Aglomeração Urbana Como Salto Civilizatório

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Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA*

O maior salto civilizatório humano parece ter se dado em função da aglomeração, para trocar ou vender bens em “feiras de aldeias”, e posteriormente,  ao expandir a divisão do trabalho e a produtividade em indústria e serviços urbanos, dada a repulsão causada pela exploração no campo. Mas fica uma questão em debate: por quais razões demorou tanto a população urbana superar a população rural, em grandes países emergentes, como os do BRICS?

A história econômica mostra: nenhuma inovação humana teve impacto tão profundo quanto a aglomeração. O movimento vai desde as feiras de aldeia medieval (ou interioranas) às cidades mercantis, e destas à industrialização urbana. Constitui a base material do salto civilizatório: onde há densidade populacional suficiente, multiplicam-se trocas, especializações e produtividade.

As “feiras de aldeia” representam o primeiro momento duradouro de concentração periódica de pessoas, bens, informação e tecnologia. Essa aglomeração temporária produziu efeitos cumulativos como a troca ampliada atrair maior variedade de bens, competição entre produtores, aprendizado de preços.

Facilitou a difusão tecnológica: técnicas agrícolas, instrumentos, ferramentas e conhecimentos circulavam mais rápido. Nasceu a especialização na divisão de trabalho: artesãos, comerciantes e transportadores se tornaram ocupações permanentes.

Instituições de confiança surgiram, tais como pesos e medidas, contratos rudimentares, formas de crédito, sistemas monetários. No processo de urbanização inicial, feiras periódicas tornaram-se mercados fixos, depois vilas, depois cidades.

A partir disso, o avanço urbano desencadeou um processo de retornos crescentes: quanto mais densidade, maior a produtividade; quanto maior a produtividade, maior o excedente; e quanto maior o excedente, maior a urbanização.

A Revolução Industrial radicalizou essa lógica. A cidade industrial oferecia três vantagens fundamentais. A primeira era a escala produtiva: fábricas exigiam trabalhadores concentrados e infraestrutura compartilhada. A segunda era os encadeamentos múltiplos (para trás e para frente): máquinas, oficinas, transporte, finanças. Finalmente, redes de serviços urbanos como educação, saúde, burocracia, comércio e logística se tornaram fatores de atração para as cidades.

Essa arquitetura aumentou enormemente a produtividade do trabalho. Elevou salários e acelerou a migração rural-urbana.

Porém, ao contrário da Europa Ocidental e dos Estados Unidos, onde o êxodo rural começou cedo, grandes países emergentes enfrentaram estruturas historicamente bloqueadoras. A demora na superação da população rural é explicada por um conjunto de fatores sistêmicos.

Suas estruturas agrárias, antes do desenvolvimento tecnológico, possuíam baixa produtividade. Brasil, Índia, China, África do Sul (todos sofrendo a exploração colonial) e Rússia viveram longos períodos de latifúndio ou micropropriedades atomizadas, baixa mecanização, relações de dependência pessoal (servidão, castas, colonato, trabalho cativo, camponeses vinculados). Isso manteve populações enormes presas ao campo e com escassa mobilidade.

Em muitos emergentes, por razões coloniais ou políticas internas, o processo de urbanização demorou a se conectar com industrialização intensiva. Produziu cidades de baixa absorção produtiva, com serviços informais e Estado fraco.

A urbanização só ganhou força quando passou a existir uma economia urbana capaz de empregar, ou mais precisamente, ocupar força de trabalho. Isso tardou nos BRICS, fora a China.

Tinham baixa capacidade estatal e infraestrutura limitada sem energia estável, transporte de massa, saneamento, habitação acessível, crédito para indústrias. Logo, as cidades eram pouco atraentes e incapazes de sustentar fluxos massivos de migrantes.

China e Índia, principalmente, tinham populações camponesas de tal magnitude a ponto de, mesmo com forte êxodo rural, dada essa demografia, demorar décadas para a população urbana ultrapassar a rural. Só recentemente, com a industrialização maciça na China, a virada demográfica ocorreu lá. Na Índia, mesmo com expansão de serviços urbanos na maior quantidade de megalópoles do mundo, ainda não aconteceu.

Choques históricos bloquearam a urbanização. Na Rússia, foi a servidão tardia e a industrialização sob regime czarista pouco integrada ao território. Na Índia, a economia colonial era estruturada para extração, não para industrialização urbana.

No Brasil, a abolição da escravidão foi tardia (1888: a última do mundo ocidental), depois custou mais de um século para se superar a baixa alfabetização de sua população e o capital industrial não foi frágil apenas entre 1945 e 1985. Na África do Sul, o apartheid racista limitou a circulação e permanência de populações negras nas cidades.

Daí ocorreu o domínio externo dos termos de troca. Países exportadores de primários tenderam a enfrentar ciclos externos voláteis, baixa diversificação produtiva e pouco investimento urbano. Sem indústria forte, não haveria urbanização sustentada era o pensamento econômico generalizado.

O momento da virada urbana nos BRICS ocorreu na China, quando a população urbana superou a população rural em 2011, graças à maior industrialização da história. No Brasil, ela já tinha superado em 1970, impulsionado por industrialização pesada sob planejamento estatal.

Na Rússia, a transição mais difusa, marcada pelo período soviético. Na África do Sul, o aumento foi gradual, travado por desigualdade extrema. Na Índia, o grau de urbanização ainda não ultrapassou 50% como reflexo da inércia agrária e informalidade urbana.

Nessa abordagem abrangente, percebe-se a aglomeração humana ter sido o catalisador central do salto civilizatório, porque multiplicou trocas, inovação e especialização, além da organização de trabalhadores em sindicatos e partidos políticos, para reivindicar direitos sociais. A urbanização depende de produtividade, Estado, infraestrutura, industrialização e política, isto é, ações coletivas — e não apenas de crescimento populacional.

Nos grandes emergentes, legados agrários, baixa capacidade estatal e industrialização tardia retardaram a transição urbana por décadas ou séculos. A urbanização só acelerará o crescimento econômico do país quando a economia urbana for capaz de absorver trabalho com maior produtividade.


*Fernando Nogueira da Costa é Professor Titular do IE-UNICAMP. Baixe seus  livros digitais em “Obras (Quase) Completas”: http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/ E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com

Foto de capa: IA

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