Há uma palavra que antecede a palavra. Não pode ser dita. É preciso sentir.

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Rio Amazonas - Neil Palmer/ CIAT, CC BY-SA 2.0 , via Wikimedia Commons

Por LUZ DORNELES*

Pensadores e cientistas de todas as épocas debruçaram-se sobre questões de seu tempo. Freud mergulhou no inconsciente e nos sonhos, revelando que doenças físicas podiam nascer de causas emocionais – um escândalo num mundo dominado pelo materialismo. Foi desacreditado, mas mudou para sempre o modo de pensar o humano.

Marie Curie descobriu elementos radioativos e lançou as bases para a construção de máquinas de raio-x e radioterapia que salvam milhares de vidas até hoje. Ainda assim, enfrentou as opressões do machismo e da xenofobia. Impedida de falar sobre suas descobertas e barrada na Academia Francesa de Ciências, recebeu, ironicamente, o Prêmio Nobel de Química no mesmo ano.

Exemplos não faltam de homens e mulheres que revolucionaram nossa forma de compreender o mundo que nos cerca e ofereceram saídas para problemas que afetavam toda a humanidade. Muitos foram, no mínimo, contestados, desacreditados e difamados. É intrigante – cada figura dessas parecia saber para onde apontar a razão, o faro investigativo, e de fato transformar o curso da história humana nesse pequeno planeta Terra. Olharam com foco e perspicácia para os problemas de sua época, sanando ausências de perspectiva.

Hoje, pergunto-me, quem seriam as vivas mentes e espíritos capazes de transformar o curso desse grande rio, antes que ele fique assoreado? Quais são os problemas do nosso tempo que demandam atenção? Olho para o lado. Praticamente aprendemos a construir a matriz de nossos pensamentos com europeus, e academicamente ainda é difícil encontrar doutores que não os referenciam – são, de fato, excelentes, e eu particularmente iniciei esse texto fazendo menção a dois deles.

Por falta de letramento e educação decolonial, nos pusemos a olhar ao norte, demasiado ao norte. Mas resolvi olhar ao lado. E havia um livro de Ailton Krenak – o primeiro indígena membro da Academia Brasileira de Letras. Futuro Ancestral, um livrito pequeno, mas profundo no que tange o aprendizado. Ensina a ler desde outra ótica. Ensina a ver desde o coração da Terra.

Deitei no sofá, minha companheira encostou a cabeça em meu colo e comecei a ler em uma tarde qualquer de sábado. Saudação aos rios.

Os antigos do nosso povo colocavam bebês de trinta, quarenta dias de vida dentro do Watu, recitando as palavras: ‘Rakandu, nakandu, nakandu, racandu”. Pronto, as crianças estavam protegidas contra pestes, doenças e toda possibilidade de dano. Esse nosso rio-avô, chamado pelos brancos de rio Doce, cujas águas correm a menos de um quilômetro do quintal da minha casa, canta. Nas noites silenciosas ouvimos sua voz e falamos com nosso rio-música. Gostamos de agradecê-lo, porque ele nos dá comida e essa água maravilhosa, que amplia nossas visões de mundo e confere sentido à nossa existência. À noite, suas águas correm velozes e rumorosas, o sussurro delas desce pelas pedras e forma corredeiras que fazem música e, nessa hora, a pedra e a água nos implicam de maneira tão maravilhosa que nos permitem conjugar o nós: nós-rio, nós-montanhas, nós-terra. Nos sentimos tão profundamente imersos nesses seres que nos permitimos sair de nossos corpos, dessa mesmice de antropomorfia, e experimentar outras formas de existir”, escreve Krenak.

Lembro-me de Eliane Brum, jornalista brasileira já bem conhecida e renomada, quando afirmou que algumas crianças-floresta eram amputadas de rio. Retiradas das comunidades às quais pertencem (A terra não nos pertence, nós pertencemos à terra, relembra o mestre quilombola já ancestralizado Nego Bispo), essas crianças perdem uma parte do próprio corpo-espírito. A verdade é que todos nós fomos amputados de rio, de floresta. O mais correto seria dizer, especialmente no caso de pessoas brancas como eu, que nós causamos esse dano terrível e irreversível a nós mesmos. Mas é como viver sem algo essencial cuja necessidade adormeceu – você não a sente, não a vê, não a percebe. Então parece que ela não existe.

Vejo um mundo que desaprendeu a beber da natureza. Enclausurados em caixas, apertamentos, grades, veículos a combustão, corredores, janelas e portas demais, elevadores. Os mais velhos? Caixinha de remédios. Para colesterol, pressão, glicose, e uma porção de coisas mais. E o que mais? Passamos pelos anos naturalizando os efeitos e danos que causamos. Até quando? Vejo colegas cansados. De trabalho e de militância. Superiores que abusam do poder mesmo quando se posicionam à esquerda. Assessores parlamentares que trabalham em escala 6×1 quando os deputados e vereadores com quem atuam posicionam-se como lutadores pelo fim dessa atrocidade que acomete os trabalhadores.

E querem mais. Mais produção, mais resultado. Mais – até secar. Nunca é o suficiente. Como o sistema devasta a Terra, esse modo produtivista – mesmo quando dissociado da busca incessante por lucro – é um vampiro de subjetividades. Esmaga qualquer possibilidade de ócio e, portanto, de profundidade. Escancara com unhas e dentes sua face aparentemente polida, mas verdadeiramente poluída por uma forma de agir descolada da sensibilidade.

Como ser rio, montanha, o próprio fogo? Se os carros passam acelerados e o silêncio é pouco. Como afinar a orquestra se o maestro pisa no chão com força a ponto de quase derrubar toda a estrutura? Quem te ensinou a pisar na terra não disse que ela também gosta de mansidão? Devagar e sem pressa. Parar para cheirar a flor no caminho e dar sentido ao andar no vôo do pássaro que pousa e balança a cabeça acostumada a colorir cidades. Como está a saúde dos rios da sua cidade?

“Eu acho engraçado que tem gente que aceita com naturalidade considerar um rio sagrado desde que ele esteja lá na Índia, se chame Ganges, enquanto ousa saquear o corpo do rio ao lado, cujo nome desconhece, para fazer resfriamento de ciclos industriais e outros absurdos”, coloca Krenak no mesmo livro. Assim é.

A democracia aqui chegou depois de um pesadelo terrível chamado ditadura civil-militar, que deixou mortos e desaparecidos, e prendeu pessoas como meu pai. Ela trouxe consigo uma ideia de cidadania – nascia o “cidadão”. Quiçá em algum tempo dessa linha não-tão-linear histórica, tenhamos sido mais cidadãos do que consumidores. Mas antes da cidadania… Há algo anterior ao dever cívico. Anterior à nossa habilidade de escrever e registrar acontecimentos vividos, talvez mais antigo do que a oralidade. Não sei nomear.

Se a democracia nos fez cidadãos, o que nos fez a natureza? Não, não se trata de um animalismo puro e instintivo – embora o instinto seja uma dádiva a quem sabe ouvi-lo. Acredito que tenha nos feito mesmo sensíveis, mas, reitero, não sei nomear. É uma palavra que antecede a palavra, e, portanto, não pode ser dita. É preciso sentir. Não há escapatória. É preciso desligar os motores e máquinas. Silenciar fora e dentro.

E então, depois de alguns dias sem muitos estímulos, ela aparece. Nós-rio. Nós-montanha. Nós-Terra.
E o coração, enfim, respira.


*Luz Dorneles é Jornalista, poeta, musicista e sonhadore.

Foto de capa: Neil Palmer/ CIAT, CC BY-SA 2.0 https://creativecommons.org/licenses/by-sa/2.0, via Wikimedia Commons

Obs: O título e a foto deste artigo foram alterados por solicitação da autora, que pediu para ser utilizado o título original, dado por ela, mas que havia sido alterado pela editoria do portal, e que a foto utilizada na capa fosse do Rio Amazonas.

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Respostas de 3

  1. Muito lindo e ao mesmo tempo engajado, um protesto. Para mim, a sensibilidade é O divisor de águas, o que nos torna humanos. Acho que não é preciso procurar outra palavra, é ela mesma – SENSIBILIDADE.

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