora, que parecia ter membros da família por perto. Uma filha e uma criança de mais ou menos um ano num carrinho. É 30, igual ao dia de jogo, disse ela. Não tínhamos trocado, demos 50 reais. E ela emendou: pode pegar o troco na volta, vou estar aqui.
Deixamos o carro tranquilos, fomos para o espetáculo. Nem vou gastar palavras para reforçar o quanto foi bom. Pagamos o valor mais em conta do ingresso, na zona da cadeira superior. Ficamos na fila P, bem em cima. E muitos lugares vagos ao redor. Deu para dançar, sentir a brisa que entrava pelas frestas e ainda ver o céu nublado da noite. Claro que adoraria ver mais perto, mas depois de uma certa idade, o conforto em momentos como esse é fundamental.
Antes mesmo de terminar o show, estava inconformada em voltar para casa sem dar carona para alguém. Tentei contato com uma amiga, convidei um casal de amigos que achei na multidão, mas eles estavam num grupo que alugou uma van. Aliás, é impressionante o que tinha de gente de fora da cidade para assistir aos filhos da dona Canô. Afinal, era a última apresentação de uma turnê. Caetano também tem manifestado vontade de parar de fazer empreitadas desse tipo.
Como sou mais que apreciadora, sou fã mesmo, do Caetano, tive o privilégio de vê-lo bem pertinho no finado Teatro da OSPA, interpretando as músicas do Circuladô (na época estava brigada com um namorado e ele chegou com os ingressos para ver o show…). Ter conseguido presenciar na Arena essa consagração à fé, ao sincretismo religioso, as homenagens ao Gil, à Gal e ouvir Gitâ, do Raul Seixas, cantada por esses dois monstros da música brasileira, foi um bálsamo para a alma.
Depois do show, segui incomodada em direção ao carro. Perguntava para as pessoas se queriam carona. Uma senhora perguntou se eu ia para Canoas. Bah, vou em direção oposta, lamentei. Chegamos no carro, localizamos a guardadora. Ela não tinha troco. Mas um moço da comunidade saiu correndo e foi atrás dos 20 reais. Voltou faceiro e nós nos despedimos. Saímos sem qualquer tranqueira.
No outro dia, fiquei sabendo de situações bem chatas que aconteceram com amigos. Uma vizinha só conseguiu um motorista de aplicativo por volta das 01h30. O show terminou pelas 23h. Ela precisou desembolsar 91 reais para vir até a rua 17 de junho, no Menino Deus.
Outro amigo ficou indignado com o trânsito: “Foi uma desorganização completa. A fiscalização da EPTC simplesmente observava, mas não atuava, tentando organizar e amenizar os tantos gargalos da saída do show, especialmente. Carros vindo de todos os lugares e os agentes sem nenhum tipo de atuação efetiva. Na ida, levamos 1h30 da rodoviária até o estacionamento da Arena, e isso tem pouco mais de cinco quilômetros. Saímos duas horas antes do show começar. O estacionamento externo da Arena também é caótico, todo centralizado numa entrada apenas. Lá dentro, iluminação superprecária e nenhuma placa de sinalização para as saídas. E tudo isso por um preço salgadíssimo de 60 reais.”
A oportunidade de ir a um espetáculo em um local de difícil acesso também proporciona aprendizados. Como já dizia o velho Chacrinha: “Quem não se comunica, se trumbica”. Vale muito pensar os meandros de antes e depois de um acontecimento como esse. Em tempos de alterações climáticas, precisamos exercitar cada vez mais a colaboração, a confiança entre nós, entre os amigos, entre vizinhos, entre conhecidos.
Pois, mesmo que uns vivam entre escombros e outros se deleitem em apresentações, estamos todos na mesma página. Vale lembrar os versos do Nelson Motta, eternizados na voz da Bethânia: você verá que mesmo assim, a história não tem fim, continua sempre que você responde sim. A sua imaginação. A arte de sorrir, cada vez que o mundo diz não… e não esquecer, ninguém é o dono do universo, assim é maior o prazer.
Publicado originalmente em Slier.
*Sílvia Marcuzzo é Jornalista e artivista.
Foto de capa: Divulgação
Respostas de 16
Obrigada pela sua objetividade…
Parabéns pelo lindo texto, não sei se posso chamar de crônica. Amei!
Eu e minha filha somos do RJ, mas moravamos em Concórdia SC, qdo compramos logo no início das vendas.
Qdo o show foi transferido, ficamos c vontade de cancelar pois havia a chance de voltarmos p o RJ, mas p nossa sorte fomos morar em Passo Fundo.
Fomos de carro p Porto Alegre, e de Uber p o show, pois disseram q o lugar era perigoso.
Na ida enfrentamos um congestionamento razoável, saímos por volta das 19h, do centro e chegamos bem, mas a volta foi terrível, como vc disse o show terminou em torno das 23h e nos só conseguimos chegar de volta ao hotel eram mais de 2 da madrugada.
Eu já estava bem nervosa, tenho 71 anos, primeiro um problema sério conseguir internet e depois a dificuldade de conseguir Uber ou msm táxi.
Qdo aparecia algum táxi no local, parecia criança em dia de Cosme e Damião rs, cercavam o carro e negociavam e algum sortudo ia embora.
Nós 2 estávamos pedindo Uber e p aumentar meu desepero a bateria do meu celular estava acabando, por fim conseguimos q um motorista nos aceitasse, esperamos por 18 min ele acabar a corrida p nos pegar e pagamos $45 por uma corrida de menos de $20.
Enfim conseguimos chegar sãs e salvas, esgotadas, mas inteiras.
Entretanto, tirando o show excelente, foi uma experiência bem negativa, não sei se voltaria a Arena do Grêmio p ver outro show.
Compramos o ingresso através da Ticketmaster e depois por orientação baixamos o APP Quentro, fazia mais de um ano que havíamos adquiridos o ingresso e eu estava sempre de olho no ingresso kkk, talvez isso tenha causado confusão para algumas pessoas.
eu fui com minha tia fia que veio especialmente de santa Maria,estava bom de mais não vi nenhum contratempo,funcionários altamente qualificados,e educados não vi desordem nenhuma,achei a pizza um pouquinho cara mas faz parte ,pipoca crocante,refri bem gelado valeu a pena
Os autores da música são Guilherme Arantes / Jon Marcus Lucien e não Nelson Mota.
Gostei do texto e eu sou do RJ e aqui foi tudo ótimo o show,etc,só o tumulto da volta que é normal em espetáculo com grande público
Transporte Coletivo.
Estação Farrapos e Anchieta do Trensurb.
Ônibus com pista exclusiva.
Mas o show é privado.
E agora José?
Os versos da música “Brincar de Viver” , mencionada no último parágrafo, são da autoria de Guilherme Arantes, e não de Nelson Motta.
Esses versos não são de Nelson Motta
Sou de Belo Horizonte e fui a Porto Alegre para assistir ao show de Caetano e Bethânia. Tive a sorte de dividir um carro de aplicativo com duas pessoas que estavam no mesmo hotel, para irmos a Arena. Durante aquele espetáculo maravilhoso estava pensando que teria dificuldades em retornar ao hotel, até porque não conheço bem a cidade. Decidi sair no começo o da última música e dei a sorte de tomar um ônibus que me deixou na Praça XV, a 15 minutos a pé do meu hotel. Sabia que se ficasse até o final do show, correria o risco de gastar horas à espera de um transporte.
Olá Sílvia! Adorei seu relato. Também sou fã de carteirinha de Caetano. Na última vez em que ele esteve aqui, eu deveria ter uma 18, 19 anos… Época de Circuladô… Não veio mais… Então também me aventurei em visitar POA. Reboquei minha esposa comigo. Um show maravilhoso, uma consagração… mas também passamos esperando um Uber, um táxi, um riquixá…, mais tempo do que no show. Saímos de lá quase às duas da manhã. Cansados e assustados. E pagamos caro para ir dali até um hotel em frente à rodoviária. Valeu a pena? Valeu muito. Mas não precisava ter sido tão sofrido. Um abraço e parabéns
Esqueci de te dizer que sou de Manaus. No Circuladô não consegui ir. Faltou o detalhe do vil metal..
Esqueci de te dizer que sou de Manaus. Na época do Circuladô eu não consegui ir… Faltou grana. Mas tinha no coração que um dia iria. E fui.
Perfeito! Sem mais…Passei por todos os desconfortos e me feriu observar de carro as “vitrines” dos moradores dessa região “esquecida” como tantas outras na nossa cidade! Eptc devendo orientação! Estacionamento externo da Arena como disseste! Argh!
Para nós foi uma caminhada de 1km e pouco até umas avenidas onde não tinha possibilidade de engarrafamento sem saida para um retorno Muitos tiveram essa ideia e assim fluiu para os Cam nantes apartir de 1 ,5 km de distancia do estadio.Mas se chove- se seria caótico.Negociamos com Uber,o trajeto so daria r$27 ,cobraram 50,queriam antes 70,quanto mais tarde subiam mais.Temos aquí a especulacão privada que não contribui. ainda assim um público calmo,todo mundo feliz pelo show andando e bordeando a favela onde bares simples tinham seus clientes.Näo vimos nessa direcão nem um policiamento ou organizador ,o povo só andava na esperança de descer um uber do céu porque impossível se deslocar na horizontal.Lá do nada tinha um numa curva afastado.Subimos 4, negociamos um termo medio, saiu barato.E o resto?Atèé as kombis no estadio devem haver saido duas horas depois.
Assistir estes Dois Irmãos Indefinidos Comunistas Caviar da Lei Rouba-lhe é uma tarefa pra lá de IDIOTA.