Por CARLOS ÁGUEDO PAIVA*
Introdução: um elefante incomoda muita gente, um governo do PT incomoda muito mais!
Numa entrevista coletiva concedida quando era candidata ao governo do Estado do Rio de Janeiro, no ano de 2018, Marcia Tiburi esclareceu os motivos que a levaram a abandonar o PSOL – partido no qual estava filiada desde 2013 – e ingressar no PT – partido pelo qual se candidatara ao governo. E sua resposta me parece muito atual. Segundo Tiburi, ela própria, Jean Wyllys e Marielle Franco vinham conversando há algum tempo sobre uma contradição que os incomodava de forma crescente: o PSOL fora criado como uma alternativa à esquerda ao PT. Da perspectiva de seus fundadores, o PT havia se transformado num partido conciliador, incapaz de romper com as amarras impostas pelas articulações com agremiações conservadoras – sempre em busca da ampliação da base parlamentar -, ao invés de tentar governar com apoio das ruas e das massas. Não obstante, dizia Tiburi, era o PT e seus governos “conciliadores” que sofriam a oposição cotidiana dos setores conservadores da sociedade, com ênfase na mídia, que não se cansava de cantar loas ao uso e abuso de lawfare por parte do Judiciário contra os governos petistas. Essa prática teria sido iniciada logo nos primeiros anos do primeiro mandato de Lula – com o Mensalão – e se aprofundara na Lava-Jato. Os desdobramentos finais foram o impeachment de Dilma, a prisão de Lula, o veto à sua candidatura e, por fim, a proibição de que o ex-presidente sequer concedesse entrevistas. Enquanto isso, o PSOL obtinha grande visibilidade na mídia e era utilizado como a “demonstração” de que as críticas à corrupção dos governos petistas não eram monopólio da direita, mas galvanizavam e irmanavam inclusive partidos e agentes sociais de todos os espectros políticos.
Acredito que o problema trazido por Tiburi há quase uma década atrás continua presente. E não é um tema simples de tratar. Não creio que possa haver dúvidas de que o PT – dentro e fora do governo – incomoda muito os setores conservadores. A ponto de ele haver se tornado quase que sinônimo de “esquerda” no Brasil. Recentemente, em uma edição de O É da Coisa, Reinaldo de Azevedo se “defendeu da acusação” de ter virado “petista” com uma pergunta: – Mas o que que é isso? Não se pode mais defender a democracia e o estado de direito nesse país sem ser petista? Parece que a direita quer entregar ao PT o monopólio dos princípios democráticos em nosso país!
Reproduzo as falas de Reinaldo e Tiburi de memória. Muito provavelmente, as palavras exatas utilizadas por ambos foram outras. Mas não tenho qualquer temor em asseverar que o sentido pretendido por ambos era exatamente este. E aqui encontra-se o ponto que realmente me interessa tratar. Márcia Tiburi filiou-se ao PT por haver descoberto que ele “incomodava” os setores conservadores mais, até, do que o PSOL e outras organizações políticas que se consideravam à sua esquerda. Reinaldo de Azevedo afirma não ser petista, mas um liberal de centro. E que só defende o PT, hoje, porque ele é o principal partido da frente ampla antifascista e em defesa da democracia e da ordem burguesa no país. Para Tiburi, objetivamente, o PT estaria à esquerda de organizações que criticam seu conformismo. Para Reinaldo, o PT se encontra à direita do que pretendem seus críticos.
Por incrível que possa parecer, entendo que não há contradição entre as duas afirmações. O país é que é contraditório. … Como dizia Tom Jobim, o Brasil não é para principiantes.
A questão da dívida interna e das políticas fiscal e monetária dos governos petistas
Dentre as inúmeras críticas feitas às gestões petistas a partir de uma perspectiva de esquerda, creio que nenhuma é tão contundente e impactante quanto a crítica às políticas monetária (prioritariamente) e fiscal (secundariamente) das três gestões de Lula e da gestão “e meia” (a segunda foi abortada) de Dilma. O impacto dessa crítica tem inúmeras dimensões. Desde logo, tal como na questão da corrupção, ela faz eco a críticas oriundas do campo conservador. Só que, nesse caso, trata-se de um “eco ao contrário”. Ao invés de ouvirmos o mesmo discurso, ele é uma espécie de “negativo” (no sentido das fotografias em preto e branco) das críticas conservadoras. Os conservadores dizem que os governos petistas não se submetem à austeridade fiscal, que gastam demais e que, por isso, são responsáveis pelo crescimento da dívida pública enquanto percentagem do PIB. A crítica pela esquerda é distinta. Mas, tal como nos “negativos fotográficos”, o conteúdo é similar (e podemos identificar os personagens fotografados, a despeito do branco haver se tornado escuro e o escuro apresentar-se como branco). Os conservadores pretendem que os governos petistas gastem demais com assistência social, previdência, saúde, educação etc. A esquerda também pretende que os governos gastem demais. Mas seus gastos excessivos seriam com juros e demais serviços da dívida pública. Mais interessante ainda: nos dois casos, o erro do governo estaria em sua subordinação a interesses político-econômicos espúrios. Para a direita, o governo busca “comprar votos” com seu assistencialismo e liberalidade nas políticas salariais (com impactos sobre os dispêndios previdenciários, sempre apontado como o grande culpado dos crônicos problemas fiscais). Já, para a esquerda, os governos petistas adotam políticas monetárias ortodoxas, mantendo os juros “básicos” da economia em patamares insustentáveis e incompatíveis com a expansão dos gastos sociais (que seriam insuficientes) e com as necessidades de investimento público com vistas à mobilização da economia.
Creio que essa apresentação da identidade dos contrários já contribui para a compreensão de um elemento crucial: nem os críticos conservadores, nem os críticos de esquerda, pretendem – em um sentido rigoroso – que o governo gaste “demais”. O problema central é de outra ordem: é que ele gasta errado! Seja por assistencialismo, seja por servidão voluntária ao sistema financeiro. O problema central não se encontra na gastança (apesar do que pretende a eternamente conservadora Folha de São Paulo!), mas na má alocação de verbas.
Só que a crítica pela esquerda acrescenta um ponto: os dispêndios do governo com a dívida pública comprometeriam mais da metade do orçamento. E exigem uma auditoria da dívida (vide os inúmeros vídeos de Maria Lúcia Fatorrelli, disponíveis na rede; como, por exemplo, esse). Já, para os conservadores, o problema central seriam os gastos previdenciários; e propõem o congelamento do salário mínimo como forma de impedir o crescimento das despesas com aposentados e pensionistas (veja-se Armínio Fraga, por exemplo, aqui). Quem tem razão? Ou, antes: algum desses críticos tem razão?
Uma conta de padeiro
Imagine que você ganha 10 mil reais por mês; obtendo uma renda de 120 mil reais ao ano (deixemos o 13º. de lado, sempre já comprometido com impostos e gastos extraordinários da virada do ano). E que tem uma dívida de aproximadamente 85% desse valor (pouco mais de 100 mil reais). Essa dívida é grande, pequena, média ou nenhuma das alternativas acima?
Tudo depende do parâmetro utilizado. Você se endividou para consumir acima de seus rendimentos todos os meses? Ou a dívida está assegurada por algum bem de raiz (uma casa, um terreno, uma planta fabril etc.) que foi adquirido com o financiamento contratado? A sua relação dívida / renda é um “ponto fora da curva”? Ou as pessoas de faixa etária, qualificação e inserção no mercado de trabalho contam com um comprometimento similar? … Analisando a partir desses dois critérios, o Brasil se sai bem no teste. A percentagem da dívida pública brasileira com relação ao PIB está abaixo da média internacional. Assim como o déficit público primário anual. (Quem tiver dúvidas, acesse, por favor, o Monitor Fiscal do FMI, aqui).
Porém, não podemos reduzir o problema a parâmetros externos. Há uma outra questão relevante: quais são os termos do teu financiamento? Se tu contrataste um financiamento que deverá ser quitado em 30 anos a uma taxa de juros igual à inflação anual (em torno de 5% a.a.) mais 3% a.a., tua situação financeira é relativamente tranquila. Com um desembolso mensal de aproximadamente R$ 750,00 tua dívida será quitada plenamente ao final do período.
Imagine, agora, que o seu financiamento vença ao final do ano. E que o juro incidente sobre o valor do financiamento seja de 15% ao ano. Bem, nesse caso, a situação muda completamente de figura. Ao final do período, você terá que desembolsar aproximadamente 115 mil reais, comprometendo 96% de seus rendimentos anuais. … Mas você tem compromissos com a alimentação em casa, vestuário para você e sua família, educação das crianças, combustível, prestação do carro, luz elétrica, condomínio etc., etc., etc. O máximo que você consegue despender com a dívida são R$ 750,00 reais por mês, totalizando 9 mil reais ao ano. Nesse caso, ao final do período, sua dívida será acrescida. Ela era – no início do ano – de 100 mil reais. Se você não tivesse pagado nada, ela seria de 115 mil reais ao final do ano. Você alcançou pagar 9 mil reais. Logo, sua dívida ao final do ano será de 106 mil reais. Ela cresceu. Apesar de seu esforço de pagamento.
Pergunto: o problema é que tu gastas demais e não consegues viver o ano todo com 5 mil reais (120 mil de rendimento subtraído dos 115 mil para pagamento dos juros e do principal). Para ser ainda mais claro: o problema estaria no fato de que você quer colocar mais comida na mesa para alimentar teus filhos do que seria possível gastando apenas R$ 416,67 reais por mês? Ou será que o problema se encontra no fato de que teu “financiador” é um agiota?
A pergunta é retórica e sabemos bem qual é a resposta: o problema é que tu entraste numa enrascada com o contrato assinado. Ao final desse artigo busco apresentar alguns elementos para termos entrado nessa “fria”. Mas, por enquanto, tudo o que podemos dizer é a fria é muito grande: o usurário a quem recorreste tem um grupo de subordinados muito dedicados: eles zelam, com denodo, pelo patrimônio da chefia. E se não honrares teus compromissos, eles apenas começam quebrando tuas pernas. O que vem depois é bem pior. Então tu terás que encontrar uma forma de desembolsar (para além dos 9 mil já pagos) mais 106 mil ao final do ano. Qual a alternativa? Contratar um novo empréstimo. É isso que o governo vem fazendo há anos. Em seu orçamento aparecem as seguintes rubricas:
Orçamento da “Família Brasil”

Modelo Heurístico
Ah, alguém dirá: – Estás sendo condescendente com o governo! Na verdade, ele não vem conseguindo pagar sequer uma parte dos juros da dívida contratada! Esse superávit “primário” de 9 mil reais não vem ocorrendo há tempos. Sim, verdade! Desde 2014 que os governos – incluindo-se os governos Temer e Bolsonaro! –, ou incorrem em déficits primários (gastam mais do que os 120 mil de rendimentos/tributos), ou alcançam pequenos superávits às custas da venda de patrimônio público. É como se nosso “pai de família”, para não ter que tomar empréstimos tão expressivos junto a novos (e velhos!) agiotas, vendesse o carro, o computador e seu celular. O problema é que, ao vender o carro, computador celular, ele deprime sua capacidade de trabalho e de auferir rendimento nos anos subsequentes. Mas na maioria dos anos do século XXI, os governos – inclusive (e particularmente!) os petistas – apresentaram superávit primário. E, hoje, o déficit primário é muito pequeno. E há um esforço real para zerá-lo no ano de 2026. … Mas não é exatamente esse o ponto para o qual eu gostaria de chamar a atenção agora. O ponto é outro. Qual seja?
Na literatura crítica “pela esquerda”, lê-se o orçamento acima como se ele informasse que mais da metade das “receitas públicas” – para ser exato: (106 mil + 9 mil) / 226 mil = 51% – foram destinadas ao pagamento da dívida. E isso é um despautério. O nosso “pai-Brasil” não comprometeu 61 mil reais de seus rendimentos correntes anuais (61% de 120 mil) com a rolagem da dívida. Ele retirou de seu orçamento fiscal (de seus rendimentos) apenas R$ 9.000,00. E sustentou a “casa” com R$ 111.000,00. O discurso de que “mais da metade dos recursos próprios(tributários) da família Brasil foi gasto com os bancos”, ou é mal-intencionado, ou é burro. Ou é um misto dos dois.
Vamos aos fatos!
Em 2024, a arrecadação total do Governo Federal foi de R$ 2,65 trilhões. Nesse mesmo ano, a despesa com juros da dívida pública (sem qualquer amortização do principal) foi de R$ 998 bilhões: 37,66% do valor arrecadado com tributos. O valor despendido com juros em 2024 foi maior que a totalidade dos dispêndios com a Previdência Social (R$ 896 bilhões) e foi quase cinco vezes maior que todos os dispêndios com saúde (R$ 215 bilhões). Como a Constituição de 1988 exige que o Governo Federal despenda 1/3 da Receita Líquida com Saúde e Educação e como os proventos dos aposentados e dos funcionários públicos também estão protegidos por lei, o “cobertor fiscal” mostra-se menor que o “corpo de suas obrigações”. O resultado é que os investimentos em infraestrutura do Governo Federal ficam aquém das necessidades do país e mesmo os juros – nos anos recentes – só vêm sendo pagos através da contratação de novos empréstimos.
A consequência é óbvia: o crescimento do PIB fica aquém das necessidades do país, enquanto o crescimento da dívida pública é exorbitante. E continuará sendo exorbitante mesmo que venhamos a conquistar superávits primários de alguma expressão. Na verdade, com um “juro básico” de 15% a.a. (taxa vigente em agosto de 2025), o crescimento da dívida é mais do que exorbitante: é absurdo. Só há uma forma romper com esse círculo vicioso: baixando a taxa de juros para níveis “civilizados”.
Essa é a pauta correta e universal dos economistas críticos e heterodoxos no Brasil. A questão é que o desdobramento necessário da queda dos juros básicos é a desvalorização do real. Que é, exatamente, o que eu defendo. E, não obstante, 9 entre 10 economistas heterodoxos recusam esse desdobramento. Por quê?
Por terem consciência que – mantidos os termos atuais do nosso sistema de controle de preços e combate à inflação – qualquer desvalorização levaria à elevação dos preços dos bens tradables: sejam importados (vestuário, eletroeletrônicos, máquinas, insumos industriais e agrícolas), sejam exportados (soja e seus derivados, carnes e derivados, minério de ferro etc.). E, com a inflação em tradables, haveria uma queda imediata do salário real e demais rendimentos indexados anualmente (aposentadorias, pensões, aluguéis etc.). Apenas os empresários industriais e o agronegócio exportador se beneficiariam imediatamente com a desvalorização. Esse benefício, por sua vez, levaria à expansão dos investimentos e à depressão da taxa de desemprego, que já se encontra num patamar muito baixo. E o desdobramento previsível da combinação entre queda do salário real (em função da inflação) e elevação do nível de emprego seria a elevação dos salários nominais. O que iria levar a uma pressão de custos e à aceleração da inflação. Mais um passo e voltaremos ao Brasil Pré-Real.
Estou de pleno acordo com todas essas derivações. Qual a diferença específica do meu ponto de vista com a da grande maioria dos economistas heterodoxos? É que é rigorosamente impossível reduzir a taxa básica de juros sem desvalorizar o real. Mais: eu vejo a desvalorização como positiva, como condição sine qua non da recuperação da rentabilidade e do crescimento acelerado da Indústria de Transformação. Mas isso não implica qualquer defesa da inflação e da concentração de renda. Implica tão somente a compreensão de que urge construir uma nova política de combate à inflação. Mas, antes de mais nada, cabe fazer a crítica da pretensão de que seria possível operarmos no Brasil de hoje com “juros baixos & real forte”..
O primeiro argumento em prol da viabilidade da equação “juros baixos & real forte” é de que o país conta com um grande volume de reservas e pode usá-las para cercear qualquer ataque especulativo. Ledo engano. As “nossas” reservas não vêm crescendo; desde 2011 que giram em torno do patamar de US$ 350 bilhões e enfrentam alguma volatilidade. Hoje (final de agosto de 2025) não chegam a US$ 330 bilhões. Esse valor corresponde a menos da metade do Fluxo de Comércio do Brasil (FC = US$ 765 bilhões) em 2024. O FC corresponde à soma dos valores exportados (X = US$ 388 bilhões) e das importações (M = US$ 377 bilhões) de bens e serviços. E os prognósticos em torno da evolução da Balança de Transações Correntes não são nada alvissareiros: no primeiro semestre de 2025, o Brasil apresentou o maior déficit em BTC no semestre desde o (malfadado) ano de 2015.
Mas a questão genuinamente central é que, em termos rigorosos, as reservas não são “nossas”. O Brasil apresenta um déficit crônico na Balança de Transações Correntes (BTC), em função do enorme déficit na Balança de Rendas (BR), que contabiliza o saldo de lucros, dividendos e juros recebidos e remetidos para o exterior. Em 2024, nosso déficit em BR foi de US$ -76 bilhões. Se somamos o superávit de US$ de 11 bi na Balança de Comércio e Serviços (BCS) ao déficit em BR temos o déficit em BTC: US$ – 65 bilhões! Mais: o déficit em BTC é crônico no Brasil, e ele é financiado com recursos externos que ingressam para realizar aplicações financeiras (aquisição de títulos da dívida pública, da dívida privada, no mercado acionário etc.) e como investimento direto estrangeiro das empresas multinacionais em suas subsidiárias locais. Aproximadamente 40% dos ingressos são para aplicações financeiras; são hot money, capital especulativo, que pode se evadir a qualquer momento. Não há dados consolidados (ou, pelo menos, desconheço sua existência) sobre o estoque dessas aplicações de curto prazo. Mas o fluxo de remessas anual para o exterior indica que ele deve corresponder a US$ 250 bilhões; mais de 70% das “nossas” reservas. Como se isso não bastasse, parcela expressiva dos “investimentos diretos estrangeiros” no Brasil são meros empréstimos intercompanhias; vale dizer, são recursos tão líquidos e tão voláteis quanto as aplicações estritamente financeiras. E lá se foram todas as “nossas” reservas.
E essa é só a ponta do iceberg. Engana-se quem pensa que um movimento de fuga para o dólar derivado de uma eventual queda da taxa de juros interna seria protagonizada pelo capital estrangeiro. Provavelmente, os agentes financeiros nacionais seriam muito mais ativos nessa empreitada. Por quê? Porque sua lógica é essencialmente especulativa. E o princípio elementar da especulação é: aja antes dos outros. Uma queda da taxa de juros gera uma expectativa de desvalorização do real. O especulador racional foge do ativo em vistas de perder valor (o real) e busca o porto seguro da divisa internacional (o dólar). Com o aumento da demanda de dólares, a previsão de desvalorização se realiza. E o movimento de fuga persistirá enquanto o Banco Central não voltar a operar com taxas de juros “razoáveis”.
Imaginemos que o Presidente do Banco Central seja um heterodoxo convicto da necessidade de manter as taxas de juros em padrões “decentes”. Ele verá suas reservas se evaporarem e o dólar subir de preço cada vez mais. Aumentando a certeza dos especuladores de que a taxa de juros terá que ser elevada novamente, pois a inflação já está campeando. Quando nosso heterodoxo der o braço a torcer, os dólares voltarão a fluir para o Brasil. E muita gente ganhará fortuna com a brincadeira.
Há solução?
Mas, então, como enfrentar o imbróglio? Em primeiro lugar, é preciso reconhecer que nossas reservas não são, nem nossas, nem são sustentáveis: não sobreviveriam a uma mudança radical e perene de política monetária. Qualquer movimento nesse sentido só será bem-sucedido se pudermos contar com o apoio de um novo financiador externo. Como a China, por exemplo. Que, além de contar com reservas realmente expressivas, está tentando diversificar a aplicação das mesmas. Afinal, o congelamento das reservas da Rússia e a guerra comercial de Trump recomendam cautela. Está mais do que na hora de colocar o apoio financeiro chinês a qualquer mudança em nossa política monetária na mesa de negociações sobre nossa adesão à “Nova Rota da Seda”.
Agora juntemos os pontos: 1) o Brasil só alcança saldar suas Transações Correntes anualmente tomando recursos externos; 2) a taxa de inflação nacional – mesmo após o “bem-sucedido” Plano Real é elevada – e encontra-se acima dos padrões mundiais; 3) o sistema financeiro nacional é altamente concentrado (o que amplifica o acesso a inside information) e propenso à especulação; 4) a sustentação das “reservas nacionais” depende da conquista, a cada ano, de novos financiamentos externos; 5) a taxa de crescimento da economia brasileira tem sido inferior à média internacional, o que deprime os investimentos internos e externos e o ingresso de capital de risco propriamente dito (vale dizer: excluído o empréstimo intercompanhias); 6) a taxa de câmbio nacional é extraordinariamente volátil, abrindo espaço para grandes ganhos especulativos na arbitragem cambial. Pergunta-se: o que aconteceria se o BCB passasse a operar com taxas de juros similares (ainda que discretamente superiores) ao padrão vigente em economias de inflação baixa, cujas moedas cumprem o papel de divisas internacionais (como o dólar, o euro, o iene e o RMB e que apresentam taxas de crescimento similares (como os EUA) ou superiores (como a China)? … Emergiriam pressões especulativas sobre o real? E elas levaria à desvalorização da moeda nacional, na elevação dos preços de importados e exportados e no crescimento da inflação? … Sim? … Sem dúvida. … O que nos leva a uma conclusão muito simples: não é possível desatar o nó financeiro-fiscal sem desvalorizar o real.
O problema é que não contamos com um “Plano B” de combate à inflação. Há 30 anos que nos circunscrevemos à equação juros-câmbio para controlar a elevação de preços. E uma desvalorização perene levaria, sem dúvida, à elevação dos preços no segmento tradable. Como enfrentar esse problema?
Nove páginas após o início desse texto, o leitor já deve estar preparado para o fato de que pergunta acima é retórica. Não posso respondê-la já. Mas venho tentando, há anos, refletir sobre isso. … Infelizmente, muito mais só do que gostaria de estar. …. Eni-Uei, vou estar lançando na Feira do Livro de Porto Alegre nesse ano de 2025, um livro específico sobre o tema. Convido todos os leitores a prestigiarem o lançamento. No próximo artigo, estarei anunciando o dia, horário e local.
Há solução
Cada vez que o dólar cai de preço, os apoiadores do Governo festejam, comemoram, rejubilam-se. Cada vez que a taxa de juros é ampliada (ou mantida na estratosfera), a porção mais a esquerda dos apoiadores de Lula fica consternada, vocifera, clama, berra, urra, protesta. Não há nada de errado em protestar contra juros escorchantes e contra a asfixia fiscal que a política monetária em curso impõe ao governo. Mas há, sim, uma séria dissociação cognitiva na incapacidade de tantos em perceber que os dois movimentos estão umbilicalmente ligados. E há mais do que dissociação cognitiva na pretensão de que seja possível manter o real forte sem o apoio dos juros escorchantes: há falta de compromisso teórico e político com o enfrentamento dos graves problemas econômicos do Brasil contemporâneo.
Formalmente, na aparência, Márcia Tiburi fez uma rotação à direita em sua militância política. Formalmente, na aparência, Reinaldo de Azevedo fez uma rotação à esquerda em sua militância jornalística. Na prática, objetivamente, ambos fizeram uma rotação em direção à honestidade. E abriram mão da pretensão (algo juvenil) de que os governos podem tudo. Basta ter “vontade política”. … A vontade política é essencial. Sem dúvida. Mas ela envolve trabalho e reflexão. Muito trabalho. E muita reflexão.
Não se trata de pretender que tudo tenha sido excelente nos governos petistas. Nem, muito menos, que não haja o que criticar na terceira gestão de Lula. Na verdade, a gestão econômica é apenas razoável. Por vezes, sinto-me de volta ao período em que Maílson da Nóbrega comandava a economia brasileira: vivemos uma versão recauchutada da política do “feijão com arroz”. Haddad parece acreditar que tudo irá para o “equilíbrio” quando se conquistar o superávit primário. Seria risível. Se não fosse triste demais. Mas há uma diferença entre ver defeitos e pretender que o governo seja, ou um gastador irresponsável, ou uma marionete do sistema financeiro e de seus interesses especulativos. … É simplificar demais a realidade complexa. … Imploro: menAs, pliss, bem menAs.
*Carlos Águedo Paiva é Economista, Doutor em Economia e Diretor da Paradoxo Consultoria Econômica.
Ilustração de capa:IA




