Anistia não pode ser escudo para golpes

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Por JOSÉ CARLOS MOREIRA DA SILVA FILHO*

No Brasil, não é de hoje, há uma palavra que se destaca no cenário político brasileiro: esta palavra é “anistia”.

Olhando para nossa história, percebemos que a anistia está sempre atrelada a algum golpe ou tentativa de golpe de Estado, incluindo-se aí, é claro, a sequência de violências e restrições de liberdades públicas que precedem ou que se seguem a um golpe bem sucedido.

Nossa tradição histórica, desde a abolição, é invocar anistia para cobrir de impunidade e esquecimento crimes que atentaram contra as liberdades e os direitos mais básicos das pessoas, e que foram ordenados e praticados por pessoas e grupos poderosos da sociedade.

Os senhores de escravos e seus feitores, que praticaram torturas e assassinatos cruéis contra milhões de pessoas escravizadas não foram sequer conhecidos e reconhecidos pelos seus atos. Na verdade, quase foram indenizados pela súbita perda da “propriedade”. Os registros de tanta crueldade foram apagados e queimados.

Também não houve nenhum julgamento, punição ou até mesmo uma advertência pública, contra os golpistas da República em 1889, em 1891, em 1930, em 1937, 1964 e, o mais recente, em 2016. Quanto às tentativas de golpe, a mesma coisa, seja em 1904, 1922, 1924, 1954, 1956, 1959 e 1961.

Do outro lado, a anistia para os que foram perseguidos e ousaram se opor aos poderosos que surfavam nas ondas do golpe, ou que eram por eles fustigados e violentados, trazia apenas parcialmente alguma reparação ou “perdão” ou não trazia qualquer compensação. O exemplo emblemático desse modus operandi são, claro, as pessoas negras que foram libertadas pela abolição, sem direito a qualquer reparação ou política pública que lhes desse condições de acesso a direitos básicos e à cidadania.

Vamos olhar agora para o debate atual sobre anistia para as pessoas que se envolveram na tentativa de golpe que culminou no dia 8 de janeiro de 2023, e na quebradeira e selvageria que foram praticadas contra nossos símbolos arquitetônicos e artísticos máximos de cidadania e soberania.

A extrema direita e seus seguidores estão desfraladando faixas e cartazes com os dizeres “Anistia Já!” Parlamentares e comentaristas inescrupulosos do facismo tupiniquim dizem sem corar as faces que precisamos de uma “Anistia ampla, geral e irrestrita”. O que significa isso? Notem que é um “mais do mesmo”. A tática da extrema direita, montada nas tecnologias digitais de desinformação, tem sido nominar o que fazem com o seu contrário. Assim, em nome da religião praticam o ódio e a violência, em nome do meio-ambiente praticam a sua destruição acelerada, em nome da democracia buscam destruir a credibilidade no sistema de votação, em nome da liberdade defendem a ditadura. Assim, não é de se espantar que se agarrem a uma palavra de ordem como foi a “Anistia Já” e a “Anistia ampla, geral e irrestrita” para buscar o contrário do que tais palavras historicamente significaram, para buscar a sua perversão.

Para entender isso, temos de lembrar que no dia 28 de agosto de 1979, há pouco mais de 46 anos atrás, foi votada a Lei 6683/79, a Lei de Anistia.  Para o bem e para o mal ela marcou a redemocratização brasileira.

Para o bem, permitiu o retorno de pessoas exiladas e a libertação de pessoas perseguidas políticas presas. Foi também o início da recuperação das liberdades públicas e do processo de redemocratização do Brasil. Foi, além disso, impulsionada por uma incrível mobilização social, que influenciou o movimento das Diretas Já e garantiu ampla participação social na elaboração da Constituição de 1988. Foi esta mobilização social, pela democracia, pelo fim da ditadura que popularizou e brandiu os lemas da “Anistia Já” e da “Anistia ampla, geral e irrestrita”.

Na época, apesar da “Anistia Já” ser gritada nas ruas, a anistia foi concedida em banho maria, porque as mobilizações se inicaram no início dos anos 70, e somente no final da década é que veio. E veio capenga, sem anistiar as pessoas envolvidas na luta armada, que estavam presas e condenadas, e que acabaram sendo soltas com recurso a outros mecanismos jurídicos. Muitos tiveram que se apresentar mensalmente às autoridades até os primeiros anos da década seguinte. Ou seja, a anistia de 79 não foi ampla, geral e irrestrita, apesar da palavra de ordem.

Para o mal, a lei de anistia de 79 serviu até hoje de pretexto para a impunidade de torturadores e agentes da ditadura, impedindo investigações e processos públicos de repúdio e julgamento das graves violações de direitos humanos praticadas. Nenhum movimento popular pela anistia pediu isso à época, pelo contrário. Mas foi uma imposição da ditadura, sob pena de não haver a abertura tão anseada. A mensagem que ficou é que a tortura, o desaparecimento forçado, o assassinato, o cerceamento das liberdades públicas e o golpe contra a democracia praticados por agentes públicos podem ser tolerados na nossa história, podem sair impunes. Essa anistia de 79 simplesmente seguiu a mesma “tradição” a que fizemos referência no início, a de uma anistia que abre caminho para a exceção e que nos impede de fazer a prestação de contas de golpes e tentativas de golpes e das violências a eles atreladas[1]. No seu plano de abertura lenta, gradual e “segura”, a ditadura impôs um forte bloqueio à apuração e punição dos seus crimes. Hoje sabemos que a “segurança” demandada pela ditadura era para os seus torturadores e mandantes, que jamais viriam a responder pelos seus atos.

Em 2010, o mesmo bloqueio feito pela ditadura foi mantido pelo STF no julgamento da ADPF 153, que pedia fosse retirada a anistia dos crimes dos agentes da ditadura. Invocou-se, naquela decisão, o mesmo argumento da ditadura: o de que a Lei de anistia de 79 significou um acordo para “pacificar” o país.

Contra essa interpretação, que segue pendente no judiciário, já que até hoje não se julgou recurso feito na ADPF 153 e também uma outra ADPF, a 320, que se debruça sobre a mesma questão, além de já existirem duas condenações internacionais sofridas pelo Brasil (Caso Gomes Lund e Caso Herzog, e mais uma terceira que certamente virá ainda neste ano, a do Caso Bacuri), há também o fato de que em nenhuma linha da nossa Constituição de 1988 se repete a anistia penal para crimes conexos aos crimes políticos, registrada tanto na Lei de 79, quanto na Emenda Constitucional que chamou a Constituinte, a EC 26/85.

Além disso, a Constituição de 1988 considera que a ação de grupos armados contra a democracia é inafiançável e imprescritível, e que a tortura é insuscetível de graça ou anistia. Em seu Art.8° do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias deixa bem claro que anistia é somente para os que foram perseguidos políticos pela ditadura, e não para os que perseguiram, e que anistia significa reparação das vítimas. Daí, se pergunta: como reparar integral e adequadamente sem se fazer a justiça?     

Hoje vivemos uma esperançosa reviravolta em nossa macabra tradição de anistias e golpes. Estamos vivenciando, pela primeira vez em nossa história, o julgamento inédito de crimes praticados contra a democracia, de uma tentativa de golpe de Estado, com claro repúdio de larga parcela da população, de autoridades, da mídia hegemônica e, principalmente, do Poder Judiciário, à possibilidade de uma anistia.

Jair Bolsonaro e seus comparsas, entre eles militares de alta patente, experimentam, ao sentarem-se no banco dos réus do STF, outrora arrancados pela fúria bestial dos seus apoiadores, séculos de impunidade para golpistas, ditadores, escravizadores e torturadores sendo vingados. Não será o suficiente para tanta infâmia, covardia e violência, mas será um bom começo.   

Claro está que paira, sempre abrindo suas asas sobre nós, a sombra da anistia, não da liberdade. Falo da anistia que isenta os torturadores e mal repara as vítimas. Reparação sem justiça é capenga, é deformada. A anistia que pedem os réus mais notórios desta semana não é a anistia da libertação dos presos políticos da ditadura e do retorno dos seus exilados. Pedir anistia para os réus deste julgamento não é o mesmo que pedir anistia para quem se opôs a uma ditadura.

Os que hoje são julgados nesse processo junto ao STF são defensores da ditadura instaurada em 1964, são acusados de tentar um golpe de Estado contra as instituições democráticas. É o mesmo grupo político e ideológico que instaurou a ditadura em 64. Estão, portanto, do mesmo lado dos torturadores e agentes da ditadura, e não dos que contra eles lutaram, pois estes foram julgados, condenados, torturados, muitos mortos e desaparecidos. Os sobreviventes da ditadura não se envergonham de terem sido tratados como criminosos em um regime de tirania, pois se opor à tirania é motivo de orgulho e um dever.

O que querem os réus da semana no STF, e seus apoiadores, é o mesmo tratamento recebido pelos torturadores: serem anistiados sem sequer serem julgados e condenados. Esperamos sinceramente que hoje o STF esteja percebendo o grande erro em ter chancelado a anistia de 79 para os golpistas e torturadores da ditadura civil-militar. Erro que, ao meu ver, também alimentou sua passividade e cumplicidade ao golpe parlamentar praticado em 2016 contra a Presidenta Dilma Roussef, e estendido às exceções da Lava-Jato que em 2018 impediram Lula de concorrer à Presidência, posteriormente e, acertadamente, anuladas pelo STF. O resultado disso tudo foi a extrema direita de volta ao poder e a quase instalação de uma nova ditadura.

Agora que o STF viu de perto as consequências do golpismo e das viúvas da ditadura no poder, não só pode rever seu posicionamento sobre a anistia de 79, como também fulminará o anseio pela anistia dos que logo mais serão julgados. Não há ameaça de líder de superpotência que possa impedir isto. Mas precisamos estar alertas e vigilantes. A história tende a se repetir e será preciso muita atenção, maturidade e força política para impedir que isto aconteça. Fundamental todo o trabalho institucional que vem sendo feito, mas também é imprescindível o apoio e a mobilização política da sociedade civil organizada.    

Não se pode mais tolerar anistia para agentes que atentaram conta a democracia e os direitos humanos, seja os de ontem ou os de hoje.

  1. Recomendo a leitura do livro:  NOLETO, Mauro Almeida. Silêncio perpétuo? Anistia e transição política no Brasil (República Velha e Era Vargas). Belo Horizonte, São Paulo: D’Plácido, 2024, que analisa de maneira profunda e envolvente dezenas de anistias havidas e instauradas ao longo da República brasileira, nas quais sempre predomina o suporte de medidas de exceção e o interesse no controle da transição política, não a busca de um real apaziguamento.

*José Carlos Moreira da Silva Filho é Vice-Presidente da Comissão de Anistia do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania, Sócio-Fundador da Associação Brasileira de Juristas pela Democracia – ABJD e Professor da Escola de Direito na PUCRS.

Foto de capa: O deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), vice-presidente da Câmara dos Deputados, durante sessão no plenário em 2022 | Paulo Sergio/Câmara dos Deputados/26-04-2022

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